— por Fernando Barcellos —
Crítica a partir de “Dança Doente”, de Marcelo Evelin (PI), vista na Bienal Sesc de Dança 2017
Dependendo do campo de conhecimento em que se está operando, a palavra doença pode assumir diversos significados. Na área da saúde, é utilizada para definir a alteração no estado de saúde de um ser, manifestada através de um conjunto de sintomas, isto é, sinais de que o corpo não está funcionando como deveria. Neste caso, a doença pode ter inúmeras causas, não limitadas aos exemplos seguintes: um patógeno invasor que faz o corpo perecer; uma anomalia na reprodução celular que provoca tumores; uma variação genética que altera o funcionamento biológico do corpo; ou um trauma psíquico violento. Por outro lado, na dinâmica das relações humanas cotidianas, frequentemente empregamos esta palavra para denominar o mal funcionamento destas relações: um casamento doente; uma amizade doente; um amor doente. De forma mais ampla, as variações da palavra doença também podem ser utilizadas para descrever anomalias na estrutura e no funcionamento das macroinstituições: a sociedade está doente; a Igreja está doente; a política brasileira está doente.
Em todos os sentidos abordados acima, seria possível afirmar que a doença está intimamente atrelada a uma noção de negatividade, destruição, morte, sofrimento e erro. Entretanto, seria pertinente levantar aqui um questionamento: não há ainda outro sentido da palavra doença, que não localiza seu significado em nenhum dos polos do binômio negativo/positivo, mas que dança no olho do furacão formado pelo embate entre estes polos? Um sentido borrado, mais atrelado à ideia de transformação do que à noção de mal que precisa ser curado? Uma doença necessária, que mata para que nasça algo diferente?
A obra Dança Doente, de Marcelo Evelin/ Demolition Incorporada, componente da programação da Bienal SESC de Dança 2017 que ocorreu em Campinas entre os dias 14 e 24 de setembro, talvez relacione-se, de maneira mais ou menos explícita, aos significados da palavra doença levantados anteriormente. Nela, um grupo de 10 intérpretes constrói ao longo de 90 minutos uma experiência coletiva utilizando movimentos, sonoridades, tecidos, luzes e cores, consolidando um ritual que busca envolver performers e público em uma trama de adoecimento, morte e transformação.
Penso que conhecer um pouco da trajetória da Demolition Incorporada nos permite aproximar deste outro sentido de doença que, ao meu ver, faz-se presente na obra de Evelin e dxs demais demolidores. A plataforma de criação em dança Demolition Incorporada foi criada no inverno de 1995, em Nova Iorque, pelo coreógrafo Marcelo Evelin e outrxs colaboradorxs. Desde então, essa plataforma móvel – atualmente em Teresina, no estado do Piauí, mas propondo-se a estabelecer parcerias em diferentes lugares do mundo – segue suas atividades orientada por práticas colaborativas de criação, alternativas aos modos pelos quais geralmente funcionam grupos e companhias fixas. Segundo o site, a ideia de demolição contida no nome desloca-se do sentido tradicional de destruição ao afirmar que “demolir é remover um volume de forma específica, para ali, naquele contexto, fazer surgir um outro”. Talvez esta afirmação seja a porta de entrada para entender o sentido de uma dança adoecida, em que a doença mata um volume de forma específica, para fazer nascer um outro.
Retornemos então para Dança Doente. Ao observar o palco momentos antes do início da obra, o público se depara com um tablado praticamente nu. Há apenas dois performers que controlam a luz e o som, e um tecido preto na metade direita do palco que cobre parte do pé direito. Acredito que o espaço escolhido para a realização da performance (um tablado montado no pátio externo do Centro Cultural de Inclusão e Integração Social da UNICAMP – CIS Guanabara, a antiga estação ferroviária Guanabara) contribui de maneira interessante para as ações que se seguirão. Se de fato Dança Doente pode ser entendida como um ritual de transformação, é natural que ocorra em um pátio praticamente a céu aberto. Afinal, são nos terreiros que acontecem as festas rituais para xs orixás, recheadas de dança, som e fúria.
Entretanto, esta atmosfera estável não dura por muito tempo. Subitamente, como uma injeção que introduz na corrente sanguínea um patógeno invasor, o espaço cênico é invadido pelxs performers e pela trilha sonora que, a partir daí, compõem com diferentes elementos utilizados pontualmente (palhas, penas, rendas e tecidos) as texturas dramatúrgicas da obra. Os corpos, inicialmente imóveis, parecem querer demarcar seu lugar no espaço-tempo de forma inabalável, como se quisessem desesperadamente vencer a força de uma doença da qual não se pode fugir.
Inesperadamente, um dos corpos é tomado por uma movimentação rápida e vertiginosa, composta em sua maioria por espirais, espasmos e torções, remetendo às danças incorporadas presentes nos rituais religiosos afro-brasileiros. A relação é, porém, apenas sugerida: durante toda a obra xs interpretes constroem sua movimentação sem se entregarem a clichês ou estereótipos, seja dos movimentos do candomblé, seja dos movimentos da dança Butô (duas referências primárias da obra, conforme nos informa sua sinopse). Pouco a pouco, o corpo de cada umx dxs intérpretes sucumbe à movimentação e dança em um transe coletivo que ocupa todo o palco e, por vezes, seu exterior, criando uma espécie de geografia da doença que acomete gradativamente aqueles corpos, traçando desenhos e deixando rastros.
Entendo que Dança Doente tenta ampliar o sentido da palavra doença, visando abarcar a ideia de que, através da dela, opera-se sempre um fenômeno de transformação a partir do qual é possível redescobrir a si mesmo, bem como a relação com o outro e com o espaço em que se vive. Ao privilegiar corpos em cena que fogem do estereótipo tradicional dx bailarinx (magrx, longilínex, depiladx) e que dançam construindo movimentos assimétricos, retorcidos e espasmódicos – que também se distanciam de certo formalismo presente em alguns espetáculos de dança – é possível dizer que a doença que acomete a dança de Evelin e suas/seus parceirxs pretende matar/demolir certo padrão de dança/movimento para fazer nascer um outro/uns outros, talvez mais livre(s) e humano(s).
Ao escancarar o contato tão visceral e íntimo dos corpos de dois homens – em uma cena que nos remete aos mitos de origem da criação do universo, nos quais frequentemente duas ou mais forças da natureza se encontram em uma explosão furiosa – a perspectiva transformadora da doença também se faz presente, pois pretende demolir/matar certo padrão de origem/criação do universo para fazer nascer um outro/uns outros, talvez menos conservador(es) e limitado(s).
Ao propor na cena final uma caminhada dilatada que dura vários minutos, embalada pelo dedilhar espaçado de um pequeno instrumento de corda, o coletivo pretende adoecer nossa noção de tempo, ao demolir/matar certo padrão de velocidade que impera nas relações contemporâneas para fazer nascer um outro/uns outros, talvez mais perene(s) e propício(s) ao estabelecimento de relações menos superficiais. É a partir deste mecanismo de adoecimento/morte/transformação que o coletivo tenta operar em cena um ritual do qual x espectadorx é testemunha.
Em tempos tão obscuros, nos quais assistimos espantados ao reaparecimento de grupos conservadores radicais nos diversos campos da vida pública (política, religião, sistema judiciário, educação, entre outros), obras com Dança Doente são, além de necessárias, urgentes. Antonin Artaud escreveu no início do século 20 (há cerca de 100 anos) – no prefácio de O Teatro e seu Duplo, uma de suas obras mais conhecidas – que “há um estranho paralelismo entre esse esboroamento generalizado da vida que está na base da desmoralização atual e a preocupação com uma cultura que nunca coincidiu com a vida e que é feita para reger a vida”.
Se nos voltarmos para o caso da censura da exposição QueerMuseum pelo Santander Cultural após um boicote coletivo liderado pelo Movimento Brasil Livre, ou para o impedimento judicial de realização de uma peça em que Jesus era interpretado por uma mulher trans, ou ainda para a recente liminar que determina que o Conselho Federal de Psicologia não se posicione de maneira contrária a tratamentos de reversão sexual, perceberemos como as impressões de Artaud não estão datadas. Enquanto em Brasília somos governados por políticos que são em sua maioria criminosos denunciados pela Justiça (incluindo o Presidente da República), grupos ultrarradicais preocupam-se em defender um padrão de cultura que sempre excluiu e marginalizou. Mais do que nunca, precisamos diagnosticar propostas artísticas doentes e fazê-las persistir, para que, como em uma epidemia, dancemos todos doentes. Transformados.