Crítica a partir do espetáculo Nó da Cia de Dança Deborah Colker (RJ).
– por Joelma Xavier –
No dicionário Houaiss, o sentido da palavra ‘nó’ apresenta-se em dez acepções, que transitam da esfera utilitária – situada na ideia de entrelaçamento de cordas e no trabalho de arte marinheira – para uma abordagem metafórica – associada à perspectiva de relacionamentos humanos, oriundos de afetos e de dificuldades. É curioso como um substantivo masculino, monossilábico, possa deslizar em tantas possibilidades de sentido e mais curiosa ainda é a ideia de tudo o que um ‘nó bem dado’ possa conotar socialmente. As noções de nó, presentes nos atos de ‘amarrar, desamarrar, prender, dependurar’ já trazem em si um universo de sugestões imagéticas que podem ir dos atos criminosos de crueldade e tortura até aos deleites sadomasoquistas, apreciados no campo do desejo e da sensualidade. E, assim, um nó (um simples nó!) evoca movimentos de pulsões de vida e morte. Talvez esteja nessa potência rizomática do nó uma das bases de construção técnica e artística do espetáculo Nó, da Cia. Deborah Colker (RJ), com estreia mundial em 2005 (na Alemanha) e, novamente, em turnê por algumas cidades brasileiras em 2018.
O espetáculo Nó, segundo Deborah Colker (no livro publicado pela Editora Réptil, em 2013, na comemoração dos 20 anos da companhia), marca a transição da companhia para uma linha de trabalho estético, denominada “dramaturgia dos sentimentos”, mais voltada para investigações sobre desejos e paixões humanas. Nos primeiros espetáculos da companhia, os processos coreográficos engendraram-se em desafios relacionados, sobretudo, aos usos do espaço (verticalidade e planos superpostos) e da gravidade. Elaborada na dinâmica de “uma dramaturgia dos sentimentos” a montagem coreográfica de Nó baseia-se, especialmente, no campo do gestual das paixões e transita nas esferas obscuras do desejo, nos jogos de dominação, no lirismo e na força da trilha sonora e na sensualidade do figurino e do cenário.
Foto de Cafi/ Cia Debora Colker
Na primeira parte da montagem, o cenário é constituído por 120 cordas que, inicialmente, ganham a visualidade de grandes árvores e, ao longo do espetáculo, essas cordas deslizam pelo palco e desenvolvem uma performance visual entre os movimentos coreografados. A sugestão imagética de árvores frondosas nas quais os bailarinos e as bailarinas se dependuram nos remete à percepção dos nós como partes de uma estrutura sólida, que se entrelaçam com precisão técnica. É como se cada nó nos conduzisse às conexões de um desejo que se articula no corpo do objeto e no corpo humano. Explico melhor: o nó de um corpo que arde em suas fantasias (os movimentos dos corpos como objetos de desejo) e o nó em que se transformam as frustrações de um desejo não realizado (os pontos rígidos de longas cordas que se amarram no espaço). Além disso, nos movimentos coreografados, os bailarinos usam cordas vermelhas e guinchos que auxiliam na construção imagética de um ambiente sádico, já que algumas técnicas de bondage são utilizadas para demarcar o campo dos fetiches nas formas de imobilização e de sedução.
Foto de Cafi/ Cia Deborah Colker
Essas cordas, ora perfazem o simbólico de chicotes, rédeas e coleiras, ora se transformam em mordaças e vendas, ora funcionam como algemas. O que temos no simbólico desses acessórios? Um traço da vivência erótica em sua potência: os bailarinos se alternam nas posições de dominadores e de dominados, engendrando uma performance orgiástica, na qual a ordem social pode ser invertida[1] e o senhor serve ao escravo, o patrão obedece ao serviçal, o homem domina a mulher ou outro homem, a mulher domina o homem ou outra mulher (e por aí mais uma infinidade de inversões), sugerindo, anacronicamente, a desordem em que se instauram os delírios Saturnais de Dionísio.
Foto de Cafi/ Cia Deborah Colker
A montagem coreográfica de Nó ainda proporciona um campo de experimentação sensorial ao público espectador, quando os movimentos coreografados ocorrem entre o balanço das enormes cordas (já dissipadas do formato de árvores) e os solos dos bailarinos, sob uma trilha musical com som de arpas e, em outro momento, de piano. O dedilhar de cada som é acompanhado por movimentos precisos e pelo deslizamento das cordas, ocasionando uma dinâmica lírica e essencialmente harmônica dos gestos dançados. O equilíbrio apolíneo das formas, portanto, é evocado nessa dinâmica de sons, movimentos e imagens. No palco, Apolo e Dionísio se manifestam nas potências estéticas do pensamento coreográfico de Deborah Colker.
Na segunda parte do espetáculo, o cenário de cordas é substituído por uma caixa enorme de vidro e os movimentos passam a ganhar uma visualidade nas superfícies transparentes e nos jogos de espelhamentos oriundos dos reflexos nessa caixa (atmosfera apolínea). No release desse espetáculo, no site da Cia. Deborah Colker (http://www.ciadeborahcolker.com.br/), relata-se que parte das inspirações para esse segundo momento da coreografia vem de uma viagem que Deborah Colker “fez a Amsterdã, Holanda, onde visitou o Red Light District (Bairro da Luz Vermelha), em que garotas de programa se expõem em vitrines nas fachadas das casas”. A partir disso, nessa montagem coreográfica, a sugestão simbólica da transgressão, associada à prostituição, e as tensões construídas em torno das imagens de sedução, paixão, envolvimento amoroso e solidão também oferecem materialidade e cores ao campo erótico que se tece na dinâmica dos movimentos (atmosfera dionisíaca).
Foto de Cafi/ Cia Deborah Colker
Na última coreografia do espetáculo, é introduzida uma trilha sonora potente (a voz de Elizeth Cardoso em Preciso aprender a ser só). Os espaços do palco são ocupados, inicialmente, pela voz à capela e, depois, ganha corpo toda a composição sonora, a partir de jogos rítmicos de acordes melódicos, alternados por trechos radiofônicos da voz de Elizeth, o que nos remete à era das cantoras de rádio no Brasil e aos universos atravessados pelas vozes nas tecnologias radiofônicas – um traço memorativo da cultura. O que teríamos aqui? Longe de se pensar num movimento de síntese imagética, o enfoque desse encerramento parece sugerir um retorno à dinâmica das cordas evocadas no cenário e nos instrumentos, presentes na primeira parte do espetáculo. Esse retorno, no entanto, acontece no corpo: os movimentos se tracejam nos movimentos das cordas vocais e nos nós que se enlaçam e se desenlaçam nos gestos dançados pelos bailarinos. Além disso, os jogos complexos de produção artística, elaborados especialmente a partir da alternância entre os traços dionisíacos e apolíneos, conduzem-nos a uma visualização concreta da montagem, na acepção contemporânea do termo: jogos de imagens, de técnicas e de esforços intelectuais e artísticos oriundos de diferentes áreas, no caso específico dessa montagem coreográfica, das técnicas de iluminação, de produção musical, de figurino, de arranjo coreográfico e de execução da performance coreográfica, dentre outras.
Dentro de um campo filosófico, encontramos traços de uma abordagem apolíneo-dionisíaca em Nietzsche[2] (especialmente a partir das obras A Visão dionisíaca de mundo, O nascimento da tragédia e Humano, demasiado humano), na pathosformel (fórmula do páthos) warburguiana, postulada por Aby Warburg (em O Nascimento de Vênus e a Primavera de Sandro Botticelli), nos estudos da imagem e das fórmulas patéticas, desenvolvidos por Didi-Huberman (especialmente em A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg). Certamente, a conexão do pensamento filosófico sobre esses princípios estéticos baseados no sonho (traço apolíneo) e na embriaguez (traço dionisíaco) não se limita a esses autores e é foco da atenção de muitos pensadores, em diferentes momentos dos estudos filosóficos. Nos estudos das artes do espetáculo, especialmente aqueles voltados para o campo da dança, o enfoque sobre o corpo e as paixões permite uma compreensão do gesto dançado como um campo de elaboração patética que, em muito, ultrapassa os procedimentos de técnica corporal e da gramática gestual da dança.
No espetáculo Nó, a coreografia de Deborah Colker se nutre de alta performance técnica, na qual se articulam giros e saltos, desenvolvidos a partir de técnicas do balé clássico, e se constroem movimentos complexos, baseados em técnicas esportivas, como práticas de escalada, dentre as múltiplas misturas da cena contemporânea, meticulosamente, arquitetadas por essa coreógrafa, bailarina e produtora artística (traços do universo apolíneo). Paralelamente a essa dinâmica de precisão técnica, a coreógrafa constrói um universo baseado em sensações, em expressões do desejo (universo dionisíaco) e, consequentemente, o traço patético é evocado, fazendo com que as emoções se tornem, também, elementos das escolhas operadas (intencionalidade) no jogo de produção artística. Desse modo, a imagem do bailarino e da bailarina que participam dessa montagem coreográfica jamais pode ser reduzida ao campo simbólico de uma máquina ou de uma ferramenta artificial, pois o que está em cena são pessoas detentoras de grande preparo técnico, inteligência e sensibilidade. Todo o trabalho engendrado na montagem coreográfica de Nó demarca-se no campo estético do gesto dançado e na linguagem dramatúrgica das emoções. O resultado? Uma trama de nós que tensionam universos de complexidade e de liberdade na criação artística e de nós que deslizam nos experimentos extáticos do desejo e nas tessituras de emoções e pulsões.
Espetáculo assistido em 01/09/2018 no Grande Teatro do Sesc Palladium.
Ficha Técnica (resumida):
Nó – Cia. Deborah Colker
Criação, Coreografia e Direção: DEBORAH COLKER
Direção de Executiva: JOÃO ELIAS
Direção Musical: BERNA CEPPAS
Cenografia e Direção de Arte: GRINGO CARDIA
Figurinos: ALEXANDRE HERCHCOVITCH
Iluminação: JORGINHO DE CARVALHO
Patrocínio Exclusivo: PETROBRAS
Estreia: estreia mundial, em 5 de maio de 2005, no Festival de Dança Movimentos, em Wolfsburg, Alemanha
Site da companhia: http://www.ciadeborahcolker.com.br/
Joelma Xavier é professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET/MG, campus Belo Horizonte. Atua nos campos de Pesquisa de Teoria da Literatura e de Literatura Comparada, especialmente em Literatura, outras Artes e Mídias.
[1] Abordagem desenvolvida a partir da noção de ‘erotismo’, proposta por Georges Bataille, especialmente na parte I. BATAILLE, G. O erotismo. Trad. de Cláudia Fares. São Paulo: ARX, 2004.
[2] Em entrevista publicada no portal da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, Deborah Colker fala especialmente das influências de Nietzsche e de Goethe para a elaboração de sua “dramaturgia dos sentimentos”. Disponível em: http://www.cultura.rj.gov.br/materias/20-anos-entre-a-loucura-e-a-disciplina. Especificamente sobre a montagem do espetáculo Nó, a coreógrafa fala sobre influências das leituras de Humano, demasiado humano, de Nietzsche.