Julia Guimarães*
Retratar no teatro a subjetividade de personagens excluídos e marginalizados não é tarefa das mais fáceis. Menos ainda quando a abordagem proposta é cômica. Por toda implicação ética e social que circunda esse grupo, muitas vezes o tratamento ou recai no extremo do politicamente correto – e se mostra estéril, pouco problematizador – ou acaba investindo em estereótipos jocosos de um imaginário coletivo, o que ajuda a reforçar o estigma.
Foto Rodrigo Silva (divulgação) |
Nesse sentido, o espetáculo “Julia”, do grupo Cirquinho do Revirado, de Criciuma (SC), consegue manter-se na linha tênue que imprime complexidade e graça ao universo marginal sem pender nem para o olhar assistencialista, nem para o preconceituoso. Após rodar o Brasil pelo projeto Palco Giratório, do Sesc, o espetáculo abriu o OFF Rio Multifestival de Teatro, realizado na cidade de Três Rios (RJ) neste mês de novembro.
Em cena, dois andarilhos que num passado distante possivelmente tiveram seus dias de glória no circo agora se esforçam para construir um número de dança para Julia. Aleijada das duas pernas, a personagem é a figura dominadora da trama e, mesmo sem conseguir movimentar-se, mantém sob seu jugo autoritário o companheiro Palheta, que possui um desajuste mental.
Através de uma relação de dependência mútua – cuja dimensão de afeto só pode ser lida nas entrelinhas de suas ações – a dupla tenta encontrar mecanismos para explorar a limitação física de Julia, através de um número provocativamente batizado de “A dansa da aleijada” (assim mesmo, com S). O objetivo é fazer da sua deficiência um fator de comoção alheia que possa gerar lucro para a dupla seguir sua trajetória de errâncias.
Nesse sentido, a linguagem do bufão e do grotesco que estrutura a encenação colabora bastante para conferir um misto de asco e carisma a esses personagens desviantes, cuja conduta se afasta consideravelmente dos parâmetros morais e higiênicos a que estamos acostumados.
Com esse mote relativamente simples, o espetáculo se constrói em boa medida através da relação com o público. A mesma falta de pudor com que tratam a personagem aleijada e o deficiente mental é também transposta para esse diálogo. A todo momento, a dupla não se furta em ultrapassar certos limites de um terreno seguro quanto ao que é considerado “correto” no tratamento com o espectador.
Contatos físicos muito próximos, beijos, pisoteadas, entre outras ações, fazem parte dessa polêmica radicalidade amoral adotada pelos personagens, muito pertinente ao seu universo, e que escapa da agressividade justamente por estar ancorada a uma convenção cênica e a um contexto temático bem definidos.
É nesse jogo de comicidade, risco e transgressões morais que o espetáculo consegue tornar mais complexas as subjetividades dessas figuras e sua relação com a sociedade. A comercialização da miséria em contraste com a condição cruel dessa mesma miséria ajuda a levantar no público a pergunta sobre como lidar com determinados paradoxos da desigualdade social do nosso país.
E é através de uma dramaturgia que constantemente surpreende e puxa o tapete desse espectador quanto ao entendimento do que seria ‘certo’ e ‘errado’ nesse universo que o espetáculo também serve de espelho para que cada um reflita sobre suas condutas para além da cena. Ao colocar em xeque uma série de falsos moralismos, evidencia o que realmente importa quando se aborda certos territórios de alteridade no contexto brasileiro.
*A jornalista viajou a convite da produção do OFF Rio Multifestival de Teatro.