
— por Dayane Lacerda [1] —
”O tema da dor é meu campo de trabalho. Dar significado e forma à frustração e ao sofrimento. O que acontece com meu corpo tem de receber uma forma abstrata formal. Então, pode-se dizer que a dor é o preço pago pela libertação do formalismo”.
Louise Bourgeois
Muitas são as obras artísticas que possuem na dor sua matéria-prima e seu mote de criação. Sentir a dor, dizer sobre a dor, criar depois da dor, de uma forma ou de outra, é compreender que pelo corpo se percebe as emoções. Alguns atores trabalham, essencialmente, na continuidade de um corpo capaz de vibrar poeticamente os arrebatamentos da vida diária. Perscrutar a relação entre presença e estímulos autobiográficos potentes é uma trajetória muito presente nas atuações do teatro contemporâneo. Vida e arte se confundem diante das encenações pautadas em relatos pessoais.
Os limites entre realidade e ficção se entrelaçam de tal forma que se torna desnecessário estabelecer uma linha divisória entre ambos. A memória, inseparável do ato de narrar sobre si mesmo, passa a configurar o corpo como palco de contradições. O corpo, em continuidade ao corpo-mente, é constantemente afetado por estados emocionais, os quais comprometem diretamente a rememoração. Relembrar um fato significa recriá-lo com base no momento presente, a partir de novos afetos, novas memórias, emoções e situações. Ou seja, a memória é transitória, inventiva e corporal (RIBEIRO, 2013). Considera-se afeto, no sentido spinoziano, como afecções corporais que aumentam ou diminuem o potencial de ação desse corpo. Todo afeto é uma afecção corporal. Porém, as afecções só são consideradas afetos quando influenciam a potência de ação do corpo (JAQUET, 2011). Se a memória possui sua parcela de invenção estabelecida por emoções e sentimentos que afetam o corpo e o ato de rememorar, não é possível confiar no corpo como expressão de uma verdade absoluta. O sujeito, composto por contradições e subjetivações próprias à sua constituição, possui em si efêmeros relatos autobiográficos comprometidos, constantemente, pelo presente, por suas emoções e pelo ambiente que o cerca.
Experiências traumáticas utilizadas nas concepções de espetáculos teatrais parecem se tornar constantes devido à potencialidade de revisitar e recriar o vivido, dando voz a dores silenciadas. Dessa maneira, experiências individuais compartilhadas em cena representam não só uma forma de atualização da história coletiva e individual, mas também a possibilidade de inserção do corpo em cartografias autobiográficas performativas construídas em conjunto por atores e espectadores. A autobiografia performativa supõe memórias-corpo provisórias, atualizadas pela ação lacunar do ator, realizadas no momento presente. As brechas pertencentes às ações criadas a partir de relatos pessoais permitem a inserção poética do espectador na cena, potencializando presenças e estados emocionais.
No espetáculo ”Domingo”, a atriz Cida Falabella dá forma às dores de uma experiência amorosa e, do começo ao fim, seu corpo e os dos espectadores são arrebatados por uma autobiografia dilacerada. A linguagem verbal parece insuficiente diante da dor, talvez, por isso, a casa da atriz tenha se tornado o personagem principal da autobiografia confessada no espetáculo. Dentro das lacunas discursivas, o espectador se depara com fotos, livros, plantas e objetos afetivos, que atravessam a presença da atriz Cida Falabella. O não-dito permite ao público adentrar nas esferas do inconfessável, construindo junto à atriz as potencialidades do espaço autobiográfico.
O surgimento da voz autorreferencial, as promessas de fidelidade com a verdade, a percepção de um outro enquanto destinatário e a exclusividade de um acontecimento/narrativa único introduzem na arte um espaço de reflexão autobiográfica (ARFUCH, 2010). As especulações em torno da autobiografia contaminam as artes da cena através da proliferação de subjetividades capazes de tangenciar memórias e silêncios, corpo e palavra, presenças e ausências. A narrativa em primeira pessoa se manifesta, no teatro, como possibilidade de expressão que se encontra à margem dos discursos hegemônicos. Descobre-se a existência de indivíduos imbuídos de dores, traumas e afetos, muitas vezes abafados pelo cotidiano.
Em ”Domingo”, a voz autorreferencial é composta não só por frases proferidas em primeira pessoa, mas também por silêncios que arranham um corpo exposto à dor. A potência da atriz parece se construir a partir das fissuras alavancadas pelo não-dito, entre frases contaminadas por afeto e, consequentemente, esfaceladas pelo verbo. A linguagem verbal, silenciada pelo corpo, passa a conferir-lhe significados que ultrapassam a compreensão simplesmente simbólica. Os desvelamentos de sentidos proporcionados pela experiência entre atriz e espectador conferem à linguagem corporal a possibilidade de construção de uma pré-linguagem própria e original, aproximando, assim, atriz e espectador à liberdade da palavra, do significado e do significante (AGAMBEN, 2015). Corpo e voz, na atuação de Cida Falabella, tornam-se a possibilidade de expressão de uma autobiografia que é compartilhada e, consequentemente, reconstruída a partir da unificação entre linguagem falada e linguagem corporal. Essa união é composta por fissuras inerentes à impossibilidade de dizer sobre o não-dito, sobre a dor que, ao ser relatada, desconhece seu referencial.
”[…] E ela, solitária como o tique-taque de um relógio numa casa vazia. Esperava sentada sobre a cama, os olhos engrandecidos, o frio da madrugada próxima atravessando-lhe a camisa fina. Sozinha no mundo, esmagada pelo excesso de vida, sentindo a música vibrar alta demais para o corpo”.
Clarice Lispector
Clarice, nessa citação, nos apresenta a possibilidade de um corpo que é acometido por emoções cotidianas. O corpo poético apresenta-se segundo as definições de Dubatti (2010): absorção e transformação do corpo natural-social do ator como matéria de uma nova forma do ente poético. Os afetos do dia a dia irrompem na presença de Cida Falabella alavancados pelo salto ontológico do acontecimento teatral. Em ”Domingo”, o corpo poético da dor é um labirinto experienciado por performances autobiográficas em constante reelaboração. O relato de uma vida em devir, acometido pela poíesis, redireciona a experiência teatral ao inacabado na qualidade de obra arte. Verifica-se, no desempenho de ações da atriz Cida Falabella, a eclosão de rachaduras corporais edificadas pela antítese realidade/ invenção. A fricção entre os dois conceitos permite ao corpo autobiográfico vibrar em consonância com as subjetividades do espectador e convertem a ação teatral em um fazer conjunto, inacabado e insólito.
O blog A louca sou eu contém os escritos da atriz Cida Falabella que deram origem ao espetáculo ”Domingo”. Percebe-se nos textos a alternância entre lembranças e delírios poéticos. Em cena, o corpo da dor é elaborado pela junção: casa, objetos, narrativa em primeira pessoa e corpo poético da atriz. Esse mesmo corpo, em ação, é composto pela arquitetura de três estados corporais: delírio, presente e lembrança. A lembrança, como narrativas pautadas na recordação de histórias passadas, estabelece-se quando a atriz discorre, no momento presente, sobre suas memórias. Permeado por ações utilitárias como fazer o café, aguar as plantas, acender um cigarro, colocar uma música, o presente aproxima o espectador da performatividade do sujeito cotidiano. O momento presente, na qualidade de ação, afeta a lembrança, fazendo com que a mesma seja percebida como corpo. O estado de delírio suscita momentos de abstração, paralisia, invenção, os quais levam o espectador a confundir a lembrança com o presente, e vice-versa. Os delírios convertem ações utilitárias em ações poéticas, caracterizadas pelo cotidiano reconfigurado por meio das memórias performativas. Portanto, nas ações de Cida Falabella, percebe-se um corpo poético que, por meio da dor, transfigura ações utilitárias em entes poéticos. Uma vez que a narrativa autobiográfica é afetada pela recordação, pelo presente e pelo delírio, surgem ações poéticas que possibilitam ao espectador performar junto à atriz. As contradições e lacunas geradas pelas ações poéticas fornecem ao público cartografias subjetivas construídas e experienciadas em conjunto.
O ator do teatro performativo (FÉRAL, 2015) é o portador da teatralidade introduzida por um corpo que pulsa insuficiências, presenças, vazios e ações vinculadas ao eu e ao real. Cida Falabella representa em ”Domingo” características de uma arte que, na modernidade, subverte o corpo para além do racionalismo e da dicotomia razão e emoção. Ela nos apresenta a possibilidade de coadunação entre o cotidiano, o corpo poético da dor e a teatralidade como um jogo imbuído de hiatos, fissuras, inúmeras arestas, em que habitam ator e espectador. As potencialidades de sua atuação não se encontram somente no estrambótico ato confessional, que desperta fetiches e curiosidades dos espectadores; ela vai além, cria corpo à dor e propicia silêncios embebidos de imagens e ações poéticas. Diante do olhar atento e afetivo de quem a observa, Cida Falabella tateia a arte do ator com mãos de uma artista arrebatada pelas dores da vida diária. Ante a dor, a atriz cede ao público seu corpo, conferindo-lhe poesia e afetos. Por consequência, a empatia gerada entre espectador e atriz dá ao espaço autobiográfico qualidades que potencializam o trabalho do ator.
Cida Falabella – artista, mãe, irmã, mulher, filha, corpo do mundo e atriz – oferece ao trabalho do ator certas ramificações que conectam o artista às urgências da modernidade. Seu trabalho concede ao teatro vicissitudes que abarcam questões em torno da prática corporal cênica, elaborada a partir de temas cotidianos e autobiográficos. Oferecer-se em tempos de formalidades técnicas, despir-se de si para se reelaborar com base no contato com o outro, expor feridas, dores, abcessos, tudo isso faz com que a potência de presença da atriz Cida Falabella se construa nas lacunas proporcionadas pela relação com o outro. O corpo da artista se torna, dessa maneira, uma extensão da casa amarela onde Cida recebe seus convidados. A casa contém delicadezas onde são depositadas poesias que se contrapõem ao corpo da dor; talvez, seja por isso que em seus cantos permaneçam a Senhora Tristeza e a Senhora Alegria, facetas da atriz, mulheres cotidianas que se assemelham às diversas peculiaridades humanas de quem as observa.
A dor, à medida que fornece ao artista retalhos, linhas e afecções para concepção de uma obra cênica, proporciona, ao teatro e seus participantes, práticas de alteridades pertinentes às relações dos sujeitos contemporâneos. Assimilar memória, emoção e afetos como processos do corpo estabelece a importância do teatro na qualidade de experiência ontológica, epistemológica e subjetiva. Maria Aparecida Vilhena Falabella Rocha é a escultura em carne viva de alguém que doa à arte suas rasuras do dia a dia, compreendendo que é pelo outro e através do outro que se estabelecem as potências do acontecimento teatral.
”Eu estou aqui.
Minha carne viva ofereço a vocês.
Ofereço minhas rugas e meus pés grosseiros.
Meus cabelos brancos.
Meus braços flácidos.
Meus olhos fundos.
E minha cicatriz.
Ofereço-me. Ofereço-me. Ofereço-me.”
Cida Falabella, texto do espetáculo Domingo.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. A Potência do pensamento: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
DUBATTI, Jorge. Filosofía del Teatro II: Cuerpo Poético y Función Ontológica. Buenos Aires: Atuel: 2010.
FÉRAL, Josette. Além dos Limites: teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015.
JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: Afetos, ações e paixões em Espinosa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
RIBEIRO, Mônica. Memórias da dança-improvisação: acontecimento do corpo. In: TOLEDO, Mônica (Org.). Performances da memória. Belo Horizonte: Impressões de Minas, p. 46-59, 2013.
[1] Aluna do Mestrado em Artes, do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsa CAPES.