–– por Bremmer Guimarães, com a colaboração de Luciana Romagnolli —
Entrevista com o diretor e dramaturgo Marcio Abreu
Foto de Annelize Tozetto.
Fazer um teatro que possa gerar e compartilhar acontecimentos. Num período de manifestações políticas efusivas nas artes e também contra elas, o cuidado com a forma e a linguagem é uma preocupação do diretor e dramaturgo Márcio Abreu. Quando conversamos, há cerca de dois meses, no teatro da reitoria da UFMG, a onda conservadora e de repressão às artes ainda não esboçava seu ódio como hoje no país, mas as discussões que cercam o tema já eram efervescentes.
Falávamos sobre a presença dos corpos não hegemônicos nos palcos, de suas vozes e lutas cada vez mais presentes na atualidade, e sobre como buscar potências para que as artes, especialmente o teatro, não reproduzam discursos simplesmente, mas possam expandir percepções. A cada dia, um novo movimento. Uma nova resistência.
Num contexto de crise, a possibilidade de transformar. Numa estadia por Belo Horizonte em agosto, como convidado do 49º Festival de Inverno da UFMG, Márcio conversou com o Horizonte da Cena sobre a forma como os acontecimentos políticos do Brasil tem atravessado a sua trajetória enquanto artista, sobre seu encontro com a cena teatral de BH e também falou dos projetos atuais e futuros.
Vendo alguns trabalhos da Companhia Brasileira de Teatro, como “Oxigênio” (2010) e “Isso Te Interessa?” (2011), é possível perceber que os recentes acontecimentos políticos do país, que têm se intensificado desde 2013, afetaram muito a sua criação. O crescimento do movimento negro, feminista e LGBT também é cada vez mais presente. Em relação aos espetáculos anteriores, “Projeto Brasil” (2015) e “Nós” (2016) são uma forma mais concreta de se chegar a essa percepção. Como essas questões políticas afetam realmente o seu trabalho?
Eu acho que é uma teia de relações complexas. Com dimensões conscientes e inconscientes. A primeira coisa que eu acho é que, de certa maneira, historicamente, esses acontecimentos do país a partir de 2013 são posteriores a determinadas decisões que eu acabei tomando no rumo do trabalho com a companhia e que foram também fruto de um movimento contínuo de trabalho e pesquisa. Das inter-relações entre uma peça e outra, aquilo que faz a gente se desdobrar de um trabalho pra outro, o que de uma pesquisa maior acaba perpassando cada trabalho, o como essa pesquisa fez a gente chegar em determinados lugares. “Oxigênio” e “Vida” (2011) já tinham essa proeminência política. A decisão de fazer “Projeto Brasil” é muito anterior aos acontecimentos de 2013. Foi uma coisa que aconteceu entre 2011 e 2012, quando a gente tinha acabado de estrear “Isso Te Interessa?”, e estava se desdobrando no “Esta Criança” (2012). Mas é verdade que o contexto de criação, todos os encontros que a gente teve na época da pesquisa, anterior aos ensaios, a estreia, a vivência das turnês, tudo isso foi sendo atravessado por aquele momento, que não começou também apenas em 2013, e em que jamais imaginaríamos o país onde estamos hoje. E tudo isso que estou falando é uma alternância entre movimentos conscientes e inconscientes. Como respostas de vida, de pensamento. Como você é afetado pelo mundo? Como você responde ao mundo a partir disso? Que é a questão que eu coloquei para o Galpão e que orientou a concepção do “Nós” e o caminho dramatúrgico do espetáculo. O princípio da peça é esse.
É interessante você falar sobre “Oxigênio” e “Vida”, que já tinham essa potência política, mas com esse novo contexto do país, a obra também ganha uma nova leitura.
Sim. Ela reverbera. Porque toda obra é relacional. Digo isso na minha perspectiva de pensar o teatro. Claro que o “Vida” e o “Isso Te Interessa?” vão vibrar agora em outro contexto. Vão existir de outra maneira. Hoje eu vejo o “Isso Te Interessa?” e é uma família icônica, uma família e todas as famílias, uma mãe e todas as mães, ou várias ideias de mães, várias ideias de filhos, e de gerações, e de passagem de tempo sobre a vida das pessoas. Mas a verdade é que ver hoje essa família articulada na passagem do tempo de “Isso Te Interessa?” é ver a ruína de um modelo familiar. O que é muito interessante. De certa maneira, a peça fica mais nítida nesse sentido. Claro que a gente já via essa ruína no modelo de família, mas hoje a discussão sobre isso é muito mais publicizada, experimentada, desdobrada do que era em 2011, quando a gente estreou.
Em continuidade a esse pensamento, aqui em Belo Horizonte e no Brasil como um todo, temos percebido que essas temáticas mais explicitamente políticas têm ocupado cada vez mais os palcos. Com uma mudança também da forma, com discursos mais diretos sendo colocados em cena, depoimentos dessas subjetividades que eram invisibilizadas. No seu trabalho, como está presente essa preocupação entre um lugar mais político, de um discurso direto, e também o lugar da forma, da estética, da poética?
Isso é uma questão fundamental. É um movimento de buscar entender, e quando eu digo entender, eu estou falando de materializar a experiência na criação, na obra de arte, que ganha dimensão política consciente. Tem a ver com construção de linguagem antes de tudo e não com tema. Pra mim tem mais a ver com modo. E não ser veículo pra reprodução de discursos sobre temas. Mas mobilizar possíveis percepções na convivência por meio de uma arte que se pretende viva como o teatro. Viva num sentido que coloca vidas em relação, num período de tempo, vibrantes, permeáveis, a partir de prerrogativas estéticas, do uso da língua, das distensões, da presença, do corpo, do jogo de tensões entre esses elementos. Como se produz imagem para além da bidimensionalidade, a escuta, como as palavras deixam de ser o resíduo de um rumor social e passam a ter vibração própria. Todas essas coisas são obsessões minhas. De certa maneira, são o que me vinculam à busca de uma dimensão política consciente.
Você e a companhia sempre tiveram uma relação muito forte com BH. Um exemplo é a presença junto ao Espanca nas edições do Acto! – Encontro de Teatro. Essa relação tem se intensificado nos últimos anos, com você dirigindo o Grupo Galpão, artistas da cidade como Grace Passô e Felipe Soares também trabalhando com a companhia. Como essa relação com a cidade te transforma?
Eu tenho dito isso há algum tempo, eu acho Belo Horizonte muito singular, especial. BH sempre foi uma cidade que me recebeu de muitas formas. Através da amizade, através da convivência profissional com artistas daqui. Com a Companhia Brasileira nós viemos muito pra cá, fomos construindo um público aqui. E eu vim antes de vir com a companhia, no Sabadão do Cine Horto, junto com o Luís Melo, num trabalho que fiz quando era muito jovem, uma peça inspirada em Tchekhov, chamada “Daqui a Duzentos Anos” (2004). Depois disso, vieram muitos desdobramentos. Veio minha relação com a Babaya. Com o Galpão, já desde aquela época. Com a Grace. Depois o Espanca. Marcelo Veronez. São pessoas, artistas daqui, muito legais. E fui criando essa frequência de vir pra cá, felizmente. Sendo atravessado por um movimento daqui que é muito agregador. Tem uma vivência do coletivo na cidade muito interessante, dos grupos, da dimensão pública das coisas. A vivência dos espaços públicos, da rua, tem uma afirmação política que, nos últimos anos, eu acho das mais potentes no Brasil, não tenho dúvidas disso. Com as gerações novas que chegam se transformando por isso e retransformando também. Por mais que seja conflituoso. Eu entendo que também existem zonas de conflito, lugares difíceis, contrastes. É uma cidade como outras do Brasil, complexa, com uma burguesia intensa, uma política tradicional muito violenta, mas com um contexto de convivência muito favorável, muito generoso e inspirador.
E ao assistir aos trabalhos, o que desperta o seu interesse na cena teatral de BH hoje?
É difícil dizer. Eu percebo que aqui é mais recorrente, de uma forma mais radical, a relação com espaços públicos. Eu acho que isso é uma característica interessante. E eu acho que o teatro que se faz dentro da sala, muitas vezes, também recebe uma referência, recebe algo, que vem dessa dimensão pública. Tem alguma coisa aí que eu não desvendo, que eu não sei falar muito sobre, mas que talvez passe por essa relação entre público e privado. E isso foi algo que também orientou muito meu trabalho com o Galpão, não à toa.
Estamos no contexto de um festival, aqui na UFMG. Você tem sido curador do festival de Curitiba, nos últimos anos. Vivemos um período político com cada vez mais cortes na cultura, diversos projetos sobrevivendo com suas programações reduzidas. Como você vê esse papel da curadoria, esse lugar de resistência dos festivais? Que questões essa experiência tem te trazido?
Eu vejo como lugares de resistência e necessariamente de pensamento em movimento, em transformação. Eu acho que esses lugares existem também na sua potência quando eles se repensam, porque há abalos no mundo. É preciso se repensar, se reestruturar os lugares de encontro. Mas é importante sobretudo ocupar todos os lugares. E acho que a gente tem conseguido fazer transformações.
E você também já tem um futuro trabalho previsto com o Grupo Galpão, tem em breve a estreia do espetáculo “Preto”, que integra uma trilogia junto ao “Projeto Brasil”. Como a relação com artistas com experiência e vivências tão diferentes e distantes interfere no seu trabalho como diretor e dramaturgo?
É uma sorte. Um plantio que gera frutos. Uma horta frondosa. É sobre isso. Sobre a diferença. Sobre a convivência. Sobre a possibilidade de se afetar pelo outro. De encontrar movimento de vida na relação com o outro. É sobre isso. Essas pessoas com trajetórias, referências, repertórios, pontos de vista, corpos e vozes, tão distantes. É um brilho. É fruto de um trabalho que temos desenvolvido, que é gerar a possibilidade desses diálogos. Fico muito feliz de ter tantas pessoas por perto.
“Preto” tem previsão de estreia para novembro. Como tem sido esse processo?
Difícil. Bem difícil. Instigante. Repleto de saberes provisórios, de decisões transitórias, de enfrentamentos, de muita escuta. É perseverança em não cair naquilo que parece ser mais fácil, que dá mais conforto. Na insistência em adiar decisões pra que o processo nos mostre coisas mais potentes, que a gente não é capaz de definir fora dele. Não só racionalmente, mas dentro de um fluxo de criação. O confronto com o real de um jeito complexo, pois há vozes emergentes e legítimas pra falar sobre assuntos. É tentar que o teatro não seja apenas um lugar pra falar sobre as coisas. Não é simples, mas que seja um lugar pra gerar e compartilhar acontecimentos.
“Projeto Brasil” e “Preto” fazem parte de uma trilogia. O terceiro trabalho já tem o título provisório “Vontade de Beleza”. Como esse projeto já afeta o processo atual?
Afeta porque coloca uma perspectiva de continuidade. É a manifestação de um ato de resistência.
E em relação ao Galpão, diferentemente de “Nós”, esse novo trabalho tem uma proposta de partir de um texto prévio?
Não necessariamente. É uma das perspectivas. A gente leu alguns textos, que atravessam a nossa pesquisa e o repertório do grupo. Pode ser que seja uma dramaturgia original. Ainda não sabemos. E depois do “Preto”, antes do Galpão, a gente tem uma outra montagem da Companhia Brasileira, a partir de um texto do Tchekhov. E eu ainda não sei qual vai ser o nome da peça. É um projeto que a gente tem desde 2009 e é um texto nunca traduzido e montado no Brasil. É a primeira peça dele, ela não tem título. Ela foi guardada numa gaveta, foi descoberta depois de sua morte. Ele negou essa peça. Realmente ele era muito jovem quando escreveu. É uma peça jovem, cheia de sobras, meio inacabada, meio esboçada. E vamos fazer um enorme trabalho de adaptação e construção de dramaturgia a partir desse texto.