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Crítica a partir do espetáculo Pampa Escarlata, assistido no dia 7 de julho de 2023 no teatro El Extranjero, em Buenos Aires.
– por Victor Guimarães –
Numa sexta-feira de julho, de passagem por Buenos Aires, fui até o teatro El Extranjero, uma pequena sala no bairro de Almagro, para ver Pampa Escarlata, de Julián Cnochaert: uma peça independente, escrita e dirigida por um dramaturgo e encenador estreante, que está em cartaz na cidade há quatro anos, com temporadas de vários meses e sessões sempre lotadas. Essa frase soa chocante para uma cena como a belo-horizontina. Estamos acostumados com temporadas curtíssimas (quando descobrimos que queremos ver uma peça, ela já não pode mais ser vista), poucos espaços e poucas opções, praticamente todas na região central da cidade. Por isso, antes de falar da peça (que é ótima e interessa muito aos debates da cena teatral brasileira contemporânea), peço licença para contar um pouco sobre o fenômeno do teatro portenho.
Em uma reportagem de 2008, o jornal La Nación se gabava do fato de que Buenos Aires era, naquele momento, a cidade com mais teatros no mundo. Com cerca de 187 salas e mais de 400 peças em cartaz simultaneamente, a oferta teatral portenha era maior que a de Paris e a de Nova Iorque. De lá pra cá, pouca coisa mudou. São três circuitos: o oficial (que inclui salas públicas como o Complejo Teatral de Buenos Aires e o Teatro Nacional Cervantes), o comercial (com suas comédias popularescas, suas celebridades de televisão e suas vedetes) e o independente (também chamado de off ou alternativo ou under), ainda mais numeroso. O panorama teatral da cidade inclui desde os ostentosos teatros comerciais da Avenida Corrientes até um sem número de salas independentes em vários bairros da cidade, que compõem uma oferta verdadeiramente descentrada e plural.
Muita coisa gira em torno do teatro em Buenos Aires. Os restaurantes estão abertos até tarde, por conta do público que quer jantar depois de assistir a uma peça. As livrarias da região central têm horários inimagináveis para um brasileiro, às vezes indo até a madrugada. Inclusive a crise econômica brutal e a inflação galopante que atravessa a Argentina explica porque a Avenida Corrientes está sempre lotada, todas as noites: como não vale a pena guardar dinheiro no banco em pesos argentinos (porque no mês seguinte o dinheiro já valerá muito menos) e o governo limita até as raias do absurdo os depósitos em dólar (cada cidadão argentino só pode trocar oficialmente 200 dólares por mês), a turma trata de gastar ao invés de economizar, e ir ao teatro é uma das principais opções de lazer para o portenho. Na matéria do La Nación, um proprietário de sete salas na cidade festejava: “Em tempos de crise, a única coisa que se vende são ingressos de teatro”.
Tudo isso soa quase alienígena para uma cabeça colonizada, acostumada a pensar que coisas desse tipo só acontecem na Europa ou na América do Norte (e olhe lá). É revigorante constatar que esse norte (um lugar onde o teatro importe tanto para o cidadão comum a ponto de ditar o funcionamento de uma cidade) pode estar mais ao sul do que imaginamos.
Pampa Escarlata trata de coisas assim. De deslocamentos e reversões entre sul e norte, de colonialidade e de descentramento. A peça abre com uma mulher branca no palco, em vestimentas do século XIX. Ela é uma burguesa aspirante a pintora na Inglaterra vitoriana, jovem com semblante envelhecido, e que fala um espanhol cheio de expressões arcaicas. O cenário é minimalista: uma cama, um armário e uma tela sobre um tripé, sempre virada para o palco, de maneira que nunca veremos o que está sendo pintado enquanto se pinta. A protagonista Mildred Barren é interpretada por Lucía Adúriz, uma atriz capaz de reunir a inteligência cênica de uma Myriam Muniz, o carisma instantâneo de uma Teuda Bara e a anarquia cômica de uma Tatá Werneck. Seu magnetismo em cena é tal que quase ofusca o trabalho do resto do elenco (nos momentos de pausa, é sempre para ela que todos os olhares da sala se voltam).
Mildred se aconselha com o professor Woodcock (um nome que Lucía diz como se cuspisse, numa dicção hilariante), um ex-pintor mais velho, caricaturalmente erudito (e interpretado na noite que vi pelo autor da peça, Julián Cnochaert), que sempre chega ao palco-quarto em sua cadeira de rodas para reprovar o trabalho da aluna medíocre. O conflito se instala quando ele lhe dá um ultimato: se ela não der um salto em seu modo de pintar utensílios de cozinha e paisagens britânicas no período de um mês, o professor abandonará sua aluna. É então que entra em cena a criada Isidra, uma chinita trazida da Pampa argentina, que fala um espanhol carregado de sotaque do interior e é interpretada pela atriz de traços indígenas Carolina Llargues. Diante da crise criativa e da prostração da patroa, tomada por uma depressão fulminante, ela lhe prepara um chá de ingredientes secretos e ancestrais, que disparará um torvelinho criador.
Num jogo de iluminação e música que rompe por um instante o comedimento da encenação, com destaque para uma luz vermelha fulgurante, Mildred pinta furiosamente, como se possuída por uma força desconhecida. O redemoinho da inspiração se espalha pelas luzes intermitentes e pela música alta. Quando termina, a primeira a ver o quadro pronto é Isidra, que tece comentários sagazes, inspirados, que rompem com a expectativa gerada no espectador sobre uma mulher inculta e revelam uma linguagem crítica própria, que não maneja os mesmos pressupostos da apreciação estética europeia e nem adotam seu código linguístico. A criação da patroa – turbinada pelo misterioso chá – é definida pela criada. Se Mildred/Lucía se contorce em arroubos animalescos, numa coreografia impressionante que parece jogar com a dicotomia entre selvageria e domesticidade, Isidra/Carolina joga com os códigos hegemônicos de outra maneira, ao pronunciar um discurso articulado que formula uma crítica de arte que escapa ao eurocentrismo.
As perturbações do eixo sul-norte que são trabalhadas nessa cena não cessarão até o fim da peça. Na verdade, já estavam presentes desde o início, sutis, mas perceptíveis, no idioma de Mildred (essa inglesa que sabe-se lá por que fala um espanhol portenho estranho). E continuarão quando chega o professor, que reage estatelado à criação surpreendente da aluna. Sua pintura, que antes se caracterizava por ineptas e escolares naturezas mortas, agora é cheia de som e fúria, cores vivas e pinceladas fortes, e traz vislumbres de uma paisagem desconhecida: um descampado pampeano repleto de cavalos velozes, homens bravios e donzelas indefesas. Passado o delírio febril (e depois de uma escuridão momentânea), o quadro agora jaz no fundo do cenário, materializando o trabalho da inspiração repentina.
A escolha do quadro a ser pendurado na parede não é nada casual. Trata-se de La vuelta del malón, de Ángel Della Valle, de 1892, que foi celebrado já à época na Argentina como “a primeira obra de arte genuinamente nacional”, como nos conta Laura Malosetti Costa. Embora a alcunha seja uma dessas diatribes contestadas e polêmicas entre os historiadores da arte, a escolha de Julián Cnochaert é certeira: na ficção de Pampa Escarlata, aquela que foi canonizada como a pintura fundadora da arte argentina está pendurada numa parede britânica, pintada por uma inglesa sob efeito de uma poção ancestral indígena vinda dos pampas. Já em sua dramaturgia, a tela materializa um jogo de contradições estimulantes. Pintada por um burguês nascido em Buenos Aires, que voltava à terra natal depois de anos estudando em Florença, põe em cena um dos fantasmas da burguesia portenha ao longo do século XIX: os bandos de guerreiros indígenas que, de acordo com a leitura histórica hegemônica da época, raptavam donzelas brancas nas zonas de fronteira entre os territórios indígenas e as terras ocupadas pelos descendentes de europeus. A operação historiográfica deliberada – que escolhe retratar esta cena e não o genocídio da chamada Campaña del Desierto, que dizimou populações inteiras entre os povos pampa, ranquel, mapuche e tehuelche sob o comando do presidente Julio Argentino Roca entre 1878 y 1885 – convive com a altivez dos homens indígenas no quadro, com a afirmação de uma paisagem densa e nova para a pintura ocidental e com as pinceladas furiosas que asseveram uma arte nacional emancipada da dominação europeia.
O jogo de contradições presentes na dramaturgia do quadro se espraia pela peça. Mildred continuará pintando cenas como esta, estrangeiras e impactantes, incomuns à arte europeia da época (o professor Woodcock agora tem certeza de que sua exposição individual será um sucesso), mas desde que continue a tomar o chá preparado por Isidra. Ao longo de toda a obra, sua linguagem vai se transformando, e ela começa a incorporar expressões de um espanhol do interior da Argentina quase como um espasmo, enquanto seu corpo se contorce, num jogo de atração e repulsa ao elemento estrangeiro. Quando a criada se recusa a lhe fornecer a poção milagrosa, pois esta só pode ser preparada numa determinada época do mês, ela chegará até as últimas consequências para conseguir o que quer. A certa altura, a patroa tranca a moça no armário do quarto, transformando-a em cautiva e invertendo o jogo de forças retratado no quadro de Ángel Della Valle: agora é a mulher indígena que foi sequestrada pela europeia, para que possa seguir oferecendo-lhe o insumo de sua arte, esta que só existe como produto do sequestro e do roubo.
Perto do fim, o segredo é revelado, e o espectador passa a saber qual é o ingrediente misterioso da preparação milagrosa que envolve os conhecimentos ancestrais do povo de Isidra. A aspirante a pintora europeia só consegue se expressar quando surrupia algo da mulher indígena latino-americana, assim como a arte nacional argentina nasce sintomaticamente às custas do apagamento do genocídio indígena.
A peça combina um despojamento da encenação – um cenário de elementos cuidadosamente calculados, figurinos simples e efetivos no que comunicam, iluminação pontual e música certeira –, uma complexidade literária admirável (muito do humor nasce das expressões particulares usadas por cada personagem, e embora meu espanhol imperfeito não pudesse captar tudo, é notável o efeito que os jogos puramente verbais produzem na plateia) e uma linguagem atoral impressionante, que combina a devoção dramática ao texto com sutis elementos de distanciamento (visíveis sobretudo na gestualidade ambígua e complexa de Lucía Adúriz).
É nesse sentido que o desfecho, com a libertação de Isidra e a efetivação de sua vingança contra a patroa, embora visualmente espetacular – o ingrediente secreto se materializa agora num banho de luzes e elementos cênicos que toma todo o palco –, é um tanto previsível, com a potência crítica da peça se deixando domar pelo afã da catarse. A apoteose final parece devolver momentaneamente o espectador a uma zona de certo conforto, pois agora podemos habitar o lado certo da história junto de Isidra e lavar nossas inquietações nesse banho redentor.
Embora esse desejo contemporâneo pela redenção do espectador seja um sintoma aparentemente compartilhado entre o teatro brasileiro e o argentino, isso não apaga, contudo, as virtudes mais que evidentes de uma dramaturgia brilhante, uma encenação segura e um elenco extraordinário. No vaivém entre os atores, o par civilização/barbárie (tão caro a uma obra fundadora da literatura argentina como é o Facundo de Domingo Faustino Sarmiento) oscila permanentemente, e nunca é estável: a selvageria incrustrada nos espasmos exuberantes do jogo de corpo da Mildred de Lucía Adúriz contrasta com a linguagem altamente esteta da Isidra de Carolina Llargues, e essas idas e vindas compõem uma experiência cênica sempre inquieta.
O tom geral é de uma contemporaneidade serena, que retoma sem remorsos um teatro de corte dramático para fazê-lo reviver renovado, fresco, sem nenhum cheiro a mofo. Pampa Escarlata é produto do talento precoce de Julián Cnochaert e de suas fabulosas atrizes, mas também é o emblema de uma cena teatral madura, capaz de uma experimentação sem arroubos, que acontece no interior de uma tradição sólida e de um diálogo franco e sustentado com seu público.
FICHA TÉCNICA
Direção: Julián Cnochaert
Autor: Julián Cnochaert
Elenco: Lucía Adúriz, Pablo Bronstein, Carolina Llargues
Figurino: Paola Delgado
Cenografia: Cecilia Zuvialde
Desenho sonoro: Cecilia Castro
Vídeo: Victoria Fini
Desenho de luz: Ricardo Sica
Fotografia: Victoria Fini
Assistência de direção: Lucía Gusman (Luchitron)
Assessoria de imprensa: Carolina Stegmayer
Produção: Catalina Villegas