Por Julia Guimarães :::
Como lidar, cenicamente, com determinados aspectos da realidade por demais complexos, no limite, irrepresentáveis? A pergunta, que encerrou o texto anterior publicado aqui sobre a IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, pode servir como ponto de partida para refletir sobre o espetáculo “Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán”, que o grupo mexicano Lagartijas Tiradas al Sol apresentou ontem (7), na Mostra.
A montagem integra um projeto mais amplo, relacionado a uma pesquisa histórica e documental sobre o PRI (Partido Revolucionario Institucional), que governou o México entre 1929 a 2000 e regressou ao poder em 2012. Num jogo de conexão da macro com a micro-história, a montagem oscila entre a narrativa cronológica do partido, a partir de seus sucessivos mandatos presidenciais, e da trajetória da professora e militante Natalia Valdéz Tejeda, desaparecida nos anos 2000, cujo livro “La Revolución Institucional” serviu de referência para a montagem.
Embora a proposta do grupo tenha certa dimensão faraônica ao fundar-se no relato de uma história tão extensa temporalmente – cuja fruição é especialmente vertiginosa para nós, brasileiros, que conhecemos pouco ou nada sobre ela – talvez o mais importante aqui não seja exatamente o conteúdo que se conta, e sim, o ato mesmo de narrar.
Como disseram os atores no blog da companhia, trata-se de um relato “nem melhor, nem mais completo que os demais, mas sim, nosso”. Ou a fala de uma geração que parece ter cansado de simplesmente replicar o pensamento e as escolhas das anteriores, de anular-se diante delas, e que tem urgência de agir, o que significa, aqui, compreender a própria história do país de maneira autônoma.
Nesse sentido, há algo no espetáculo que diz respeito justamente à dimensão de convívio tão cara ao teatro. O fato de ser apresentado no Brasil, e não no México, traz sentidos muito distintos daqueles trocados entre conterrâneos. Aqui, trata-se de uma pequena fresta aberta, no decorrer de 90 minutos, para acompanharmos 71 anos de uma história, para muitos, desconhecida.
Um relato que poderia nos ser passado através de documentários ou livros, mas que ganha conotações muito peculiares por estar no teatro, justamente pela presença dessas pessoas que nos contam, que estiveram lá e agora estão aqui, diante de nós. Como se o fato dessa transmissão oral e presencial trouxesse uma proximidade e um despertar da atenção que outros meios talvez não consigam mais, ou o façam de outros modos. O próprio despir-se dos atores em cena, em dados momentos, parece nos dizer: é a partir desses corpos que nossa história está sendo contada.
Ainda em relação à pergunta que abre o texto, há, na encenação do grupo mexicano, uma tentativa de criar desvios sobre certas armadilhas da representação, ou no limite, da espetacularização. Em cena, os atores tentam ser o mais coloquiais possíveis. Quando representam os políticos, o fazem de modo distanciado, com uso de máscaras, próteses e outros adereços que servem como espécie de ‘comentário’ sobre as características mais visíveis e contraditórias dessas figuras públicas. E, sobretudo, a própria escolha pela forma documental – ainda que não se busque em momento algum chegar a uma suposta ‘verdade’ dos fatos – imprime certa sobriedade à encenação, o que parece ser estratégia para criar proximidade com o espectador, para conversar com ele sem tantas mediações.
A partir dessa estratégia, aquilo que se conta também chega ao público de outra forma. Mais do que uma análise conclusiva sobre o PRI, há, na articulação do grupo, uma tentativa de evidenciar a dimensão de complexidade desse partido, que, entre 1929 e 2000 venceu todas as eleições mexicanas do século XX com mais de 80% dos votos, como nos mostra o espetáculo. A cada mandato, perfis diferentes se revelam: o do populista, do autoritário, do reformista, desenvolvimentista etc., às vezes simultaneamente em um mesmo político.
O que é de fato recorrente na maioria deles – e aí se trata também de um posicionamento do grupo – são as várias facetas de manipulação que assumiram para fazer perdurar o poder do partido. Elas aparecem, por exemplo, através de um vídeo governista ligado a um programa de solidariedade de forte apelo dramático ou na cena em que assessores, ao serem indagados pelo presidente sobre que horas eram naquele momento, ironicamente devolvem a pergunta a ele, já que ninguém, além dele, é detentor de qualquer verdade dos fatos, por menor que seja.
Aliás, algumas passagens da história do México nos fazem lembrar a nossa história recente, como a violenta repressão às manifestações estudantis nas vésperas das Olimpíadas de 1968 (que lá resultou em 400 mortes), à existência do chamado “milagre mexicano”, ou até mesmo a longeva permanência de um político como Fidel Velázquez Sánchez no poder, que poderia ser comparado ao incansável José Sarney, eleito deputado federal pela primeira vez em 1955 e, desde então, exercendo considerável influência sobre todos os governos.
O interessante na estratégia de mostrar as diversas facetas do PRI sem nunca explicá-las plenamente é a capacidade de gerar perguntas que permanecem após o espetáculo, com potencial para serem investigadas posteriormente pelo público. E parece ser esse o desejo do grupo, já que, ao final da encenação, colocam à venda a reedição (feita por eles mesmos) do livro que serve de base histórica para a dramaturgia.
Ao mesmo tempo, trata-se da obra de Natalia Valdéz Tejeda, a protagonista da trama de contornos individuais que é levada à cena. Talvez a escolha desta, e não de outras micro-histórias, tenha se dado pelo fato da personagem materializar o lugar de ‘voz dissidente’: pela coragem em divorciar-se ao ser traída, numa época em que tal atitude era praticamente impensável; por criticar determinadas posturas políticas do sindicato a que pertencia, do partido e, no limite, de sua própria família; por ser, simultaneamente, mãe solteira, professora e militante. Além disso, traz em sua biografia um misterioso desaparecimento até hoje sem explicação.
Talvez a personagem de Natalia esteja mais próxima à da heroína esquerdista clássica dos anos 1960 do que a alguém que poderia dizer algo de específico ao tempo atual. Nesse sentido, é como se essa escolha de destacá-la fosse, em alguma medida, anacrônica em relação às outras propostas defendidas pelos jovens atores do grupo.
Porém, novamente aqui, a opção se destaca não tanto pela trajetória em si da militante, mas pelas articulações cênicas que ela projeta. O ato de representar a história de uma pessoa cuja obra serve de referência para a macro-história do espetáculo e, finda a apresentação, oferecer ao público a possibilidade de continuar essa reflexão através do próprio livro, já é, por si só, uma escolha potente. E que, em última instância, nos faz repensar uma série de premissas: sobre o que o teatro é e o que ele pode ser, sobre o potencial que ele tem para concretizar e fazer desdobrar o projeto fundamental da estética modernista de conectar arte e vida.
Assim, a estratégia cênica adotada pelo grupo mostra-se como mecanismo potente de representação (ou apresentação) da realidade, seja por não querer negar em momento algum suas próprias limitações representativas, por evidenciar que todo relato de uma história significa adotar um ponto de vista ou por concretizar o desejo, tão caro a essa geração, de partilhar perguntas publicamente, mais do que de dar respostas. E mostrar para nós, através do espetáculo, que o teatro pode ser um bom lugar para isso.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Maria Eugênia de Menezes, do Teatrojornal, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.