– por Felipe Cordeiro –
A frase que intitula esta crítica é atribuída ao costureiro Paco Jaumandreu no filme “Eva Perón: la verdadera historia”(1996), dirigido por Juan Carlos Desanzo. Jaumandreu foi o responsável por cuidar do guarda-roupas de Eva a partir do momento em que ela se torna a primeira-dama da Argentina. O diálogo entre o estilista e Evita (como era chamada por seus “descamisados”) pontua a forma como pessoas marginalizadas pela alta sociedade argentina eram vistas na primeira metade do séxulo XX: com extremo desdém e tentativas de invalidação de suas existências. Recorro à frase para introduzir o espetáculo dirigido por Marcial Di Fonzo Bo, a que tive a oportunidade de assistir em dois dias diferentes no Teatro Nacional Argentino – Teatro Cervantes, em Buenos Aires, no início de agosto. A obra traz dois textos teatrais de Copi apresentados em sequência, cindidos apenas por um entreato. São elas “El homossexual o la dificultad de expresarse” e “Eva Perón”.
Pouco conhecido no Brasil, Copi é a persona adotada por Raúl Damonte Botana (Buenos Aires, 1939 – Paris, 1987) para assinar seus trabalhos artísticos. Filho de pais vinculados à cultura, Copi viveu junto à família o exílio no Uruguai e posteriormente na França, onde se radicou em 1962. Foi um dos fundadores do movimento Pánico, juntamente com outros grandes nomes das artes como Alejandro Jodorowsky e Fernando Arrabal. Suas obras são centradas em um humor transgressor das normas vigentes, bem como em uma crítica despudorada das sociedades que lhe foram contemporâneas. Além de peças teatrais, escreveu também romances, caricaturas e outras formas de relatos. Copi morreu em decorrência da AIDS; no mesmo momento ensaiava, ironicamente, a peça “Una visita inoportuna”, texto em que o protagonista também morre vitimado pela doença. Copi costumava brincar que era tão transgressor que até na morte pela síndrome ele estrearia antes dos outros.
O primeiro ato, El homosexual o la dificultad de expresarse, apresenta a história das personagens Mãe e Irina, que discutem sobre as faltas da filha em suas aulas de piano. Elas vivem em uma Sibéria infestada por lobos, onde a temperatura oscila em torno de -40ºC. Por isso, a cenografia remonta diversas montanhas de neve de distintos tamanhos, delimitadas ao fundo por dois painéis cinzas formados pela junção de diferentes placas simétricas de metal. Durante o início da encenação, percebe-se uma atuação embasada em uma estética do grotesco com este cenário a princípio imaculado.
Os diálogos rejeitam a seriedade e criticam a razão pura, apresentando personagens sem leis, pudores e comandos. É o que podemos observar no diálogo em que Irina diz que o pai do filho que está esperando é sua própria Mãe:
Mãe: Não transamos há anos!
Irina: E no trem?
Mãe: Em que trem?
Irina: O único trem que tomamos foi há quatro meses, para vir à Sibéria.
Mãe: Mas estávamos algemadas!
Irina: Então talvez seja do tio Pierre.
Mãe: Como do tio Pierre?
Irina: Na Estação. Quando desmaiei e você foi buscar o conhaque na maleta.
Mãe: Não os deixei mais de dois minutos sozinhos!
Irina: Estou com vontade de ir ao banheiro, mamãe.
Mãe: Você não comeu nada e quer ir ao banheiro?
Irina: É para cagar o bebê.
Mãe: Tem vontade de abortar?
Irina: Sim.
Mãe: Vem que eu te ajudo.
[Esta e as demais traduções presentes nesta crítica são de minha autoria]
As personagens realizam o aborto, em uma cena mais humorística que aspirante à realidade. Porém, não se trata de um humor que está simplesmente a serviço do entretenimento. É uma comicidade que flerta com o terror (atribuído ao deus Pã na mitologia grega), ou mesmo com a crueldade do teatro de Antonin Artaud e o surrealismo presente nas vanguardas artísticas do século XX. Um humor que desestabiliza normas que são performadas reiteradamente em nossas sociedades, como a figura da mãe cristã que ama incondicionalmente seus filhos e o tabu existente em torno do tema do aborto.
Os novos personagens que vão se juntando às protagonistas (Senhora Garbo, Garbenko) sugerem que o medo que paira pela atmosfera da encenação tem relação direta com os conflitos entre a China e a União Soviética (lembremos que a peça original estreou em 1971). No entanto, não são fornecidas informações suficientes para que o espectador consiga situar os personagens em uma situação de causalidade explícita entre o contexto público e o privado. Talvez o principal efeito estético seja o de justamente zombar e expor ao ridículo a ruptura sino-soviética sem, contudo, deixar de evidenciar também as próprias incongruências de quem propõe narrativas que colocam essa história em cheque.
Mãe: Não estamos na Sibéria pelas mesmas razões, senhora Garbo.
Garbo: Isso não a impede de conversar comigo, suponho.
Mãe: Podemos falar sobre tudo que queira. As palavras não mudam o mundo.
O conflito inicial do texto, como já assinalamos, consistia nas faltas de Irina nas aulas de piano que fazia com a Senhora Garbo. Mas, com a chegada da professora Garbo, a encenação passa a girar em torno do amor existente entre ela e sua aluna, com a qual desejava fugir para a China, onde viveriam em paz, sem maiores repressões.
Mãe: Minha filha não é uma burguesa, senhora. Nós carregamos um passado sombrio.
Garbo: Também me operaram em Casablanca, senhora Simpson. Tenho um sexo de homem.
Mãe: Não é possível.
Garbo: Toque.
Mãe: E o oficial Garbenko?
Garbo: Me operaram aos dezesseis anos, contra minha vontade.
Mãe: Minha filha e eu mudamos de sexo por vontade própria, senhora. Agora, boa noite.
[…]
Garbo: Sua filha espera um filho meu.
O espetáculo ganha novos contornos rítmicos e cada vez mais escatológicos (com presença de sangue, cuspe, fezes, zoofilia etc). As personagens narram diferentes formas de sexo, tamanhos de “picas” e diversidade de penetração. Alguns recursos conferem imprevisibilidade à encenação e diversas modulações na transposição do texto dramático ao espetacular, como: a utilização de canções dos mais variados estilos; aparição de novos personagens (que entram, de supetão, chutando alguma das barras de metal do painel que compõe o cenário e entrando por elas); bem como tiros na tentativa de matar lobos – ou mesmo a representação desses animais mortos.
O primeiro ato não deixa o espectador em uma posição confortável, pois, ao mesmo tempo em que apresenta suas personagens de forma risível, ele também expõe as fraturas histórico-sociais que oprimem e precarizam esses corpos. Copi, que além de ter escrito o texto também atuou na montagem original, coloca em tensão muitas de nossas assertivas morais. Estar diante dessas imagens, como diria o filósofo Georges Didi-Hubermann, é estar diante do tempo. E essa nunca é uma posição fácil ou simplória, pois em cada imagem existem distintas temporalidades e discursos heterogêneos que não cansam de se chocarem entre si, seja promovendo sínteses ou mesmo reinflamando as discussões.
O ato se encerra com Irina cortando sua própria língua antes de embarcar no trem Transiberiano que a levaria à China junto com a Senhora Garbo. Naquela altura, já sabíamos que ela e Mãe não possuíam parentesco algum e que estavam na Sibéria escondidas de uma possível força repressiva. Já o motivo exato desse exílio forçado perde-se com a linguagem que se vê restringida pela impossibilidade da fala e pelo apagar das luzes do palco.
As cortinas se fecham e nelas se lê projetado: ESTE É UM ENTREATO. Uma personagem que se apresenta como Travesti e possui nítidos traços indígenas assume a cena do intervalo. Aos poucos o espectador entende que ela dá voz a Copi, a partir de recortes de seus textos literários e de entrevistas que deu ao longo da vida, seja comentando suas criações artísticas ou mesmo questões pessoais e familiares. As narrativas acentuam um interesse pelas temáticas das sexualidades e dos gêneros, criticando o fato de serem vistas como divergentes pela sociedade média. As palavras de Copi são marcadas de forma contundente por suas memórias do exílio e por seu constante estrangeirismo onde quer que estivesse. O autor enfrenta esse lugar de desconforto a partir de uma produção iconoclasta, cadenciada por um humor tipicamente argentino e uma linguagem que transgride as normas ao mesmo tempo que violenta possíveis lugares de conforto. Como é o caso do primeiro ato, que põe diante de seu espectador uma ficção centrada em um existencialismo trans ou, segundo pontua Renan Ji, uma distopia trans.
Em busca de atingir tais tensionamentos, a estética do entreato remonta o gênero teatral Vaudeville, uma vez que apresenta atrações distintas (canto, dança, dublagem, contação etc.) e de forte apelo popular de entretenimento.
As cortinas se abrem novamente e agora o palco nu é apresentado – já sem o enorme cenário do ato anterior – com todas suas maquinarias e recursos técnicos e de contrarregragem expostos. A Travesti abandona o proscênio e corre para as mediações da rotunda. Apesar de agora estar pequena diante dos olhos do público, sua presença cênica cresce ao formar uma imagem extremamente potente que é a soma da figura emblemática de seu corpo travestido com o tango que ela dubla e que ressoa altíssimo pelas paredes do suntuoso teatro inaugurado em 1921.
O entreato é bastante extenso, visto que os cenários dos dois atos são bastante complexos e exigem muito tempo para suas devidas montagens. Contudo, toda a transição é realizada de maneira cênica e muito bem cuidada pelo diretor, não chegando a perder o ritmo da encenação. Di Fonzo Bo criou um inventivo encadeamento dos fragmentos heterogêneos, deixando, assim, o trabalho da montagem e do distanciamento serem os grande responsáveis pelo ritmo da peça.
O segundo ato, Eva Perón, é o ponto alto da obra por uma série de fatores. O primeiro deles, porque gira em torno da figura mítica de Evita, que é amplamente reconhecida não apenas na Argentina, mas em toda a América Latina – quiçá em tantas outras regiões do globo, graças ao filme hollywoodiano estrelado por Madonna. Evita, nascida no interior, era filha bastarda do estancieiro Juan Duarte com a costureira Juana Ibarguren. Antes de se tornar líder política, era atriz. O que naquela época era sinônimo de prostituta – pelo menos para as camadas argentinas antiperonistas. “Vamos deixar que uma puta se aposse da presidência desse país?”. E. Perón gostava de dizer que queria ter direitos e fazer parte do Estado para nunca mais ter que ouvir intervenções como “com que direito você diz isso?”. Podemos dizer que, em sua curta vida de 33 anos, seus desejos foram realizados. Quando morreu, em 1952, foi preciso importar flores do Chile – as floriculturas da capital argentina foram esvaziadas.
O Papa Pio XII recebeu cerca de 26 mil petições para que se tornasse santa. Apesar de toda sua importância frente às classes trabalhadoras, na Argentina dizia-se que, de Perón, não perdoavam o presente; de Eva, além do presente, era imperdoável seu passado. Sua figura ascendeu para profanar espaços até então mantidos pela segregação de classe. Mesmo após ter adquirido todo seu prestígio social e político, Evita era tratada como “essa mulher” ou, nos espaços privados, era “a égua, a potranca, puta, copeira, louca, Agripina, Nefertiti, Semprônia etc”.
Voltando à obra, este segundo ato da encenação também é mais suntuoso imageticamente e produz no espectador um efeito de deslumbre frente à beleza dos figurinos de Eva (vestidos, perucas, joias) e à reprodução do que seria o requinte de um palácio presidencial. Para atingir tal objetivo o diretor e a equipe de cenografia demonstram domínio sobre as múltiplas engenhosidades que o teatro (desde que seja feito com subsídios financeiros e patrocínios) permite criar.
Nesta temporada, Eva Perón foi interpretada pelo ator Marco Antonio Caponi. A escolha de a personagem ser interpretada por um homem já vinha de Copi. O próprio entreato havia assinalado que, se a personagem fosse interpretada por uma mulher, seria a história de uma mulher sofrendo com seu câncer em estado terminal. Ao passo que, sendo interpretada por um homem, tal escolha conferiria um caráter grotesco à cena, apresentando uma espécie de king kong. Caponi não se propôs a fazer uma mimesis corporal a fim de reproduzir os gestos e a postura da primeira-dama argentina; manteve os muitos pelos de seu corpo robusto e musculoso, que em nada evoca os 1,65m e o pouco peso que Eva possuía no período final de sua vida.
O espetáculo aborda os últimos momentos de Eva Perón e tudo corre para o desfecho final (sua morte), que já está dado desde a cena inicial da peça. A partir de um jogo de luz realizado com uma tela de shark teeth, vê-se o espírito de Eva sair do próprio corpo.
Historicamente, a dramaturgia coteja o momento quando o presidente Juan Domingo Perón, seu marido, já havia decidido que ela não seria vice na sua chapa para a reeleição (como queria a grande parte dos eleitores), em decorrência de um câncer de útero. Na peça, no entanto, há um anacronismo temporal, pois, como a história já nos contou, a segunda presidência de Perón ocorreu dois meses antes da morte de Eva.
Tanto o texto de Copi quanto a encenação de Di Fonzo Bo não se propõem a fazer propaganda pró ou contra o peronismo. Talvez a única exceção seja o momento em que Caponi, sem sair da personagem, mas se dirigindo à plateia, diz que oferecerá à população aposentadoria aos 50 anos e aborto grátis e seguro. Naquela semana específica, o senado argentino votaria a legalização do aborto no país – que, como sabemos, foi rejeitada. Essa posição pode ser considerada consoante com o partido peronista, visto que, em 1947, o governo peronista instituiu o voto feminino, permitiu que os “filhos ilegítimos” pudessem ter o nome do pai em sua certidão, valorizou a presença das mulheres na política, além de ser o principal elo com a classe obrera do país. Nos dois dias em que assisti ao espetáculo, a plateia aplaudiu este momento em cena aberta. O mais impressionante é que, apesar da latente contemporaneidade, tal fala já constava no texto original da década de 1970.
Sobre a escolha do elenco, todos os personagens são interpretados por homens, tanto as personagens femininas quanto as masculinas. O único caso que foge à regra é a enfermeira, que é interpretada pela atriz Rosario Muma Varela. É ela também a única personagem que atua em um registro mais naturalista durante todo o ato. Enquanto a verdadeira Eva Perón morre aos 33 anos de idade, na ficção ela apenas foge, deixando a enfermeira em seu lugar. A personagem que cuidava de Evita até seus últimos instantes é vestida como a primeira-dama e assassinada com um crucifixo. Tal alegoria remonta o papel violento que a Igreja Católica assume em diversos âmbitos políticos, sendo (apesar de sua imagem sacra) responsável direta ou simbolicamente por tantas mortes ao longo de sua história.
Aqui temos distintas possibilidades de interpretação desta imagem. Uma, corrobora a ideia de que o corpo do homem é uma espécie de câncer nas vivências das mulheres – levando em consideração todo um sistema de imposições patriarcais. Enquanto sofria da doença, Eva era interpretada por um homem. Como disse Copi, para que o câncer se visse mais monstruoso em uma mulher seria necessário que ele fosse construído a partir da figura de um homem. O mito de Eva só assume de fato a figura de uma mulher quando já está morta e, portanto, livre do sofrimento. Outra hipótese que podemos levantar é a de que a personagem da Enfermeira – que sequer tem nome e só é validada a partir de sua força de trabalho e de seu próprio sacrifício – é a única que, com efeito, representa a classe trabalhadora. Por isso, ela era a substância consistentemente real do povo argentino, ao contrário das outras personagens que são farsescas e atendem a uma lógica do simulacro.
Outro ponto de profanação do mito que podemos especular nesta cena é o fato de que para que a Enfermeira se transformasse em Eva, bastava que ela se vestisse como a primeira-dama. Critica-se aqui todo a ornamentação e indumentária do poder, que para se legitimar perante uma sociedade carece de toda uma mise-en-scène. O texto de Copi deixa sem pele toda a montagem do poder, suas narrativas e linhas discursivas. Talvez deva-se a tais imagens, consideradas blasfêmias pelos argentinos durante tantos anos, o fato de que essa peça só foi publicada em Buenos Aires nos anos 2000, cerca de trinta anos após sua escrita. A obra era considerada repulsiva até mesmo pela família do autor.
Acredito que um ponto chave para entender a produção teatral de Copi é saber que, apesar de se inserir numa corrente de vanguarda, ela propõe suas reconfigurações estéticas a partir de um texto cuidadosamente construído. Assim, ele se distingue dos contemporâneos que constroem obras surrealistas e happenings nos quais o que está em jogo não é necessariamente um discurso lógico-articulado. Distingue-se também dos que se preocupam em comunicar um conteúdo ostensivamente político, mas, em termos estéticos, não possuem reconfigurações de linguagens que rompam ou acrescentem algo ao campo da arte. Conforme pontuou Augusto Boal:
Existe forte tendência para que uma obra seja julgada levando-se demasiado em conta as ideias progressistas ou reacionárias contidas no texto, transformando-se este no único padrão de excelência ou inferioridade. Procede-se ao julgamento ético, abandonando-se o estético.
Ou seja, Copi possui uma produção que não se abstém de encontrar uma linguagem literária que formalize esteticamente as problemáticas com as quais deseja trabalhar. Assim, suas imagens pungem não apenas no plano ótico, mas também no papel e na fala.
Em sua dramaturgia repulsiva, Copi traveste formas de se pensar importantes mitos políticos e transgride a heterossexualidade das figuras históricas. Mostra em cena um Perón quase irrelevante, como se fosse apenas mais um móvel do palácio onde reina apenas Eva. A medida em que os espectadores se aproximam dos personagens, percebem que eles são apenas disfarces, uma sobreposição de máscaras sociais. Conforme escreveu César Aira, na obra copiana, todo mundo deve ser receptáculo de outro, não pode haver mundos desprovidos de mundos adentro, como uma espécie de boneca russa.
Para Susana Rosano, desde o início é clara a insistência de Copi em explodir o pensamento binário homem-mulher, e daí as bases de ambos mitos: o peronista (a santa dos humildes, a porta-estandarte dos trabalhadores) e o antiperonista (Eva é uma puta, já que não cumpre com o papel atribuído às mulheres na sociedade).
Os personagens sempre estão atravessados pelas possibilidades de serem outros (homem, mulher, puta, santa, travesti, heterossexual, morto, vivo, humano, animal etc.), assim como também o teatro (do realismo ao grotesco, do trágico ao farsesco, do camp ao kitsch, do épico dialético à sedução das imagens). E essas infinitas possibilidades esbarram nas metas das classes dominantes, suas redes de produção de cultura e seus dispositivos de poder – conforme nos lembram filósofos como Michel Foucault e Judith Butler.
Um teatro que apela às suas potências performativas reitera, portanto, que nossas condutas (políticas, sexuais, morais) são atos rituais de repetição. E, assim sendo, podemos compactuar com eles ou mesmo transgredi-los; como o faz a personagem Eva em um de seus últimos e mais expressivos monólogos:
Eva:Vocês me deixaram cair sozinha até o fundo do meu câncer. São uns turrões. Eu fiquei louca e estava sozinha. Me veem morrer como uma besta no matadouro. Permita-me, quero estar com você, não tenha medo. Fiquei louca, louca, como aquela vez em que fiz entregarem um carro de corrida a cada puta e vocês me permitiram. Louca. E nem você nem eles me disseram para parar. Até a minha morte, até a encenação da minha morte tive que fazer completamente sozinha. Sozinha. Quando ia às vilas miseráveis e distribuía maços de notas e deixava tudo, minhas joias e meu carro e até meu vestido, e voltava como uma louca, nua, no táxi mostrando o cu pela janela, vocês me permitiram. Como se eu já estivesse morta, como se eu já não fosse mais que a lembrança de uma morta. Era isso que eu queria te dizer, velhinho.
A figura simbólica do câncer da personagem Evita não a impediu, mesmo que sobrevivendo à base de morfina, de enfrentar os discursos intolerantes das classes média e alta argentinas. Aqui vale lembrar que quando Eva Perón (a verdadeira) estava já no fim de sua vida, picharam nos muros de Buenos Aires, próximo a sua residência, a seguinte frase: VIVA EL CANCER. Não obstante, naquele momento, seu único desejo (na vida e na ficção de Copi) era ser velada e embalsamada na CGT (Confederação Geral do Trabalho), o maior sindicato da Argentina. Infelizmente, o desejo de Evita seria apenas cumprido durante um breve período. Com a nova ditadura militar, em 1955, Perón foi deposto e o corpo embalsamado de Eva foi roubado, esteve desaparecido e chegou a ser violado sexualmente por um de seus vigias – como relatam diversas personalidades políticas e pesquisadores.
Copi também, num incidente menos trágico do que o de Eva, após ser cremado, enquanto sua mãe e amigos cumpriam o ritual de “beber o morto”, num descuido de sua mãe que foi até a cozinha e deixou as cinzas na sala, acabou sendo fumado pelos seus amigos, que o confundiram com maconha. Ao que sua mãe pôde apenas intervir: “Esse é o Copi, é o Copi!”.
Como bem sintetizou Mactas, “feroz, afiado, queer, desaforado, bizarro, trans. Hashtags que, no mundo de Copi se chocam, enlouquecidas, com Evita, Perón, câncer. A vanguarda é assim, capaz de dialogar com a contemporaneidade anos depois da morte do jovem autor”.
Assim, escrevendo em francês sobre um dos maiores mitos da América Latina, em uma linguagem marcada por diversos exílios, o argentino Copi reivindica sua verdadeira nacionalidade: a de artista.
Encerramos essa crítica com o monólogo final do personagem Perón, interpretado magistralmente pelo veterano Rodolfo de Souza, que em um pronunciamento presidencial (potencializado por um microfone multidirecional e pela excelente acústica do teatro) reitera o poder emblemático da mãe dos pobres, Evita Perón:
PERÓN- Eva Perón se apagou. Decreto uma semana de luto nacional ao término do qual terão lugar os funerais. Seus restos descansarão na Confederação Geral do Trabalho; essa foi sua vontade. Senhores, roguem para que sua alma esteja na paz de Deus. Aquela que chamamos de a mãe dos humildes, aquela que sacrificou o tempo de sua vida para aliviar a desgraça dos deserdados da terra, aquela que nos ajudou com sua clarividência e sua força de caráter nos momentos mais difíceis em que nós – a pátria e também os homens – atravessamos, aquela que foi nossa companheira pela vontade de Deus, nossa companheira infatigável em todos os instantes de nossa pesada tarefa frente a Pátria, Eva Perón, foi abatida pela mais atroz das enfermidades. Para nós, que a acompanhamos com nosso amor durante o longo calvário até sua morte, será difícil, será impossível não nos rebelarmos, em nosso fórum interior, contra a injustiça do destino. Sim, Evita é insubstituível. Quem, como ela, poderia imolar sua vida e sua generosidade de mulher pela causa do trabalhador, do camponês, do oprimido? Homens e mulheres de minha Pátria, trataremos de interpretar, uma vez mais, a vontade divina. Eva Perón não está morta, está mais viva que nunca. Até hoje a amamos; a partir de hoje adoraremos Evita. Sua imagem será reproduzida até o infinito em pinturas e em estátuas para que sua memória permaneça viva em cada escola, em cada rincão de trabalho, em cada lugar. Desde o alto de seu pedestal, a força invencível de seu destino exemplar nos dará coragem, mais do que nunca, para continuar a tarefa, a dura tarefa à qual temos dedicado nossa vida: condenar a riqueza injusta, dar pão aos pobres, construir uma sociedade nova onde cada homem e cada mulher encontrem sua felicidade no trabalho e no amor à Pátria. Eva Perón, senhores, está mais viva do que nunca!
Referências
AIRA, César. Copi, Rosario: Beatriz Viterbo Editora, 1991.
BOAL, Augusto. Explicação. In: Revolução na América do Sul. São Paulo: Massao Ohno Editora, s/d, p. 6.
COPI. Teatro 3: Eva Perón, El homosexual o la dificultad de expresarse, Las cuatro gemelas. Buenos Aires: El Cuento de Plata, 2014.
DESANZO, Juan Carlos. Eva Perón. Prod. Hugo E. Lauría e María de la Paz Marino. Rot. José Pablo Feinmann. Lançamento: 24/out./1996. Argentina.
MACTAS, Mariana. “Eva Perón” y “El homosexual o la dificultad de expresarse”: el teatro encendido de Copi vuelve a Buenos Aires.TN (Todo Noticias). Disponível em: https://goo.gl/XG1ND3. Acesso em 25/set./2018.
ROSANO, Susana. Eva Perón es un travesti. Sobre Copi, entre el mito y la blasfemia, Lectures du genre, n. 4, Lecturas queer desde el Cono Sur, 2008.
Ficha técnica
Direção: Marcial Di Fonzo Bo
Texto: Copi
Tradução: Joani Hocquenghem, Jorge Monteleone
Atuação: Marco Antonio Caponi, Rodolfo de Souza, Carlos Defeo, Hernán Franco, Gustavo Liza, Juan Gil Navarro, Rosario Varela
Figurino: Renata Schussheim
Cenografia: Oria Puppo
Iluminação: Bruno Marsol
Música original: Ettienne Bonhomme
Assistência de direção: Ana Calvo
Produção: Maxi Libera, Silvia Oleksikiw, Lucía Quintana
Duração: 145 minutos
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Felipe Cordeiro é artista de teatro, editor e pesquisador. Doutorando em Literaturas Modernas e Contemporâneas pela FALE/UFMG. Possui o título de Mestre pela mesma instituição. Realizou pesquisa de aperfeiçoamento científico em Recepção Clássica na Universidade de Coimbra.Bacharel em Interpretação Teatral pela EBA/UFMG.Membro co-fundador do grupo de teatro Mulheres Míticas. Editor da “Em Tese – Revista de Literatura da UFMG”. É membro pesquisador do Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas (NELAP/UFMG) e do Grupo de Estudos em Dramaturgia Letra e Ato (UNICAMP). Possui artigos e capítulos de livros publicados (e aceitos para publicação) no Brasil e em países da Europa. Atualmente, leciona a disciplina “Teorias do Teatro” para os cursos de graduação em Letras e Teatro da UFMG.