(Foto de capa: Kika Antunes).
ensaio crítico com Lança Cabocla, com o lançamento dos livros de Amora Tito e Ione de Medeiros, com o café-conversa com o Horizonte da Cena no contexto do FIT-BH 2024
por Ana Luisa Santos
abertura
este ensaio é fruto fertilizado no cruzamento do intervalo em dia vinte e nove de julho do século 24 na cidade de Belo Horizonte, do quarto ano santo depois da pandemia. Foram dias dentro de dias de peças de pontos de chegadas e despedidas. O festival, o solstício, o dia mais curto, a noite mais longa no hemisfério sul de corpo do mundo. É trabalho coletivo.
recebemos convite como Horizonte coletivo, Horizonte da Cena, críticos, críticas. Conversas, textos, cafés-conversas. Livros. Lançamento de livros, de olhares. Palavras lançadas dentro de garrafas, garrafas pequenas de água. A secura do ar. O deserto que esfria à noite. Nesse escuro, uma tarefa. Entre a apresentação de Lança Cabocla no Galpão Cine Horto e o café-conversa “Memória, cidade e crítica” do Horizonte da Cena, no Espaço 104, os lançamentos de “Vagarosa Movência” de Amora Tito e “Grupo Oficcina Multimédia – 45 anos”, de Ione de Medeiros, no mesmo lugar. Mas nada no mesmo lugar. Nem eu, nem ninguém. Fora da ordem, caquinhos do velho mundo.
vejamos
é cheiro no corredor, é aroma, é incenso, é café de casa, é conversa em volta da mesa, da oferenda, da comida, da memória, uma irradiação.
foi quando tirei os sapatos, porque era preciso estar descalça no espaço, não que alguém houvesse sugerido ou pedido literalmente isso, mas era preciso.
corta para a antiga fábrica de tecidos, 104, aquele pé direito imenso, aquela acústica específica e a gente usando um microfone em volta da mesa, para conseguir se ouvir. Não deixou de ser uma imagem intrigante, mesmo teatral, como o mediador do festival apontou.
aqui e lá conversas tentando encontrar um lugar, experimentando espaços. Como preparar uma “cama” para a memória?
um linóleo, talvez. Sal grosso. Luzes baixas. A iluminação que vem do chão, e não de cima. É da terra, é no solo em que são posicionadas as matérias, a vida, o broto. É onde o corpo se deita, é de onde o corpo inventa um levante. E dança, e desce, voa e rasteja, e troca de pele.
não, a crítica não quer mais ser fantasma. Seu desejo é ancestral. Vai falhar diversas vezes nessa trajetória, por síncopes, provisória, gaguejante. A crítica está em crise. Mesmo a posição de quem testemunha, de quem assiste, de quem se torna audiência está confusa, às vezes, perdida. A crítica fala de um colapso, uma colisão, uma crise epistêmica. Ou melhor, ela não fala, ela balbucia. Ela não sabe. Ela saboreia.
estejamos
para onde vamos quando vamos ao teatro? Não vamos mais ao teatro, pelo menos não como íamos antes. Talvez nem chegamos a ir. Mas estamos em um lugar com lugares, cadeiras, arquibancada. Entramos em fila, mostrando ingressos no celular ou cortesias de papel. Vamos desempenhar o papel de audiência. Vamos nos sentar, vamos fazer silêncio, vamos nos manter no lugar, na medida do possível. Vamos cantar junto, quando e se houver a convocação, e vamos aplaudir no final. Podemos sorrir, podemos chorar. Podemos respirar fundo. Podemos até comentar algo com quem está do lado. Vamos seguir segurando nossas bolsas ou mochilas no colo enquanto observamos. Somos fruto da observação também, às vezes bem de perto. Chega a nós um convite para uma benção coletiva, ritual, manifestação de encantamento.
corta para a elaboração da memória crítica. Já era o tempo da cobertura crítica no jornalismo em que era preciso escrever um texto de um dia para outro. “É preciso deixar o trabalho respirar em nós”, disse Pollyanna Diniz do site e plataforma de crítica teatral Satisfeita Yolanda. Resquícios do jornalismo. Outro tempo. Muitos tempos. Várias temporalidades sobrepostas. O tempo no corpo que guarda outros tempos, inclusive futuros. A cena é aqui, é agora ou pode atravessar gerações? O efeito do que vibra nesse plano de horário da peça, às 21h, começou em que momento?
Não tem lugar definido. O onde é o espaço do oculto cerimonial. Uma oferenda ao sagrado. Uma ação de vários encontros em cena, além-cena, e pára-cena. O jogo vira. Quem está em observação somos nós, imóveis em uma situação de cadeiras sentadas, em fixação. Não dançamos, a não ser minimamente da cintura para cima. Não esticamos as pernas. Não movemos os braços. Timidamente experimentamos alguns timbres. Mas não rodopiamos. Não nos abraçamos. Poucas palmas. É um comum com dificuldade de espaço. É um comum que precisa de espaço. É o teatro como arquitetura social.
respiremos
de volta à fábrica. Mediação. Leitura. Amora Tito fala de ser rio. Ione de Medeiros fala de desejo. Os espaços são grandes, demandam grandes dimensões de memórias. Poderiam ser trocados? Quem está no espaço de quem? Lança cabocla poderia estar no 104? Em volta da mesa do café-conversa, comemos com constrangimento, não sabemos exatamente o que compartilhar do alimento, ou como compartilhar, precisamos de microfone. Falamos para nós mesmos com microfone, a acústica pede isso para não gritar. A arquitetura grita. O monumento.
do outro lado, do outro lado da cidade onde acessamos pelo metrô, estamos diante – literalmente, de frente – de materialidades e gestos em processo de consagração. Queremos lacrar como público, insistimos na frontalidade enquanto modo de encontro. Falhamos ao não deixar circular, ou melhor, espiralar, a percepção e o movimento. Há um trabalho tremendo, há tremores, há uma ideia de nação inteira que chacoalha. Os chifres, há palha. O fogo e a água. O mantra no plural. O mantra do plural. As plantas mágicas. As saias. Os giros.
na mesa da editora Javali, no 104, encontro Leda Maria Martins, coleção Arte e Teoria, em entrevista com Pedro Kalil. Ela acolhe, aconselha, generosamente compartilha do desafio profundo da tradução, da tradição, da traição. No café-conversa dizemos da porosidade dos horizontes, do Horizonte, de sua permanência enquanto busca, inalcançável. Utopia. A cidade convida a momentos coletivos, mas não acontece como coletivo. A cidade é solidão. É partida. É separação. Na mesa em torno da conversa, dizemos e ouvimos dos diferentes momentos nos últimos 10 anos na cidade. Da transformação da cena. Em cena. De um outro lugar que não é só teatral.
desejamos rezar, como experiência coletiva. Ansiamos por encantamento. (In)vejamos a fé. Perguntamos para Ione de Medeiros: arte por quanto tempo? Arte como pertencimento social. Arte para quem? Arte com quem? Arte aonde? No barraco ou no barracão. Um dia depois, as estátuas de Carolina de Jesus e Lélia Gonzalez são inauguradas no Parque Municipal de Belo Horizonte. No terreiro da arte. No bambuzal. É preciso se deslocar.
oremos
de onde eu venho, ninguém aprendeu a ver, a olhar. Diante de um altar não se olhava diretamente. Para receber a benção, cabeça baixa. Reverência. Respeito. Tinha-se medo de um sagrado muito bravo e separado de nós. Vivendo e aprendendo a rezar. O que podemos dizer depois de uma cerimônia mística, além do sentimento de gratidão pela possibilidade de contemplar e compor a beleza do mistério? Dizer sobre o que vemos ou o que nos olha?
a reza, esse texto desafiador de criação, oração crítica, oração para a crise que talvez pudesse começar ou terminar ou seguir com nossa senhora da linguagem, planos para o passado e memórias para o futuro. Vós que não prometeis garantias, muito menos em uma lua minguante em áries, como hoje, como esses dias. Que lugar é esse do teatro de gostar ou não gostar? Ensina-me a ler com e além das agendas curatoriais. Ajuda-me a ler em encruzilhada, iniciada com olhos de criança. Ó espanto. Ó graça. Ó vontade. Ó senhora da crítica e da psicanálise, rogai pelos nós em nós mesmos, emaranhado de vozes e singularidades. Abençoa a luta de classes apesar do desejo de fisioterapia social. Abençoa o ritual. Abençoa a arte da vida. Aparece no sonho. Guarda a disposição e a disponibilidade. Espalha o amor. Derrota o capital. Que assim seja.
corpo lança
o estado de fluxo embaralha as noções de alegria e euforia que mudaram há pelo menos cinco séculos. Estar com é um exercício entre múltiplas dimensões em que a noção de presença é ampliada para compreensões futuro-ancestrais. Se render para o desconhecido. Se dedicar ao encantamento em relação profunda com os materiais de magia e proteção em uma invenção contra o feitiço da mercadoria. Estamos trocando de crenças, de tombos, estamos em delírio coletivo. Distraídos venceremos.
vamos dançar, vamos lançar, vamos embaçar os paradigmas. Com ou sem preparação, vamos agradecer por fazerem uma oferenda em nosso nome, em nome da arte, em nome do que ainda chamamos de teatral. Nesse código amplo, vamos nos iniciar em uma relação em que recebemos a convocatória para acreditar, acreditar novamente ou pela primeira vez. Acreditamos que o corpo lança chamas, recebemos sua renovação fênix. Contamos com outras presenças além de performers. A cena é realizada por conta da fé e do movimento do desejo de transmutar o amor por um mundo.
no jogo sagrado a experiência do encontro é dançada. Dançam-se posições, vetores. Em um mesmo momento de entrega, há condução. A repetição de um gesto ou um som nunca é a mesma. O tempo é um oco onde o canto ecoa e retorna e retoma o ritmo. Não há antes nem depois, apenas a passagem, as passagens. Dar passagem. Criar passagem. Ser passagem. Vir a(r).
na dobra, coloca-se em oferenda a travessia da dúvida. É possível entrar no teatro como se entra no terreiro? No palco, como se mostra o espaço de imantação? O sagrado permite perguntas, questionamentos? Como aprender a criar nesse terreno? É vida o nome dessa criação? Em arte, com arte, como essas chamadas operações estéticas, contornos, situações. Mediações. A crítica não vem depois.
Lança Cabocla – sinopse e ficha técnica
Sinopse:
O espetáculo multimídia nasce de estudos da performatividade em danças populares e afrodiaspóricas, transitando entre o pensar e o dançar contemporâneo e as cosmologias ancestrais. Investiga um dançar-aparição, aliado às plantas de proteção e às danças de caboclo. Os performers propõem uma experiência multissensorial na qual o público é convidado a construir conjuntamente o espaço. A ação ocorre simultaneamente entre a criação sonora desenvolvida em tempo real por Runa Francisco e Tuan Roque e a dança-travessia realizada por Tieta Macau, Abeju Rizzo e Inaê Moreira. Neste percurso, entre o escuro e o invisível, surgem macumbarias dançantes e sonoras.
Ficha Técnica:
Produção: Dandara Azevedo
Concepção e performance: Abeju, Inaê Moreira, Tieta Macau
Criação e Performance Sonora: Ruan Francisco, Tuan Roque
Iluminação: Renato Guterres
Colaboração e Concepção: Elton Panamby
Figurino: Fernanda Sá (Nana Saias)
Fotografia: Gabriela Gaia
Vídeo: Safira Moreira