por Luciana Romagnolli
O paranaense Marino Jr. apresenta seu trabalho como diretor na Mostra Contemporânea do Festival de Curitiba pela primeira vez. Em Tumba de Cães, ele monta o texto da italiana Letizia Russo,ambientado em um mundo esgotado pela guerra. Saiba mais na entrevista abaixo.
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Gostaria que começasse comentando o contexto de produção do espetáculo. Faz parte de uma pesquisa ou de um tipo de linguagem que a cia. Metáfora já vinha desenvolvendo? O que impulsionou esse projeto?Há muito gostaria de apresentar ao público brasileiro um espetáculo que pudesse mostrar algo produzido pela cultura italiana e que fugisse de qualquer clichê. Tenho enorme influência e admiração pelo teatro italiano contemporâneo. Morei por duas vezes na Itália e pude acompanhar de perto a cena daquele país que, de certa forma, reflete muito da estética cênica europeia. Os centros de produção de lá trocam
muitas informações entre si além de coproduzirem seus espetáculos, o que é fundamental para nosso setor. Tive um primeiro contato com a autora em 2003 quando assisti a uma montagem de um texto seu no Teatro Cavalerizza em Reggio nell’Emilia. Em 2011, quando colaborei junto ao Piccolo Teatro di Milano, fiz uma pesquisa a respeito dos autores italianos que haviam sido traduzidos para o português. Um dos nomes que apareceu como expoente da cena italiana foi justamente a Letizia Russo, que em 2001 com apenas 21 anos, havia vencido o prêmio Tondelli, (o mais prestigiado prêmio de dramaturgia na Itália) com “Tomba di Cani”. Em 2013 o texto me foi trazido pela atriz Andressa Medeiros, que faz parte da montagem, e participamos de uma leitura dramática dentro do Mia Cara Curitiba, evento que apresenta de muitas formas a cultura italiana. O resultado positivo nos impulsionou a dar andamento em um projeto de encenação. Tal projeto só poderia acontecer através da Metáfora, que se trata de um coletivo de profissionais cênicos, diretores e atores do Teatro Lala Schneider, que se forma para atuar em projetos semelhantes a este.
Li a Letizia Russo dizer que o que interessa a ela no teatro é explorar os pontos de vistas de diferentes pessoas. Isso faz sentido para o espetáculo Tumba de Cães? Se sim, como essas perspectivas distintas aparecem na dramaturgia?
Sim. Uma das tantas características da dramaturgia dela é a complexidade das personagens. A experiência de vida e a história de cada uma delas fazem com que elas tenham pontos de vista muito diferentes e distintos entre si. É justamente isto que as torna tão reais. São pessoas, absurdamente vivas, assombradas por problemas do presente e também por fantasmas do passado que põem pra fora lentamente suas angústias e conflitos. Tem uma frase dela que explica um pouco seu método de trabalho em Tumba de Cães: “Porque escrevi? Porque aquilo que faço é observar. Entender não é que me interessa tanto”. Fico pensando: as pessoas fazem coisas boas e más de acordo com seus critérios morais. Quando o público vier ao teatro irá perceber que: um esperado término de uma guerra em um determinado país pode ter significados muito distintos sob a ótica de cada uma das personagens.
Como você se apropria do texto dela para criar a encenação?Dando ao público pontos de vista distintos para a ação. A cenografia e a luz criadas por João Luiz Fiani quebram a inércia da cena. Assim, o ponto de vista do público ao acompanhar a narrativa nunca é o mesmo.
Todavia este é um espetáculo de texto e interpretação. Fico pouco confortável em utilizar a palavra encenação, uma vez que pode indicar uma ampla proposta estética. Não que não haja, mas como artista e pela experiência que tenho ao longo de tantos anos acredito que a matéria prima do teatro de prosa é e sempre será o texto. O ingrediente principal. E quando você tem a oportunidade de dirigir um espetáculo a
partir de uma matéria prima de qualidade, você deve ter cautela com as escolhas que faz. No caso deste espetáculo tenho procurado valorizar o subtexto, aquilo que não está escrito e que não é dito pelas personagens. Os conflitos que elas carregam, mas que não colocam para fora. Vai parecer paradoxal, mas posso dizer que se a direção conseguir ser discreta aos olhos do público e sutilmente inventiva na forma como apresenta o espetáculo teremos atingido o objetivo maior da montagem.
O espetáculo se apresenta como um drama, contudo, passa-se em um mundo apocalíptico. Como esse mundo é retratado pela linguagem visual do espetáculo e pelo tipo de atuação? Podemos esperar um drama no sentido clássico?Tem duas informações importantes para nós e que estão presentes no texto da Letizia: “ação em tempo presente” e o “não lugar”. Isso nos ajuda a eliminar qualquer tipo de clichê sobre o macrotema apresentado: a guerra. Sim é um mundo apocalíptico. Como poderia ser o Afeganistão e o Iraque de 2002, a Síria e a Palestina de hoje ou o Vietnã de 1975. Ou quem sabe um futuro conflito de grandes potências militares disputando hegemonia no leste europeu ou no norte da África. Então a genialidade do texto e por consequência da nossa montagem, foi ter como objetivo principal os dramas individuais das personagens que se transitam por este contexto mais amplo, da guerra. Visualmente falando a ausência, ou melhor dizendo, a escassez de elementos auxilia a criar a atmosfera vazia que o espetáculo necessita. Com relação à
atuação temos sim, um drama, quase familiar, onde as personagens munidas de grande força dramática demonstram paradoxalmente uma disposição para superar a situação limite de constante espera onde: “os anos voam, mas as horas não passam”. Uma espera pelo fim. Um fim que nunca chega. Exatamente como em “Final de Partida” de Beckett. Isso por si só já diz que não se trata propriamente de um drama clássico, mas a essência está lá.
Como está sendo trabalhar com Ranieri González?
Ranieri é um amigo de longa data. Temos uma história muito bacana. Estivemos juntos em Aurora da Minha Vida, com direção de Gabriel Villela, em 1997 pelo TCP/Guaira. Depois entre 1998 e 2000 ele atuou em vários espetáculos conosco. Mas a escolha não se deu por amizade e sim pela singularidade de seu trabalho. Quando o convidei no dia seguinte ele apareceu com o longo texto cheio de anotações. Um profissional dedicado, criativo, preciso e talentoso. Algo raro no teatro atualmente de hoje. O fato de estar trabalhando com textos de grande importância na cena atual contou também. A forma inteligente como conduz seu trabalho está ajudando a desenvolver o processo de forma mais ágil e até sensível. Seu personagem, Johnny, praticamente não sai de cena e conduz toda a história. Ele cuida de sua mãe cega (Simone Klein) e mantém um relacionamento com a vizinha Mánia (Andressa Medeiros) de onde deriva a maior parte de seus problemas na ação.
Se pensarmos nas recentes ondas de calor e frio acima da média e outras mudanças ambientais, assim como nas manifestações populares desde junho, quais paralelos traça entre o espetáculo e o momento atual?
Sempre que se fala sobre guerra a maior parte dos brasileiros mantém uma postura distante, até certa forma alienada. Nossa história de poucos conflitos bélicos não ajuda a formar uma opinião crítica sobre conflitos espalhados pelo mundo. É como se vivêssemos em uma ilha. A peça mostra que a manutenção da guerra em países em conflito é muito importante sob aspectos muito sombrios. Mais importante do que um tratado de paz. Além disso grande parte dos conflitos que acontecem hoje no planeta não são por razões sensatas, ou críveis sob a nossa ótica ocidental. O texto aborda isso de forma categórica: “Querem algo pelo que lutar? Esqueçam Deus. A água é Deus e nossa senhora”. Tenho a plena convicção de que em razão do desequilíbrio climático, em breve o mundo passará por uma escassez de recursos naturais. O crescimento populacional desproporcional à quantidade que planeta consegue produzir alimentos será um ponto crucial para sobrevivência da espécie humana. Este dois fatores somados deverão aumentar os conflitos entre nações, principalmente aquelas vizinhas. Basta que olhemos para a Ucrânia, onde um pouco desta teoria parece estar sendo ensaiada. Um país dependente do gás russo, mas onde a vontade popular se manifesta de forma mais forte desejando um alinhamento com a cultura ocidental. Ou o que dizer do conflito da Síria? Afinal entendemos mesmo os motivos para aquilo? Todavia, nosso espetáculo mostra que mesmo nestes conflitos, em uma situação extrema, as pessoas continuam vivendo, comendo, dormindo e traindo umas às outras. Enfim, acho que no nosso “tempo presente” o que menos há é escassez de paralelos entre o espetáculo e o mundo de hoje.