A produção do Ateliê de Crítica e Reflexão Teatral, orientado por Luciana Romagnolli, pelo projeto Diálogos Cênicos continua:
Bira e Bedé
Por: Guilherme Diniz
Em Esperando Godot, os dois vagabundos esfarrapados à espera de um alguém que nunca chega, estão estritamente ligados um ao outro devido ao receio de estar só; solitários num mundo vazio, estéril, que nada tem a oferecer ao ser humano.
A intervenção urbana Bira e Bedé da Cia. Pigmaleão Escultura que Mexe, se apropria livremente de alguns traços da icônica obra de Beckett. A insólita relação das duas senhorinhas gêmeas é quase uma dependência mútua, beira a complementaridade e se fundamenta enormemente na tragicômica necessidade de ambas de interagir com a multidão dos lugares por onde passam.
A hibridez da linguagem conhecida como teatro de animação, angaria novos contornos em Bira e Bedé. Além da correlação estética entre arte dramática e visual, a fronteira entre teatro de ator e de boneco é sutilmente transposta para infundir de frescor a presença agigantada dos dois bonecos na rua.
Não há entrecho em Bira e Bedé; há tão somente um estado e um espaço, bem como em Godot. O caráter altamente improvisacional da intervenção é determinante para a explicitação da psicologia das personagens e fundamenta a relação direta com os públicos. A composição no instante ilumina diversas facetas de ambas as personagens. Ora são agressivas ora sensíveis, mas sempre acompanham a já potente ambiência da rua para construírem discursos novos constantemente, marcados pelo aqui-agora da improvisação.
As correspondências entre homem – objeto torna-se concordante no instante em que um concede ao outro qualidades que lhe seriam contrárias. O ator anima o inanimado e o objeto agiganta as dimensões do corpo do humano, amplia suas capacidades teatrais no tocante à movimentação, plasticidade visual e simbologia. Bira e Bedé são bonecos habitáveis – aqueles nos quais são trajados pelos manipuladores – , isso altera severamente a relação destas duas matérias – humana e não humana – com os seres ao seu redor. O diálogo com as pessoas se modifica; os bonecos são recebidos diferentemente em inúmeras situações, da compaixão para com as figuras idosas até a rejeição da presença de dois meros bonecos.
É algo metalinguístico observar a manipulação de objetos por objetos e para objetos. Uma das gêmeas carrega consigo um andador e a ambas um guarda-chuva. É como se os bonecos ganhassem organicidade similar à humana e transcendessem seu estatuto de objeto. Similar à tela “A Condição Humana” de Magritte, na qual a paisagem da pintura é colocada ao lado de uma janela aberta, e o exterior é idêntico à representação pictórica. O interno e o externo, no quadro, são unos e duplos, assim como os objetos cênicos e os bonecos, são ambos inanimados, podem ser separados por seus atributos ou colocados no mesmo estrato.
É forçoso dizer que seria parcamente possível associar notavelmente Esperando Godot a Bira e Bedé, contudo se todos eles estão à espera de algo, cada um o faz à sua maneira. No diálogo final da peça de Beckett, um vagabundo convida o outro a partir daquele lugar, o convite é prontamente aceito, e eles partem. Entretanto a rubrica indica que eles não se movem. Já Bira e Bedé, para suportarem o peso de suas existências e o fato de estar sempre juntas( mesmo que por momentos separadas), se movem continuamente, e podemos pensar se são elas quem se movem, ou somente nós. Porém ambas, possivelmente, estão presas a uma acachapante coabitação que torna a interação com o público um verdadeiro repouso.