— por Luciana Romagnolli —
Crítica* a partir da peça Nós, do Grupo Galpão (MG), com direção de Marcio Abreu.
Há muitos modos de enfrentar artisticamente as questões éticas e políticas de nosso tempo. E a cada dia que somos atingidos por novos retrocessos nos direitos humanos e no sistema democrático do país, mais incontornável nos parece um teatro que não se isente da complexidade e da gravidade do nosso momento histórico. Há, então, aqueles artistas que decidem pelas tomadas de posição explícitas, pelos discursos combativos, pela politização partidária da arte ou sua instrumentalização em favor de uma causa. A relação entre ativismo e arte encontra suas razões particulares neste universo.
Esse teatro ativista tem ocupado espaço e comprovado sua importância na proposição de pautas de discussão para a sociedade em defesa de direitos humanos básicos, sobretudo para os grupos silenciados historicamente. E, a seu modo, age sobre nossas sensibilidades e nossas percepções, ao fazer visível, audível, sensível aqueles que ainda não o eram. Só assim consegue romper os interditos às falas subalternizadas, àquelas que não se considerou razoáveis por tantos séculos em nossa estrutura oligárquica, patriarcal e escravagista de sociedade.
Outro modo de intervir artisticamente na realidade política é o que se pode chamar de uma política da percepção. Longe dos moldes de uma “peça de tese”, talhada para provar um ponto, ou da ambição de conscientização da plateia sobre um assunto, por meio dos mecanismos discursivos de argumentação e convencimento, o que está em jogo é o deslocamento da percepção cotidiana como forma de abertura a outros modos de perceber, dar forma e atribuir sentido à experiência da vida em sociedade.
Este é um caminho mais próximo do que costumamos ver no teatro do encenador Marcio Abreu, tanto com a companhia brasileira de teatro (fundada em Curitiba há mais de 15 anos) quanto em “Nós”, primeiro espetáculo em que dirige o Grupo Galpão (um segundo trabalho com o coletivo mineiro já está em processo de criação). Seu modo de criar uma arte política passa pela sensibilização do público para as formas (da cena, dos corpos, da linguagem, das relações); pela concepção de um espectador que precisa assumir uma atitude mais ativa na atribuição de sentidos ao espetáculo; sobretudo, pela confiança nas potências singulares da arte como esse espaço de liberdade para estranhar o familiar, avivar os sentidos, inventar outros modos de vivenciar a matéria recorrente de nossos dias, experimentar transformações.
“Nós” nos oferece essa experiência perceptiva incomum em relação àquilo que nos une em grupos humanos. E articula diferentes camadas dessa vivência coletiva. Vemos sobre o palco sete integrantes do Grupo Galpão, deslocados dos tipos de atuação que mais frequentemente assumiram ao longo de seus 35 anos de história juntos. Estão em cena como os atores que são, suas personalidades singulares, embora não repitam o comportamento cotidiano, mas empreguem seus corpos e modos em uma construção estética (como é de costume fazerem os atores e as atrizes da companhia brasileira).
Essa forma de apresentar-se ao público permite entrever algo das relações entre essas pessoas, traz a possibilidade de leituras que se contaminem da própria história do grupo. Ou seja, o “nós” do Galpão está em questão. Mas nunca sozinho. Reunidos em torno de uma mesa, para o preparo de uma sopa, criam uma situação ficcional que já não pode ser restrita ao grupo de teatro, pois evoca microcosmos sociais que o ultrapassam. E há o “nós” formado pelo encontro daqueles atores e atrizes, e das figuras ficcionais que assumem, com os espectadores ao redor. São modos variados de passagem da individualidade à negociação do convívio no coletivo. “Se eu quiser fumar, eu fumo/ se eu quiser beber, eu bebo”, entoa Teuda Bara, para seguir com os versos de “Lama”, contrapondo o desejo individual à sociabilidade compartilhada: “comendo a mesma comida/ bebendo a mesma bebida/ respirando o mesmo ar”. Equilibrar essas duas instâncias, a pessoal e a coletiva, sem o sufocamento de um nem a opressão de muitos, eis a chave para a vida num grupo (de teatro) e em sociedade.
Em outras palavras: como vivermos juntos?
Essa indagação, que perpassa as tantas camadas do espetáculo, aponta para os problemas políticos contemporâneos. Especialmente num contexto polarizado, de muita replicação de discursos (e de notícias falsas) e pouca escuta, como o brasileiro hoje.
A dramaturgia, escrita por Marcio Abreu e pelo ator Eduardo Moreira, se aproveita então da matéria biográfica daquele grupo, contemplando a intimidade das muitas décadas juntos, as diferenças e divergências, o envelhecimento, a estagnação e a transformação – questões estas que dizem respeito também à vida pública. De início, a repetição e a inércia, seja a do artista ou a do sujeito político, emergem como sintoma. A sequência de repetições levemente alteradas da cena da feitura da sopa nos envolve numa espiral em que as réplicas tornam-se refrões, ganham essa qualidade estética, musical, que retorce os sentidos postos a princípio. “Do que vocês estão falando?”, pergunta insistentemente Teuda Bara, até que essa frase se descole do seu contexto primeiro e nos convoque, espectadores, a questionar para além da aparência o que ouvimos.
Talvez a cena mais complexa do espetáculo (e das mais interessantes do teatro brasileiro recente) seja a sequência da expulsão da atriz Teuda Bara pelos seus companheiros. A proximidade entre a estreia de “Nós” e a derrubada da presidente Dilma Rousseff propiciou um paralelo muito direto entre os destinos dessas duas figuras femininas. É grande o impacto de vermos o corpo de Teuda, com suas dimensões amplas, sua presença das mais marcantes do teatro brasileiro, enfim, seus 76 anos de vida, ser retirado à força por aqueles com quem construiu uma história juntos. Ao mesmo tempo, ela encarna, ali, a inércia daquela figura que já não contribui como antes para o trabalho coletivo. Levanta questões éticas delicadas sobre envelhecimento, descarte e a exclusão do outro.
Em contraponto à inércia, temos a possibilidade de transformação. Nos corpos nus de Eduardo Moreira e de Teuda, vemos o ator e a atriz se apresentarem de um modo inédito, não somente pela nudez em si, que é deserotizada, mas justamente pela fragilidade que se permitem ao ser o suporte físico para o registro documental de dados da violência contemporânea. Na banda formada pelo Galpão, os corpos também destoam do familiar, agora despertados na sensualidade que homens e mulheres maduros não mostram tão frequentemente, ainda com uma nota frágil que torna tudo mais humanizado, mais próximo, como “nós”.
Transformados aparecem o teatro de Marcio Abreu e o teatro do Grupo Galpão por esse encontro entre ambos, num tempo e num espaço específicos: o Brasil dessa segunda metade de década. Há mais referências diretas aos problemas sociais do que se via antes na obra do diretor – uma mudança que prossegue de formas diversas em “Projeto BRASIL”, da companhia brasileira, e “Preto” (também da brasileira, com os mineiros Grace Passô e Felipe Soares, que farão sua temporada de estreia de 09/11 a 17/12, em São Paulo). Há outro modo de articular o teatro à vida, muito distinto na trajetória do grupo de atores. E há a possibilidade de que os espectadores, convidados ao fim à celebração dessa ocasião de estarem juntos, também se disponham à escuta, à alteridade e à transformação.
“Talvez seja impossível mudar o mundo. Talvez o caminho seja começar por nós mesmos”, é o que nos diz, em cena, Eduardo Moreira.