(Foto de capa: Guto Muniz. Espetáculo: Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos).
Por Victor Guimarães
Este texto integra a cobertura da 16ª edição do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte (FIT-BH) e foi escrito a partir de vários espetáculos apresentados durante o festival
Minha mãe não é fotógrafa, nem escritora. Mas fotografa e escreve. Entre o fim dos anos 1980 e o começo dos 1990, fazia isso com mais frequência. Com os dois filhos pequenos, nas folgas do trabalho como professora na escola pública, registrava nossa infância com uma pequena câmera e montava as fotos em grandes álbuns com jeito de livro infantil. Um detalhe sempre me encantou nesses objetos: nos cantos das fotografias, ou no espaço entre uma e outra na página do álbum, ela anotava frases, entre a ternura e o humor. Eram diálogos imaginários entre os personagens retratados – principalmente meu pai, meu irmão e eu –, comentários irônicos ou pequenas fabulações. A imagem se articulava ao escrito, e permanecia no tempo atrelada a essa breve fulguração textual. Este texto toma emprestado o método de minha mãe, Iêda Valadares Ribeiro Guimarães, para montar uma espécie de álbum comentado de memórias do Festival Internacional de Teatro Palco & Rua de Belo Horizonte de 2024.
Na impossibilidade de dar conta dos vários espetáculos em sua integridade, retenho um momento, uma imagem, uma cena vivida em cada um deles, para tecer um pequeno comentário crítico. A descrição é um instantâneo de uma memória que ficou em mim e que deseja ficar no tempo (outro dia, no lançamento do livro do Horizonte da Cena, alguém comentou sobre os textos críticos que desapareceram do site de algum FIT passado e não se encontram mais em nenhum lugar na Internet, o que parece tornar essa tarefa algo necessária). O breve comentário crítico é um vislumbre do encontro com cada espetáculo, sem pretensão de esgotá-lo, mas com o desejo de perpetuar um rastro para o futuro. O FIT deste ano, para mim, ficará marcado como um festival que frequentei em condições muito particulares, pois alternei sempre entre a ida aos espetáculos e a volta ao hospital, para acompanhar minha mãe em uma temporada de internação. As memórias aqui reunidas foram fabricadas nesse contexto, e rascunhadas na cama do quarto. Nada mais justo, então, que tomar de empréstimo o método memorialístico-fabulatório dela, que foi minha interlocutora primeira nos últimos dias.
Memória 1. Quinta-feira, 20 de junho, pátio externo da FUNARTE-MG.
Entre carrinhos de supermercado gigantes, enormes cifrões de fogo e estruturas metálicas povoadas pela trupe valenciana Xarxe Teatre, uma imagem ficará para sempre nas retinas de quem presenciou Papers!. No momento em que os personagens oprimidos estão em plena revolta contra os poderes constituídos, um automóvel Uno vermelho é capotado com as mãos pelas atrizes e atores, no centro do gramado. O carro aparece subitamente, é empurrado até o centro do gramado e então tombado pelo elenco. A proeza física e a grandiosidade do gesto impregnam a plateia, que vibra e aplaude em cena aberta. Como diz Felipe Cordeiro na crítica publicada aqui no Horizonte, o espetáculo é mesmo bastante previsível, suas imagens são óbvias, e não há nenhum espaço de interrogação, nenhum desencontro produtivo entre plateia e atores. Mas um Uno vermelho foi tombado com as mãos, no centro de BH, a poucos metros da Praça da Estação. Para quem atravessou anos emblemáticos de protestos de rua e repressão violenta nas ruas dessa cidade e sempre sonhou em tombar um carro da polícia, é uma imagem e tanto.
Memória 2. Sábado, 22 de junho, Galpão 4 da FUNARTE-MG.
Zora Santos nos conduz por um espaço mutante, entre memórias de infância e reminiscências culinárias. A certa altura, ela pica cebolas numa tábua de madeira com uma faca grande, para logo acrescentá-las a uma feijoada em processo. À destreza no procedimento, vem se somar um microfone, manuseado por uma das musicistas do coro, que logo transformará o barulho do corte da cebola em música eletrônica, filtrada por uma mesa de som. O gesto aprofunda a pesquisa das ficções sônicas de Grace Passô e faz pensar em Julio Bressane auscultando pinturas rupestres em rochas imemoriais com um microfone em A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (2023). No desejo de escutar o som dos ancestrais, a operação vanguardista de fazer música concreta com o gesto de uma mulher negra picando cebola: inverter hierarquias entre as artes do dia-a-dia e as do palco, curto-circuitar tempos históricos, num arranjo entre passado longínquo e presente tecnológico. O fim é uma outra coisa ausculta sobrevivências no agora, sacode a poeira do cotidiano submerso, para nos fazer escutar o som do que se recusa a morrer.
Memória 3. Domingo, 23 de junho, Teatro 1 do CCBB-BH
Um palco quase nu, com objetos manipuláveis pelos atores – mesas e cadeiras com rodinhas – e uma tela ao fundo, que abriga projeções em vídeo. Duas atrizes, quatro atores, que se revezam na interpretação dos personagens principais. O minimalismo cênico do Vestido de Noiva do Grupo Oficcina Multimédia dá um tratamento contemporâneo à célebre peça de Nelson Rodrigues, considerada por muitos um marco inaugural do teatro moderno brasileiro e encenada pela primeira vez em 1943 por Ziembinski. Se na estrutura prevista pelas rubricas do texto original havia três planos apartados no cenário – a alucinação, a memória e a realidade –, que fragmentavam a psique da jovem senhora Alaíde, aqui há um enxugamento dos materiais e a construção de uma espécie de looping, feito de repetições, idas e vindas narrativas, movimentos circulares no palco. A secura dos elementos contrasta com a estridência das atuações e com o ritmo vertiginoso, feito de cortes abruptos na luz e do aparecimento súbito dos vídeos. Se a linguagem visual e a dramaturgia de início impressionam, no entanto, o espetáculo logo deixa de surpreender. Do meio para o fim, a narração se aquieta, as cenas tornam-se lineares e dramáticas, com os diálogos no comando de tudo. O envelope é contemporâneo, mas o coração do espetáculo parece bater num ritmo emprestado, como se a atualidade de alguns elementos fosse apenas a casca de uma encenação, no fundo, bastante conservadora. A certa altura, é como se o quebra-cabeças estivesse todo esfacelado, disposto na mesa, mas ninguém mais se atrevesse a jogar com ele. Se Ziembinski e Nelson soavam moderníssimos em 1943, esse novo Vestido de Noiva parece gasto e puído.
Memória 4. Segunda-feira, 23 de junho, Cerbambu, Ravena (Sabará)
Sentados no interior de uma estrutura feita de bambu, escutamos os gritos em espanhol e mapudungun que vêm de fora. No silêncio contundente da noite na mata do Cerbambu, em Ravena (Sabará), os corpos arrodeiam o espaço circular, batendo na madeira, aos borbotões de revolta e atordoamento. Do lado de dentro, espiamos uma casa mapuche, com suas mesas de madeira, seu fogareiro, seu aconchego para o frio. A imagem sonora é brutal, e dá forma ao desespero diante do desaparecimento da matriarca da família, perseguida pelos carabineros chilenos que militarizam a região indígena onde se passa a história. O jogo com o fora de campo em Ñuke é fortíssimo: a porta de bambu, constantemente aberta e trancada aos puxões durante todo o espetáculo, se converte em protagonista; o espaço lá fora, vasto e semideserto (o lugar está incrustrado numa região alta e com muita mata, até onde o público é transportado pelo festival numa viagem de duas horas de ônibus, partindo do centro de Belo Horizonte), não poderia ser mais apropriado para esse drama de isolamento e resistência. O processo do espetáculo, a relação do grupo Kimvn Teatro com uma comunidade mapuche expressa no convite da diretora antes da entrada, os atores indígenas, os cantos em mapudungun, tudo aponta para um forte coeficiente de autenticidade, frescor e dissidência em relação ao panorama teatral contemporâneo. No entanto, é impossível deixar de reconhecer uma série de formas canônicas do teatro dramático ocidental, como a estrutura linear e o final em gancho, as atuações centradas numa emotividade imediata e, especialmente, a música de cordas sentimental, que pontua cada lance do drama, sequestra a atenção e nos agarra pelo pescoço, como se quisesse nos fazer chorar à força. Sob o peso dessas figuras desgastadas, o espetáculo esperneia entre a adesão ao já visto e a emergência de uma forma nova, que luta para nascer. O som desses corpos em disparada que não vemos e a porta fechada que nos deixa a imaginar são seus sinais mais evidentes.
Memória 5. Sexta-feira, 28 de junho, Grande Teatro do Sesc Palladium.
Corpos masculinos cruzam velozmente o palco, numa dança-motim de atração e repulsa, revolta e caos. Corte abrupto. Escuridão súbita e total. Luz. Os mesmos corpos, antes tomados por um frenesi coreográfico, agora estão de joelhos, dóceis e derrotados, à mercê do que virá. O figurino cinzento e os rostos tapados com as camisetas improvisadas em balaclava acionam imediatamente as memórias mais dolorosas de um país. Corte. Escuridão. Luz. Os corpos agora são um amontoado amorfo, uma pilha de cadáveres no centro do palco. Corte. Escuridão súbita e total. Em poucos segundos, em três cortes de luz, em três arranjos corporais drasticamente distintos, Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos dá forma a décadas de violência acumulada no imaginário brasileiro. O poder das alegorias coreográficas e musicais do espetáculo, a força do encontro entre Pina Bausch e Iansã em Heliópolis, o imprevisto de suas formas mutantes ficará na memória como o auge deste festival.
Memória 6. Domingo, 30 de junho, área externa do Teatro Raul Belém Machado.
La Cocina Pública. Foto: Kika Antunes
Sob uma tenda feita com roupas usadas, enquanto comemos um prato basco com ressonâncias chilenas e mineiras, saído de uma cozinha construída com materiais reciclados, assistimos a uma mãe, moradora do bairro ao redor do Teatro Raul Belém Machado, falar do orgulho que sente de sua filha, estudante de teatro, que acaba de apresentar um breve monólogo no palco aberto para quem quiser chegar. La Cocina Pública não é propriamente um espetáculo, mas a proposição de uma experiência comunitária. Naquela noite, ficamos sabendo que o grupo chileno Teatro Container havia passado a semana instalado no teatro, construindo, em interação com a comunidade local, os aventais-figurinos, a tenda-cenário, a cozinha de onde agora sai o alimento. O clima é de festejo e de despedida emocionada entre os atores e os moradores. É a última apresentação e Valentina, impressionante atriz mirim recrutada no bairro, faz as vezes de representante comunitária. Numa proposta tão aberta ao acaso do engajamento de quem está presente – a noite é pontuada por apresentações de dança cigana, leituras de poemas, canções, algumas combinadas, outras totalmente acidentais –, é difícil falar de teatro no sentido tradicional, e as ferramentas usuais do crítico não têm serventia alguma. Nenhum movimento coreográfico, nenhum jogo de luz, nenhuma cena cuidadosamente preparada pode ser comparada com o olhar daquele pai do Alípio de Melo sentado ao meu lado, que levou os dois filhos ao teatro naquela noite de domingo, e tomava sua cervejinha tranquilamente, enquanto assistia às peripécias de seus vizinhos – os dali do bairro ou os que vieram do outro lado da cordilheira. Fica o testemunho de alguém que veio de outro canto da cidade – como muitos dos espectadores presentes – a ver, ouvir e comer, e terminou por sair de lá com o vislumbre de uma comunidade improvável, que há muito não experimentava.