Crítica do espetáculo Democracia, de Felipe Hirsch (Brasil).
– por Soraya Martins
Democracia. Escrito bem grande no fundo do palco. Com luzes. Funcionando como cenário-texto para tecer um jogo niilista e trágico de uma geração chilena que viveu a ditadura de 1973 a 1987. A peça do diretor Felipe Hirsch, Democracia, com coprodução da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp, a Fundacion Teatro a Mil e Teatro Universidad Finis Terrae, propõe investigar, de acordo com a sinopse, entre outras coisas, as complexidades da democracia no mundo, fazendo uma crítica à ideologia dominante da meritocracia. Fala do Chile, fala do Brasil. Pergunta número 1: Quais os corpos autorizados a estarem no palco para falar de democracia, desigualdade, ética e economia? a) Todos b) Nenhum c) Os privilegiados d) Eles e) Os outros.
A peça se estabelece a partir de um jogo em que se lança uma palavra, início de uma frase ou uma pergunta e logo após tem-se as possibilidades de respostas. Exemplo: Quais os corpos autorizados a estarem no palco para falar de democracia, desigualdade, ética e economia? a) Todos b) Nenhum c) Os privilegiados d) Eles e) Os outros. A repetição é uma marca desse jogo, que guia o espetáculo do início ao fim. A repetição como proposta estética, que leva o espectador a uma exaustão. É a pergunta: o que essa repetição evoca como significado? Pensar no como/na forma em que se dá Democracia, é pensar em uma espécie de melancolia/niilismo da forma, com total consciência do passado que não passou, de uma ferida aberta social transformada em potência criadora?
Tem-se uma repetição do texto e do próprio jogo de perguntas e possibilidades de respostas que é o contrário de uma repetição espetacular, ou seja, um repetir que faz emergir a potência dos choques e perturbações, desloca o foco do olhar, que nunca é a repetição do mesmo. O horizonte de expectativa do público não é deslocado, pois dessa prática não surge um significante novo que vai paulatinamente inscrevendo a performance em novos saberes sociais e históricos. Aqui a repetição como forma, que volta incessantemente ao passado, não estabelece fissuras e cesuras com o continuum da história, não mantém a tensão, historicamente crucial que pauta as relações entre indivíduo e história. Da repetição tem-se pequenos alívios cômicos.
Como tecer as lembranças e rememorações (da ditadura chilena, da ditadura do Brasil, do mundo) não como simplesmente a particularidade de um acontecimento, mas como aquilo que nele é criação específica, emergência do novo – um lembrar criador e transformador? Espiralar, como coloca Leda Maria Martins, que “atualiza os diapasões da memória, lembranças resvaladas de esquecimento, tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios”. Emergência do novo, de onde verdadeiramente se pode refletir sobre as complexidades da democracia, o mérito, “a ditadura, a educação, a economia, a desigualdade, a ética e, inclusive, a família” e também construir espaços e relações que possam reconfigurar, material e simbolicamente, um território comum.
Em contraste com O Alicerce das vertigens, do congolês Dieudonné Niangouna, peça que também integra a Mostra Internacional de Teatro, Democracia, de Felipe Hirsch, não se apresenta como lugar criador de produção de pensamento crítico sobre a história, a ditadura chilena, as desigualdades e as complexidades do mundo. Não se apresenta como local de produção de história pública no sentido mais sofisticado e abrangente do termo como pretende ser.
Quais os corpos autorizados a estarem no palco para falar de democracia, desigualdade, ética e economia? a) Todos b) Nenhum c) Os privilegiados d) Eles e) Os outros. Se são só os privilegiados, isso é um efeito antidemocrático.
*Texto originalmente publicado pela Prática da Crítica no site da MITsp.