– por ana luisa santos –
Fotos de Alexandre Hugo
*prólogo*
as raras experiências de compartilhamento de práticas artísticas que tive com crianças foram interessantes. no campo do teatro, mas especialmente da arte da performance, conviver com crianças em espaços e situações intencionalmente estéticos foi sempre revelador. lembro-me, especialmente, da realização do trabalho dobras[2] no centro cultural santa rita, na região do barreiro, em belo horizonte. não me esqueço que uma criança enfiou o braço dentro da escultura, alcançou com a mão a minha cabeça e afagou o meu cabelo, como se eu fosse um cachorro. em nenhuma outra situação de acontecimento dessa ação ou de outras que propus alguém fez isso, esse gesto de carinho e coragem.
eu não tive oportunidade de conversar com crianças depois de assistir quem é você da toda deseo na funarte-mg. na verdade, na carteira de identidade, havia só uma criança na sessão que eu testemunhei numa quarta-feira à tarde. isso não quer dizer que a gente deixe de ser criança. isso não quer dizer que não existam perdas nesse processo de crescimento. mas como escritora desse texto tentarei propor outros diálogos, para tentar pensar como poderia ser uma conversa crítica com crianças sobre uma peça de teatro ou qual espaço pode fazer essa mediação. ou como poderia ser uma peça crítica de crianças conversando, no teatro. quem sabe como poderíamos conversar com crianças a partir da crise do teatro.
sinto-me extremamente desafiada a escrever esse texto em sua responsabilidade derivada do interesse parental que essas linhas podem gerar. como é, o que significa a maternidade, a parternidade hoje? ontem eu li no jornal que a secretaria de estado da educação de minas gerais está tomando algumas medidas para diminuir a evasão escolar, entre elas, ligar para o domicílio da família, ir até a casa dx alunx, além de acompanhamento e reforço. muitas crianças e adolescentes estão sem vontade de ir para a escola. estão tristes.
não sou mãe nem pretendo ser biologicamente. mas já participei e tentei contribuir cotidianamente na vida de duas crianças que eram filhas de minha companheira na época e que viveram junto comigo durante três anos. eu era muito jovem, tinha 24 anos, e percebo que essa vivência foi muito intensa para um amadurecimento amplo. mas também para aprender e exercitar uma dinâmica, uma vida compartilhada em que é fundamental a organização ritual de momentos de cuidado, como, por exemplo, com relação à alimentação. tem a hora de comer, de comer junto. e isso é muito vital.
no banquete visual da toda deseo os apetites são muitos e variados. no último final de semana, enquanto participava de uma oficina de escrita e política na chão da feira[3] vi os olhos das mães brilharem quando eu comentei que havia uma peça de teatro infantil em cartaz na cidade que lidava com tema lgbtqi+. “como chama?” quem é você. “mas dá para levar os pequenos mesmo?” dá.
voltei com a missão para casa e com a última edição da revista gratuita[4], que tem como tema a infância. o mundo é nossa tarefa e ele inclui as crianças. pois vejamos como quem é você tenta resolver os exercícios propostos.
(na teia)
da fronteira elástica de uma rede emergem figuras encapuzadas receosas. receosas de atravessar a fronteira, de avançar no espaço, de preencher o espaço da cena. estão saindo do fundo, do fundo do palco, em direção à boca, à boca de cena, à ação. estarão com medo da audiência? não é para menos. muito difícil fazer teatro em tempos surdos. muito difícil mostrar alguma coisa, fazer aparecer algo, dar o tempo de algo acontecer em tempos de consumo. que desafio leal é combater a real ideologia de gênero conversando com infâncias.
infância vem do latim “infans, antis”, que significa criança ou ainda quem não fala. imagina. imagina isso em tempos de lugar de fala, de lugar de falo[5], imagina. pouca gente sabe o que as crianças pensam ou estão pensando sobre o mundo. o exercício da escuta que elas nos propõem é infinitamente mais profundo, porque as crianças dizem de múltiplas maneiras. seus idiomas são simultaneamente proto e pós linguagem, em suas vias espontaneamente poéticas, seus cortes, seus silêncios, seus gestos de leitura e elaboração.
as figuras da peça se aproximam de nós. apontam. questionam. tem medo. tentam decrifar o que ouvem. não sabem. não conseguem decidir. não conseguem distinguir. não sabem como percebem. não entendem o que é conviver com a percepção de uma criança, de um bebê que não aparece. uma vida sem destino definido, sem origem conhecida. uma vida plena de possibilidades. possibilidades que (ainda) não sabemos. não conseguem se dedicir o que fazer com sua própria percepção, com a criança, com a vida. acham feio o que não conseguem decifrar ou controlar. decidem acabar com tudo aquilo com salto no abismo.
não vem com moralismo pra cima da crítica. todo mundo sabe que os contos de fada são estórias de terror. a peça não terminou. aliás, as redes, as alças que precisamos construir diante do abismo envolvem diretamente a infância. às vezes, são colchões, como no filme documentário life overtakes me[6]. mas em quem é você precisamos lidar com o armário, essa outra engenharia, essa outra epistemologia[7], esse outro mobiliário doméstico clássico, essa outra ortopedia.
e isso é muito interessante porque para além do argumento político sobre as possibilidades de deixar o móvel fechado, é curioso perceber como a criança pode fazer uma performance do armário, do escuro, do silêncio, na medida em que esse pode ser um esconder temporário, uma brincadeira, um jogo e não um espaço definitivo.
“a infância é o começo da vida e é também algo que subitamente retorna. como a explosão de uma supernova ou a eclosão de uma semente, toda a gente nasce criança. quem escreve rememora e imagina: o que é a infância? memória, fabulação, destino, jogo, imaginação, nostalgia. humor e ruído, rumor e susto! a infância é um território em que a alegria e o medo, a destruição e a ternura podem conviver sem exclusão. a esta sobreposição sem exclusão podemos nomear: coragem vital. se há ingenuidade, há também crueldade e sofrimento. o silêncio de ver a morte pela primeira vez, a lembrança do primeiro beijo, o esquecimento da memória, as brincadeiras, os jogos, o testemunho do trágico, a imediatez da presença nos acontecimentos. capaz de fissurar as normatividades por inaugurar posturas de improviso perante o imprevisto, a infância reina entre anarquia e receio. a infância diz sim! e inventa porvires, devires, aberturas.”[8]
(da aranha)
quem é você apresenta várias estórias, várias possibilidades. quem tece essa teia de estórias é uma aranha, uma aranha enorme. nunca tinha visto uma aranha tão grande, tão poderosa. e tão generosa também. uma aranha que tece, mas solta. uma aranha suave[9], digamos assim. mas não menos assustadora, em sua dimensão, em sua liberdade.
recém-liberta biba tem uma grande responsabilidade. descobrir o mundo. encontrar alguém. saber o que quer fazer. e, claro, lidar com quem acha que ela já devia saber.
biba sai pelo mundo. ou é o mundo que sai de biba? está todo mundo saindo do armário, mais uma vez, desde que as panelas tornaram-se instrumentos nas varandas gourmets. juízes, então, saindo do armário com suas togas longuíssimas, suas testas chatíssimas e suas hipocrisias de praxe.
essa trilogia do desmanche da toda deseo que inclui quem é você, nossa senhora e glória, vem coroar criticamente a tríplice aliança, a santíssima trindade da escola, da família e da religião, esses programas-fetiches. esses algoritmos culturais de delivery fast food de comportamentos, séries, imagens deglutíveis de produtos como homem e mulher. a dieta do planeta sem desejo inclui somente ração estéril, igual, homogênea.
biba precisa brigar pela diferença, pelo direito à diferença. biba quer experimentar, quer tentar descobrir por ela mesma, mas também com outras pessoas que querem tentar descobrir junto com ela.
nesse momento, teve uma interação com a platéia e um juiz veio me perguntar quem eu era. eu não soube responder na hora. mas depois de alguns dias, eu fiquei pensando, e quem sabe eu poderia ter dito que eu sou biba também. quer dizer, naquela hora eu queria, eu era muito biba também. então eu estou saindo do armário, mais uma vez.
é preciso dizer que no dia em que testemunhei a libertação de biba, teve uma conversa depois com a toda deseo e mariana muniz, a diretora da peça. foi um dia atípico, em vários sentidos. era uma sessão especial, sem dúvida. naquele dia, antes da estréia oficial, compartilhavam a peça mais adultos do que crianças, pois houve um problema com o transporte que permitiria a vinda de uma turma de escola pública.
junto com uma outra turma, do segundo período do curso de graduação em artes cênicas da ufmg estavam amigxs e convidadxs da equipe da peça e o grupo do projeto atenção[10] da academia transliterária, com qual estou colaborando e que me permitiu essa presença, esse convite.
muito se falou sobre a dramaturgia potente de raysner de paula, mas também sobre as estratégias de comunicação em tempos de exceção. foi muito curioso porque na conclusão da conversa, a diretora convidou a todxs que viram a apresentação naquele dia para voltar em outro momento da temporada, já que toda deseo iria mudar o final da peça. um novo final que eu não conheço, que eu ainda não vi. tem uma era que eu não via tanta coisa e me comovia tanto.
*epílogo*
era uma vez várias coisas
tem uma era
tem uma era várias coisas
era uma vez uma criança que não tinha ansiedade para ser homem ou mulher
tem uma era isso
só que não
essa gíria tem uma era
era não é mais como era antigamente
era uma vez é pouco, não é suficiente
não era só uma vez
não era só uma
não era só
eram várias de uma vez
era várias vozes
eram várias vozes várias vezes
haja ouvidos
“o que houve, ouve
o que ouve, houve”[11]
*epílogo 2*
essa crítica, essa peça podem tocar em um dos pontos nevrálgicos da discussão poético-política contemporânea, especialmente no que se refere ao argumento da nova direita sobre o futuro. porta-vozes desse segmento ideológico imputam à infância a garantia do futuro (que parece bastante ameaçado). e transferem essa responsabilidade de construir o tempo na medida em que tentam articular e explorar a ignorância moralilsta em torno do medo. uma de suas principais estratégias é ameaçar a infância através do uso de aranhas expiatórias. se isso acontecer com você no teatro do almoço de família, como conversar? quem é o adulto dessa relação? quem é a criança?
em seus livros, alice miller informa que a repressão dos sofrimentos da infância determina não só a vida do indivíduo, mas também os tabus da sociedade. o medo de sentir leva ao medo de falar, ao silêncio de tudo que se viveu, perpetuando assim uma dor que não para de doer, apenas se expressa muitas vezes de outra forma. isso acontece principalmente quando a criança foi vítima de mentalidade mentirosa, um tipo de educação que visa dobrar a vontade da criança, transformando-a num ser submisso e obediente por meio do emprego explícito ou velado do poder, da manipulação, da repressão, da violência:
“o desprezo é a arma dos fracos e sua defesa contra os sentimentos que fornecem pistas sobre sua história. na raiz de todo desprezo, de toda discriminação, encontra-se, de maneira mais ou menos consciente, incontrolado, oculto e tolerado pela sociedade, o poder do adulto sobre seu filho (à exceção dos casos de assassinato ou sérios maus-tratos corporais). o que o adulto faz com a alma de seu filho é de sua exclusiva conta, ele o trata como se fosse sua propriedade; o mesmo se repete com estados totalitários e seus cidadãos. mas um adulto nunca está tão exposto a essa violência como um bebê diante de pais que violam seus direitos. enquanto não nos sensibilizarmos pelos sofrimentos das crianças, esse exercício de poder continuará despercebido, tomado como irrelevante e totalmente trivializado, por tratar-se ´apenas de crianças´. em vinte anos essas crianças se tornarão adultos que farão seus filhos pagar a conta. eles poderão lutar de maneira engajada contra a crueldade ´no mundo´, quando, ao mesmo tempo, imputam-na inconscientemente às pessoas em sua volta. isso acontece porque trazem em si um conhecimento de crueldade que permanece oculto atrás de uma infância idealizada e que leva a ações destrutivas.”[12]
na direção de arte da peça quem é você não há as cores “chiclete” que geralmente observamos no teatro infantil. de acordo com silma dornas, a artista responsável pela criação do figurino, a pesquisa de indumentária atravessou eras. joga para o futuro mas tem um cheiro medieval. essa informação sensorial é muito reveladora de uma atitude corajosa e necessária: para acolher as crianças precisamos acolher as crianças em nós, adultos. “desmunir-se é a regra do abrir”[13]. não há como idealizar nossas próprias experiências, nossas próprias infâncias e nem acreditar que uma cor de roupa, rosa ou azul, vai resolver as perguntas, as dúvidas, as possibilidades. imaginar outras cores, outros tons, outras luzes e mesmo outros escuros é um exercício de invenção e, quem sabe, alegria.
Ficha técnica:
[1] por uma performance queer da infância ou porque a criança é queer
[2] mais informações sobre a performance no link www.anasantosnovo.com/DOBRAS
[3] mais informações sobre a editora no link www.chaodafeira.com
[4] acesso gratuito para essa edição no link: https://chaodafeira.com/catalogo/gratuita-v-3-infancia/
[5] peço emprestada uma expressão que ouvi do artista wilson de avellar.
[6] trailler do filme disponível no link https://www.youtube.com/watch?time_continue=2&v=UY-8G-EY2Ck
[7] ver a epistemologia do armário da obra de referência de eve kosofsky sedgwick, disponível no link https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8644794
[8] trecho da apresentação de júlia de carvalho hansen e maria carolina fenati para a revista gratuita 3 disponível no link https://chaodafeira.com/catalogo/gratuita-v-3-infancia/
[9] por uma nova suavidade com suely rolnik disponível no link https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/Novasuavidade.pdf
[10] mais informações sobre o projeto atenção da academia transliterária no link https://www.facebook.com/atencaoprojeto/?hc_ref=ARSl3JfKtVeL_MqDq_oZZ82nK949_H9khNmaGdZucx6aQiQyCbYf4AWGwp797IRLv00&__xts__[0]=68.ARChE2YGsdccMeWHU6-f7Is_sRhJbMSa2ai4pzyCJuQ-BSODY9UiV_okFN3AZ6FfyKGXQHAYvurWjUJwNGOwFs8P2DgU3eeO4vzW67qI5FE2yVJ5mY0FLBo9hUk2xzjru_MPohKFY3YDfBPicYHvo3_v30AtyGVFvQ3Xk8Ijixwqh1iVKVPgvu0qAadlU56r7dkI3YCF_C9rM2nEXVHETUBIPs57mmDArHecitQlB_HoW2v4Xb0YAaAVD3T3tDStK8WdpW-HZTKm3g9ebp1eCh3N2FHgh5aNSMtysabqSweU4uiKo3BDsrDNVsAF1Mlojw5Md-vtcZWUxLJl7LVVT3Lme0YvGznc_-nE-ETV4f_lH6OpvK7vzsMyxqdB5R3QGAScn3TEQDm3zrkAMPNm8lbJx6QXiWhb61k1IbryxJRc0EA8DfmObV-TpSMR-Jer1v_HRu1pP1i8nnxoB9GgCIRuYwCCyw2BSP_mXkKZsES4kDin6XHOqUr56i0Qz7xFn7MmP8wZRCr7ATwCBpIxZ5agtWxBsEyhFr43rBBwb-6dB2aBz_f_11tFp-RWPk-rEPImdLLj&__tn__=kCH-R
[11] adaptação livre da citação de maria gabriela llansol que me foi apresentada por maria carolina fenati.
[12] um pouco mais sobre a obra de alice miller no link https://books.google.com.br/books?id=fpGqnZq4FHoC&pg=PA57&hl=pt-BR&source=gbs_toc_r&cad=3#v=onepage&q&f=false
[13] outra vez maria gabriela llansol através de maria carolina fenati.