* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica a partir do espetáculo ELA, apresentado em 19 de março no Teatro Marília dentro da programação do Terça da Dança, projeto do CRDançaBH em parceria com o Circuito Municipal de Cultura de Belo Horizonte.
– por Clóvis Domingos –
Os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que morrendo depois que os
velamos, que os enterremos
passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados
pela casa
passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marcador guardando o fogo da última
página lida
Passam-se anos, e descobrimos na gaveta as palavras
escritas, os papéis
São lentos, os mortos
são lentos, como é lento o amor….
(Mar Becker)
ELA, performance da multiartista Vina Amorim, é uma espécie de encruzilhada poética que (a)borda os fios da vida e da morte, do silêncio e do grito, da presença e da ausência, da fantasmagoria e do visceral no humano. Um trabalho instigante que produz inquietas, estranhas e incômodas imagens e sensações, mesclando dança contemporânea e butô – gênero de dança-teatro criado no Japão na década de 1950.
A politicidade do corpo da performer em cena quer nos provocar a pensar e fabular outras modalidades de existência e sexualidade, para além das normas e padronizações que se afirmam como universais. Em ELA o “corpo de carne” de Vina explora e explode em movimentos polimórficos e fluídos (num jogo entre aparição e extinção), como gestos críticos frente à imposição de modelos cisheteronormativos, criando resistências ao denunciar as estratégias necropolíticas destinadas aos corpos dissidentes e marginalizados. Dessa forma, ELA não é somente um solo artístico, mas uma aglomeração (de ideias, vozes, experiências), uma multidão, tem a força de uma rebelião. Fala da vulnerabilidade e precariedade das corporalidades trans e recupera as questões debatidas pela filósofa americana Judith Butler (em obras como Vida precária: os poderes do luto e da violência e Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?), sobre quais corpos e vidas ainda importam nos dias de hoje.
Um “corpo-água” que baila
Fotos de Marcelo Sant’Anna
Uma coreografia das transições – assim compreendo as forças e formas que operam na composição e dinamicidade desse trabalho. A artista transita por distintos lugares no espaço cênico, como se adentrasse e visitasse singulares estações e situações, manipulando objetos e materiais, permitindo assim ao corpo experimentar dores, memórias, revoltas e reconfigurações. Aqui, essa intencionalidade corrobora e dialoga diretamente com o propósito do trabalho: romper a fixidez do corpo, suas identificações robustas, rasurar sua organicidade. Um corpo de passagens.
Aqui é o corpo em sua porosidade e desrostidade (o oposto de “rostidade”, que na acepção do filósofo Gilles Deleuze seria uma maneira de definir o normal e o anormal) que se permite ser atravessado, logo, TRANS-formado pelo contato com os objetos disponibilizados (lonas de plásticos, tecidos, máscaras, um bicho de pelúcia), pelas projeções de imagens com mares e rios que o torna fragmentado, pelos cortes e efeitos da iluminação que o desfigura, pela trilha sonora que o altera em suas velocidades e lentidões, e que em alguns momentos, deixa pouco espaço vazio e silêncio para que nós, espectadores, possamos escutar o som do atrito no encontro e embate do corpo da artista com as matérias que também são ruídos, lamentos, gemidos e vestígios. O trabalho apresenta uma dramaturgia que costura luto e luta, delicadeza e violência, sombra e luz, criação e destruição.
ELA nos confronta com as questões da doença e da finitude. Vina traz numa determinada cena a dilacerante experiência de sua irmã no enfrentamento de um câncer. Com as luzes do teatro apagadas, imersos no escuro, nos encontramos desamparados e impactados ao ouvir uma conversa entre mãe e filha num leito de hospital. De um lado, a agonia de um corpo que não aguenta mais tanta dor; de outro, a tentativa de superação e o imperativo da fé cristã para a aceitação dessa condição. Uma sensação de mal-estar me invade. Ao nos retirar qualquer possibilidade de visão, nossa percepção fica refém daquilo que não gostaríamos de escutar e acessar. Nesse ponto, o trabalho tem a coragem de nos angustiar. Mas uma angústia necessária e coerente com a poética elaborada em cena. O que se destaca é a artesania que se articula na justa medida de compartilhar algo tão íntimo e pessoal da história da artista e ainda assim não se sobrepor à dimensão coletiva da proposta temática do espetáculo. Seriam discretos rumores de uma subjetividade que não se coloca separada do mundo, e mais, trazendo a morte como uma experiência comum no âmbito da esfera pública.
Entre amandas e anômimas: o amor
Para finalizar, vejo ELA como um exercício de elaboração e celebração artística e existencial de Vina, um ritual de presentificação da vida e morte de sua irmã Amanda e de suas tantas e “outras irmãs anônimas”: as trans, as pretas, as pobres, as soropositivas, as solitárias, as intelectuais, as artistas, as transgressoras, as afrontosas, as “sem nome”, as que ainda irão existir….
ELA é tática de sobrevivência e fala de teimosia, renascimentos e subversões. No mesmo canteiro que se extirpa uma vida, se brota outras. O espetáculo termina se recusando a aceitar a morte como fim ou possibilidade de esquecimento. ELA nos mostra uma vida réptil, gingadeira, que tem a astúcia de fazer da perda um modo de invenção e imaginação.
As mortas de Vina são lentas como o amor (Mar Becker), e é através dele e com ele, que a vida acontece com seus restos e dejetos. Como nos lembra o poema da Lya Luft: “quando se desfizer escura a noite desta perda, quero enxergar pelos teus olhos, amar através do teu amor, as coisas que me restaram. (O lado fatal, 1991, p. 93).
As mortas de Vina são vivas e dançam com ela nas frestas entre o visível e o invisível, se manifestam através de outras qualidades de matéria. Incorporações que desafiam as lógicas e racionalidades que regulam a vida e o pensamento ocidental.
Na concepção de ELA, vida e morte ganham intensidades e geram reflexões profundas e necessárias. Vina Amorim ao oferecer mais existência e consistência às suas mortas, acaba “brindando à vida”[1]. Deixei o teatro e voltei para casa pensando na importância de honrar as histórias dos meus entes queridos e de como prolongar o relacionamento com meus mortos.
Ficha técnica:
Criação e dança: Vina Amorim
Direção: Éden Peretta
Produção: Fredda Amorim/ Showme Produções
Assistência técnica: Matheus Amaral
Assistência de direção e coreografia: Vina Amorim
Iluminação: Thuany Amorim
Projeto Gráfico: André Victor
Vídeo: Jahi Amani
Direção Musical: Jefferson Fernandes
Provocações de movimentos: Dani Mara
[1] Aqui numa referência às ideias desenvolvidas pela autora Vinciane Despret na obra: Um brinde aos mortos: histórias daqueles que ficam. (Editora N-1).