Crítica da peça E.L.A, de Jéssica Teixeira
Espetáculo apresentado no âmbito na Mostra Lúcia Camargo do Festival de Curitiba de 2023
– por Luciana Romagnolli –
E.L.A chegou a Curitiba após passar por outros importantes festivais brasileiros (FIT-BH, FIT São José do Rio Preto, MITsp etc), sobressaindo no cenário nacional por tocar em uma demanda de representatividade, que visa à garantia de direitos sociais para todos, com a delicadeza de quem cria a partir de uma inquietação sobre o desejo. O solo da artista cearense Jéssica Teixeira abre a cena para comportar as manifestações do corpo que resistem a permitir contabilizá-lo entre outros como mais um, numa lógica agrupável de equivalências. Preserva o que num ser há de único e irrepetível, fazendo, assim, uma torção estética, que afirma o valor do que antes fora motivo de exclusão. É dessa singularidade que faz laço social.
Dos trabalhos que tenho visto na cena contemporânea, E.L.A é um dos mais interessantes sobre a tensão que se dá entre o ser e o corpo. E esta tem sido uma questão recorrente, talvez até mesmo em resposta a outra leva de criações que sustentam uma identificação total entre corpo e ser (com uma certeza, essencialista, sobre o que se é). Nesse trabalho, nem a imagem do corpo nem a identificação consigo mesma são destinos únicos. O que a atriz Jéssica Teixeira mantém vibrando no palco é o desejo que insiste insubmisso às normas.
Para o público, a voz chega antes. A voz da mãe dela, ainda não identificada, nos avisos iniciais. E, então, a voz da atriz, melodiosa, segura, sedutora, a pedir que as luzes se apaguem. No breu, ela compartilha alguns de seus gostos e apresenta uma fábula como uma espécie de enigma: a história da filha do relojoeiro, cuja perfeição escondia o fato de ter nascido uma boneca. Algo do estatuto do corpo reificado já se insinua aqui, algo que a atriz vai explorar mais adiante, fazendo uso de recursos documentais. Entre o relato e o poético, entre o cabaré e a ciência, entre os cálculos e o erotismo, ela põe seu corpo (estranho aos padrões) em trânsito por discursos que o apreenderam e o libertaram.
E.L.A constrói-se com uma variedade de recursos cênicos, sem a intenção de harmonizá-los numa “bela” forma. Algo do disforme sobressai como ética e estética. Há a manipulação de objetos, que pontua a crítica à coisificação do corpo e ao lugar de dejeto que lhe foi designado pelo nazismo. A maquiagem remete a uma boneca ou a uma dançarina dos cabarés alemães dos anos 1920. A leitura de uma carta, o fragmento de um texto de Paul Preciado e a canção de Patti Smith. O duplo entre a dança projetada em vídeo e a executada no palco. Outro duplo no manequim desconexo içado em um dos cantos superiores do palco e o corpete que a artista retira do próprio corpo, como quem despe uma armadura. E há também espaço e tempo para o vazio, para a dissolução, para a falta.
A supressão da imagem e a dissociação entre voz e corpo têm sido operações usadas de modo interessante em alguns espetáculos contemporâneos que se detêm sobre isso que não se deixa capturar na lógica especular. O que de si ou do outro a imagem não mostra. O que em um corpo não é imagem. O que do corpo não se controla, não se conforma às normas. E o que do ser não se identifica ao corpo que se tem. Uma série de dissonâncias com as quais cabe a cada um se haver, mas a E.L.A. se impõe de modo mais evidente, uma vez que o seu corpo é lido socialmente na classe das deformações.
Escrevi “classe” porque se trata de uma classificação. O emprego de uma palavra para dar contornou a uma ideia, excluindo outras. Corpo é outra palavra, sob a qual imaginamos uma série de variações de formas humanas mais ou menos desviantes de um ideal (ainda platônico?), que talvez se assemelhe ao da boneca (inumano).
Jéssica Teixeira expõe alguns fios teóricos dessa construção, que remontam ao discurso eugenista, capaz de reduzir o humano a alguns gramas de material químico e a seu parco valor monetário. E efetiva uma crítica extremamente contundente à associação entre medicina e estética que, se esteve na base do nazismo, ainda hoje prolifera na velocidade irrefreável das mídias sociais, potencializada pelas conexões entre o neoliberalismo e as indústrias da beleza e da saúde, atualizando terrivelmente os discursos contra as “degenerações” das formas de vida e de arte que não seguem o sentido único da norma.
E.L.A denuncia a violência desse sentido único, quando exclui o que dele se desvia como sendo degeneração, destinada ao aniquilamento. Eis o fundamento discriminatório para uma série de discursos de ódio. A arte d’E.L.A é desmontar esses discursos naturalizados e conduzir o olhar do espectador para além e aquém das ignorâncias normalizadas, para aquém e além do instituído como normal, e encontrar ali também a existência ávida. Fazer ressoar, na degeneração do sentido, a pulsação do vivo.