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Crítica a partir do espetáculo Hannah Arendt – Uma aula magna, assistido no dia 11 de dezembro de 2023 no Teatro 2 do CCBB, em Belo Horizonte
– por Victor Guimarães –
Um palco quase vazio, exceto por um cubo branco que em breve servirá de mesa escolar. Uma plateia em formato de semiarena ao redor, quase sempre visível pela ação de uma iluminação modesta. Intervenções musicais igualmente pontuais. Um único ator em cena a proferir um monólogo, com um único figurino. O minimalismo cênico de Hannah Arendt – Uma aula magna sugere inicialmente um espetáculo austero, dedicado a tecer uma ponte entre o presente e a obra da filósofa alemã.
Após ouvirmos uma versão a capella de “Blowing in the Wind”, de Bob Dylan, Eduardo Wotzik – que é também o autor e o diretor da peça – chega ao palco com uma mala de rodinhas, roupas invernais e sapatos de salto. Apresenta-se como Hannah Arendt, uma professora alemã convidada para lecionar brevemente no Brasil, e logo instala-se no teatro o ambiente de uma sala de aula. A professora conta um par de anedotas e se concentra depois, por um longo tempo, naquela que é talvez a passagem mais conhecida da obra de Arendt: a reflexão sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, que resultará no conceito de “banalidade do mal”. Em tom sempre professoral, com um sotaque carioca em dicção cristalina, fala pausada e técnica vocal e gestual perfeita, Wotzik se esmera em reconstruir, da maneira mais escolar possível, o argumento arendtiano. Diante da recusa de Eichmann em assumir qualquer culpa pela matança dos judeus, pois ele reivindicava ser um mero funcionário cumpridor de ordens; diante desse mal que se apresenta não como façanha demoníaca, mas como tarefa burocrática; diante da surpresa de que Eichmann parecia não um monstro, mas um sujeito perfeitamente ordinário, pai de família, instruído até a medula para ser incapaz de qualquer recusa, a filósofa concluía que estava diante de uma modalidade nova de mal, algo muito mais desafiador para o pensamento: a banalidade mesma, a negação da humanidade pela destruição de qualquer espírito crítico.
Entre alguns desvios, anedotas, breves reflexões sobre Walter Benjamin e Martin Heidegger, a figura de Eichmann voltará sempre à centralidade do texto, durante todo o espetáculo. Poderíamos pensar, a princípio, que há certa virtude didática na retomada de uma autora como Arendt, noite após noite, para uma plateia de teatro. A impressão de rigor inicialmente esboçada, no entanto, dura pouco. Logo o argumento arendtiano servirá a uma reflexão muito mais esperada e pedestre, passível de ser encontrada em muitas palestras de coachs educacionais por aí, sobre a diferença entre educar e instruir, numa lamentação plenamente reconhecível sobre a falta de espírito crítico na contemporaneidade. Em meio a um discurso sobre a diferença entre inventar e adaptar-se ao já existente, pululam frases como “precisamos educar para a diversidade”, “ninguém pode pensar por mim”, num catálogo inumerável de frases feitas e bem-intencionadas, salpicadas aqui e ali por um “estamos virando Eichmanns”. A sombra de Arendt espreita, talvez, lá de longe, mas sua filosofia já não está mais entre nós.
O paradoxo do espetáculo se revela quando começamos a perceber que, embora o argumento insista uma e outra vez numa pedagogia da autonomia, o espaço para essa outra educação é rejeitado pela própria forma da peça. Constantemente, o monólogo faz referência a um alunado imaginário, com frases pretensamente humorísticas como “você vai ao banheiro no meio da minha fala?”, “você está prestando atenção?” ou “você aí que está olhando a hora”. Se cremos por um momento que essa personagem é mesmo Hannah Arendt, deveríamos concluir que se trata de uma professora autoritária e elitista, capaz de dizer aos alunos: “vocês aí, que ainda acham que a terra é plana”. Ou seja: alguém que desfaz, na prática da sala de aula, exatamente aquilo que propõe em seu discurso filosófico.
Essa escolha até que poderia ser um curto-circuito interessante – pintar uma Arendt arrogante e insuportável como professora, enquanto se adere ao discurso da filósofa –, mas estamos mesmo é numa contradição estrutural. E a evidência maior é de que, nas poucas interações com a plateia ali presente no teatro, o que está programado pelo espetáculo não é uma resposta concreta, crítica ou não, mas apenas o assentimento ou o silêncio. A certa altura, ouvimos: “alguém quer vir até aqui?”. Mas a música logo sobe, não há tempo para nenhuma interação pedagógica real, e o monólogo logo é retomado: “então eu vou repetir”. O que poderia ser uma oportunidade, ainda que ingênua, de quebrar a estrutura vertical do teatro, o abismo entre ator e espectador – que, no fundo, é a mesma divisão sensível tradicional entre professor e aluno – logo se torna uma mera gracinha, um afago humorístico na plateia ali bem sentadinha, caladinha do começo ao fim (ou, num caso extremo, capaz de reações como as do rapaz sentado atrás de mim, que completava corretamente algumas frases previsíveis do texto, demonstrando para a pessoa a seu lado que era um “bom” estudioso de Arendt).
O que temos aqui é o exato oposto de um experimento cênico verdadeiramente pedagógico, desafiador e crítico como o “Manifesto transpofágico”, de Renata Carvalho. Ali, tratava-se inicialmente de um manifesto, uma via de mão única, que acabava, no entanto, por se abrir para as intervenções da plateia e se convertia em experiência transformadora de convívio com a diferença. Nessa aula mínima que é Hannah Arendt – Uma aula magna, até bem perto do fim, os únicos momentos em que se escuta a voz do público é para obedecer: “Posso contar mais uma história?”, pergunta a figura no centro do palco. “Pode” (claro), responde em uníssono o alunado-plateia, massa indistinta e aquiescente, embora semi-iluminada sem razão.
Essa indistinção é a mesma de uma breve intervenção em vídeo, já perto do fim, que mostra imagens de atrocidades inicialmente localizadas e datadas com precisão, como o rompimento da barragem de Brumadinho em 2019 ou o assassinato por asfixia de Genivaldo Santos no porta-malas de um carro em Sergipe em 2022, mas logo em seguida empilhadas como tragédias amorfas, em imagens de crianças mutiladas ou de armas na mão, já sem data ou local. Toda a ontologia da singularidade de Arendt reduzida a pixels informes. Ao final do espetáculo, qualquer rigor vai para as cucuias quando, após contar uma anedota sobre os judeus que, nos campos de concentração, enterravam pedaços de pano contando a história encapsulados em latinhas, para serem recuperados talvez algum dia, Wotzik começa a dizer o nome de alguns dos espectadores, que respondem sempre “presente”, aquiescendo mais uma vez e convertendo, a fórceps, aquele intento desesperado de preservação de histórias singulares e irrepetíveis dilacerado pela História na trivialidade de uma lista de nomes. Após a previsível e infalível menção a Marielle Franco (secundada pelo uníssono “presente”), a singularidade de seu nome se converte em mais um nome, intercambiável, banal.
O melhor momento da noite seguirá sendo, para mim, aquele em que, logo no começo, diante de uma das primeiras perguntas do monólogo (“posso fumar?”), um senhor à minha frente respondeu com um sonoro e surpreendente “não”. O fumante em mim inicialmente pensou que aquela resposta era um cerceamento. Ao final do espetáculo, no entanto, aquele “não” sobrevive como um leve sopro de rebeldia, um resquício de desobediência, um resto de inesperado em meio à asfixiante banalidade do bem.
FICHA TÉCNICA
Texto, Direção e Atuação: Eduardo Wotzik
Direção Musical: Paulo Francisco Paes
Iluminação: Fernanda Mantovanni
Direção de Movimento: Dani Calichio e Clara Sussekind
Direção Vocal: Jackie Hacker
Operação de Som: Michele Fontaine
Confecção de Figurino: Fátima Leo
Operação de Luz: Fernanda Mantovani
Assistente de Direção: Maria Clara Sussekind
Fotos: Kassius Trindade e Maringas Maciel
Assessoria de Imprensa: Jozane Faleiro
Produtor Executivo: Sartre
Direção de Produção – Michele Fontaine
Realização: Wotzik Produções Artísticas