– por Guilherme Diniz –
* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica do espetáculo Macbeth 22, visto durante a sua temporada de estreia na Funarte-MG, no dia 04 de fevereiro de 2023 em Belo Horizonte, como parte da programação da 48ª Campanha de Popularização do Teatro e da Dança.
Macbeth não é apenas a soturna tragédia de uma ambição desmesurada cuja força, por demais avassaladora, leva um homem ao abismo da sua própria perdição moral, política e existencial. Nem tampouco pode ser vista unicamente como uma investigação da malignidade, ou seja, aquela pulsão negativa incapaz de gerar qualquer descanso, harmonia ou prazer duradouros tanto na vida privada, quanto na vida pública. Ora, é o próprio criminoso quem admite um tanto envaidecido: “Só o mal pode fazer o mal crescer”.[1] A peste, a angústia, a mais aguda dor e todo o derramamento de sangue, presentes na peça, são efeitos, ao fim e ao cabo, daquilo que para Shakespeare propicia a morte, isto é, o mal em suas variáveis formas. Em verdade, há tudo isso nessa densa obra e, seguramente, é impossível dizer que tais elementos sejam irrelevantes.
Entretanto há um outro aspecto crucial que, entrecortando todo o texto, é responsável pelos seus momentos mais perturbadores: o modo como Shakespeare dramatiza os incalculáveis poderes da imaginação. Pensadores tão diversos como Francis Fergusson e Harold Bloom destacam a mente profunda e aflitivamente imaginosa de Macbeth. Basta ele considerar, ainda que distantemente, um assassinato necessário à realização de seus sonhos hediondos, para sua alma ser invadida por uma torrencial cascata de imagens e visões produzidas, quer pelo seu medo, quer pela sua culpa. A imaginação tão frutífera do protagonista é a sua maior força e igualmente a sua principal fraqueza, tornando-o, para alguns críticos, mais suscetível aos anseios mortíferos que internamente nascem nele. Fantasia e cobiça alimentando-se reciprocamente, afinal. “Escorpiões entopem a minha mente”, diz o queixoso regicida preso aos seus atos horrendos, à sua consciência atormentada e à sua imaginação amargamente vívida. Talvez mais do que em qualquer outra peça de sua autoria, Shakespeare nos propõe uma reflexão acerca das qualidades destrutivas e criativas do fascinante ato de imaginar.
Sublinho este último ponto em especial, pois um dos sustentáculos centrais do espetáculo Macbeth 22 é o convite ao público para imaginar, diante de um palco quase totalmente vazio, as vertiginosas peripécias da tragédia. Já de início, a atriz Mariana Muniz expressa os mesmos princípios dos prólogos de Henrique V, nos quais um entusiasmado coro convoca os espectadores a contribuir com o seu quinhão imaginário, estimulando-o a visualizar guerras colossais em um espaço exíguo ou até mesmo décadas inteiras no intervalo de algumas poucas horas. Mariana também se dirige abertamente a nós que a assistimos e, neste gesto, assume a artesania do jogo cênico sem almejar, assim como o teatro de Shakespeare, nenhum realismo. A atriz encarna figuras distintas, como o protagonista Macbeth, a ferina Lady Macbeth e uma narradora que costura os fios do enredo. Contudo, Mariana não deixa de colocar em suspensão o mundo ficcional, sobretudo quando tece observações mais ou menos irônicas, mais ou menos cômicas, sobre a própria trama a ser contada e sobre as personagens representadas por ela, gerando uma atmosfera geral de cumplicidade entre palco e plateia.
O músico Maurílio Rocha acompanha o espetáculo do início ao fim. Munido de uma guitarra e de uma mesa de som, o instrumentista ambienta musicalmente certas passagens, acrescentando mais uma camada emocional à narrativa já tão aflitiva. Aliás, os recursos sonoro-musicais são fartamente utilizados nesta peça que, aqui e acolá, oferece estímulos para que o público embarque em uma aventura imaginativa. Além disso, a presença de Maurílio rende constantes interações com a atriz. Nestes instantes, Mariana tenta sempre extrair achados cômicos e, a julgar pelas gargalhadas do público, ela consegue fazê-lo na maior parte das vezes.
Há uma grande economia de meios na encenação de Macbeth 22. Poucos objetos cênicos e uma cenografia altamente reduzida enfatizam as palavras. A iluminação de Akner Gustavson se sobressai sutilmente neste palco despojado, mobilizando matizes, desenhos e modulações bastante dinâmicas. Ora uma saturada cor adensa uma ambiência eivada de tensão e seriedade, ora a luz corta, sem pedir licença, o encantamento fantasioso, trazendo-nos para o aqui-agora da vida, digamos, real, ou seja, o palco em sua concretude.
O minimalismo da encenação fisgou-me singularmente em dois momentos. O primeiro deles está na solução encontrada para colocar em cena a floresta de Birman. Nascido principalmente de luz e sombra, o ambíguo arvoredo que, por seu turno, confundiu as expectativas de Macbeth, ganhou uma dimensão visualmente destacada, preenchendo o espaço. O segundo é exatamente a cena da morte da personagem-título. Para narrar este episódio atroz, Mariana vale-se apenas de um casaco que, ao cair no chão, evoca a queda do cruel monarca. Se por um lado posso parecer excessivamente empolgado com um recurso tão simples, por outro é preciso lembrar que as vestimentas constituem uma importantíssima metáfora nesta obra. Ao longo da tragédia, surgem alusões a roupas que não estão plenamente ajustadas ao corpo de quem as utiliza, como se algo tivesse sido indevidamente apropriado. No quinto ato do texto original, Angus, um nobre escocês, afirma, referindo-se a Macbeth: “[…] seu título parece vesti-lo como o manto de um gigante em um larápio anão.” O regente usurpador se mostra pequeno, reles, ínfimo demais para ocupar a grandeza do trono.
Quiçá um dos traços mais marcantes na concepção de Macbeth 22 seja a sua deliberada vontade de rir de si mesmo, como se não quisesse se levar tão a sério. E não estou a fazer um juízo de valor aqui. As ironias, as gags, os comentários (nem sempre) risíveis e a utilização de elementos da cultura pop vão, cumulativamente, se afastando daquilo que, lá atrás, Bernard Shaw chamava de bardolatria, isto é, aquela veneração afetada que louva William Shakespeare como um autor supremo, perfeitamente imaculado, acessível somente às inteligências elevadas. Neste espetáculo, o desejo é se distanciar desta visão excludente, elitista e tão cara ao mito do soberbo Cânone Ocidental; aí a aproximação com o público é intensificada[2]. É interessante mencionar que este clima irreverente permeia, em menor ou em maior grau, outros trabalhos cênicos nos quais Thálita Motta, a encenadora desta peça, colaborou em diferentes funções. Em Baile, espetáculo de formatura dos alunos do T.U. (Teatro Universitário), estreado no ano passado; em Montagem, espetáculo de formatura dos alunos do CEFART, estreada em 2019 e em Projeto Maravilhas, montagem da plataforma Beijo, estreada em 2018, vê-se a busca por atmosferas descontraídas e, mesmo nos momentos mais tensos, não se pretende nenhuma sisudez absoluta. Possivelmente, Thálita contribuiu para essa abordagem em Macbeth 22. A dramaturgia, assinada por Mariana Muniz e por David Maurity, também caminha nessa mesma direção, pois encara a obra shakespeareana sem subserviência, quer com ela jogar, observando quais outros sentidos podem ser descobertos ao colocar em diálogo um texto inglês seiscentista e o tempo presente.
Este diálogo com a nossa atual conjuntura histórica é o segundo sustentáculo de Macbeth 22 e é justamente aqui que residem as suas fragilidades.
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Foto: Guto Muniz
Em 1966 o crítico teatral João Apolinário, ao analisar a montagem de Júlio César, dirigida por Antunes Filho, assinalou que esta tragédia, também escrita pelo Bardo, não pretende exclusivamente delinear uma biografia do militar romano. A grande discussão proposta é de cunho político e histórico mais amplo. Logo a perspectiva não se resumia a um close up, mas incluía um wide shot, se quisermos recorrer ao jargão cinematográfico. Ou, em outras palavras, situar o indivíduo em seu contexto maior, na teia de relações sociais que o formam e são por ele formadas. A partir disso, a encenação de Antunes (e igualmente o público) perderia muito se visasse estritamente uma reconstrução psicológica do retratado ou se não englobasse, em um reatualização da obra, as situações históricas que geraram, no mundo romano ficcionado e no mundo brasileiro, embates políticos semelhantes. Em um período muito complicado do país (1966!), o crítico me parece, no fundo, questionar o seguinte: Como estabelecer conexões entre instantes históricos distintos, desenvolvendo uma visão mais abrangente que compreenda contextos e fatos em movimento? E eu acrescentaria duas indagações: Como artisticamente tais paralelos históricos examinam tanto as aproximações quanto as dessemelhanças, incorporando, na análise, as particularidades e contradições de cada momento? E, por fim, como, em termos teatrais, propor tais relações entre circunstâncias diferentes, problematizando caricaturas, maniqueísmos ou simplificações no panorama historiográfico?
Ora, mas o que tem Macbeth 22 a ver com isso? Vejamos: na concepção do espetáculo, há um manifesto desejo de estabelecer paralelos histórico-políticos entre os aterrorizantes conflitos de Macbeth, a Inglaterra do século XVI e a conturbada realidade brasileira, sobretudo em 2022, ano de uma das eleições mais decisivas de nossa franzina democracia. Além disso, a peça almeja vincular o tirânico protagonista de Shakespeare ao ex-presidente Jair Bolsonaro naquilo que os uniria: a busca inconsequente pelo poder, desprezando qualquer preocupação com o bem-estar coletivo. Nesse ponto específico, o que é limitante em Macbeth 22 é o fato de centrar-se demasiadamente nas possíveis analogias entre a personagem-título da tragédia e o ex-mandatário genocida, deixando de discutir um contexto social, histórico e político a um só tempo mais amplo e contraditório.[3] Por isso trouxe o crítico João Apolinário, pois suas observações me parecem pertinentes para debater uma certa dose de personalismo presente neste espetáculo.
Aproximações entre os tiranos shakespeareanos e o autoritarismo sádico de governantes contemporâneos são diuturnamente feitas por estudiosos. O livro de Stephen Greenblatt, Tyrant: Shakespeare on politics (Tiranos: Shakespeare sobre a política, em tradução livre), é um exemplo instigante. Há traços da tirania de Macbeth, apontados pelo pesquisador, que remetem a comportamentos de Bolsonaro, como o gigantesco narcisismo; a fria indiferença a tudo que não diz respeito aos seus interesses e a necessidade compulsiva de provar a própria masculinidade (é de fato impressionante como há, em Macbeth, repetidas indagações sobre o que significa ser homem, másculo e viril). Mas algo crucial, por vezes, escapa a estas correlações (e em Macbeth 22 não é diferente): como estas figuras chegaram ao poder? Afirmar direta e/ou indiretamente que Macbeth e Bolsonaro são tiranos resvala na obviedade. Mais complexo e inquietante é examinar dramaturgicamente os processos históricos que formam estes sujeitos. Tiranos não geram a si mesmos. Eles são constituídos em circunstâncias sociais e políticas muito concretas. Aproximar contextos distintos, sem elaborar, no próprio espetáculo, as devidas mediações históricas, corre sempre o risco de gerar simplificações algo pobres.
Os escoceses desafortunados não poderiam fazer muita coisa. Duncan, o rei legítimo, fora executado e os seus filhos, temendo a morte, fugiram para o exterior. Macbeth era, nestas condições, o mais forte candidato à coroa, pois era visto como valente e leal militar, um honroso companheiro (no início da tragédia o seu status é, por assim dizer, heroico), era Thane de Glamis e Thane de Cawdor, ou seja, possuía notáveis títulos nobiliárquicos, e, não menos importante, era primo do soberano assassinado. No final das contas, o povo não tinha muito para onde correr naquele universo monárquico. Já Bolsonaro foi eleito, ainda que valendo-se de rasteiras estratégias e de manipulações ideológicas, tais como as fake news disseminadas em massa. Porém, milhões de votos o levaram ao poder e, em 2022, (após quatro desgraçados anos) outros tantos milhões poderiam ter dado a ele um segundo mandato. A tirania neste contexto é de outra natureza.
Macbeth 22 traz, aqui e ali, uma alusão à realidade brasileira, às vezes inclui uma ou outra frase, entre tantas do nosso anedotário político. Contudo, em minha visão, uma interlocução com a conjuntura histórica do Brasil, tão complexa e multifacetada, pede um aprofundamento muito maior.
Há um dado histórico, ignorado pelo espetáculo, que está muito mais próximo do nosso momento atual. As primeiras encenações de Macbeth, se situam, cronologicamente, no final de um tenso período de transição de governo na Inglaterra. Acadêmicos, como um Frank Kermode, alegam inclusive que a peça celebra o sucessor de Elizabeth I, a saber, James I da Inglaterra e VI da Escócia (que, por sinal, apadrinhou a companhia do Bardo). A rainha não possuía filhos. Deste modo, quem iria herdar a coroa? Esse complicado processo de mudança, com todas as suas disputas políticas e religiosas (protestantismo e catolicismo), os temores, as paixões coléricas (até mesmo um atentado contra a vida do novo rei foi articulado!) e as teorias da conspiração, se afiguram mais significativos para um diálogo histórico com o nosso tempo.
A despeito das analogias possíveis, Macbeth demonstra algo que o abjeto político brasileiro jamais esboçou pública e sinceramente (não estou me referindo a desesperadas estratégias eleitoreiras): doloroso arrependimento. Na tragédia, a incapacidade de dormir serenamente já se afigura como um castigo da mente criminosa que acusa a si mesma. Porém, no quinto ato, vemos o protagonista refletir sobre as consequências das violações que cometera: “[…] tenho opresso o coração […] / A minha vida/ Já murchou, como a flor esmaecida; E tudo o que nos serve na velhice – Honra, respeito, amor, muitos amigos/ Não posso ter, mas sim, em seu lugar, / Pragas contidas, honras só de boca, / Dadas sem coração, por covardia […].” Mais angustiante ainda é quando, após ter feito tudo para agarrar a coroa, ele se dá conta da vacuidade da sua vida guiada pela ganância, uma existência que foi em resumo “[…] uma história / Contada por um idiota, cheia de som e fúria, / Significando nada”[4]. Há imensa ambição em Macbeth, mas, paralelamente, existe uma consciência cada vez mais afundada em remorsos. O seu conflito interno brota daí.
Foto: Guto Muniz
A montagem propõe ainda uma discussão acerca das relações entre gênero e poder especialmente a partir do papel de Lady Macbeth no desenvolvimento da narrativa e também a partir da figura de Elizabeth I, cujo longo reinado marcou profundamente a história da Inglaterra. Reforçam esta proposta as vozes, ouvidas em off, das atrizes Lidia Del Picchia, Fernanda Vianna, Rejane Faria e Inês Peixoto, encarnando outras personagens da trama, como a bruxa (individualizada na atual dramaturgia, ao contrário do trio tradicional), Mcduff e Banquo.
Inicialmente, Mariana Muniz problematiza um dos trechos mais agudos de toda a tragédia: o momento em que Lady Macbeth conjura espíritos malignos para dessexualizá-la (“unsex” é o verbo empregado no original), suprimindo a sua condição de mulher. Ciente das fraquezas, dos medos e das hesitações morais do marido, Lady Macbeth deseja que o seu gênero seja subtraído dela a fim de adquirir a disposição necessária para cometer os crimes sem culpa ou crises de consciência. No espetáculo, a atriz destaca, com ironia, as desigualdades de gênero presentes na época (e no próprio teatro) elizabetano. Qual noção de mulher está posta aqui? O que se espera e/ou se exige do comportamento dito feminino? Certas análises identificam, neste ato de Lady Macbeth, uma transgressão das leis naturais, como se ela estivesse a se transformar em uma bruxa, uma criatura que encarna antíteses, ambiguidades e equívocos (este termo é relevante na tragédia) perigosos, bem como ameaçadoras inversões de valores. Valerá a pena lembrar que no texto de Shakespeare, Banquo se assusta terrivelmente ao contemplar pela primeira vez a imagem das bruxas, exclamando: “poderiam ser mulheres, / Embora suas barbas me impeçam de interpretar / O que de fato sejam”[5] Qual seria, portanto, a identidade destes seres?
Nesse ponto, Macbeth 22 nos leva a pensar nos essencialismos de gênero (existiria uma natureza feminina?) e na mentalidade patriarcal que direta e indiretamente estão na obra shakespeareana, discutindo os limites, as potencialidades e, enfim, as contradições de um clássico quando lido, criticamente, em nossa época.
Na sequência, Mariana afirma que Shakespeare tentou proteger Macbeth, atribuindo, à esposa deste, a responsabilidade pelo assassinato de Duncan. Esta questão, se considerarmos a fortuna crítica da tragédia, ao longo dos anos, já é mais batida. Acerca disso, estou de acordo com os estudiosos, segundo os quais a responsabilidade integral é de Macbeth, é ele o protagonista trágico e, em vista disso, autor das suas ações. Muito antes de Lady Macbeth entrar em cena, o futuro malfeitor, em um tenso aparte no primeiro ato, revela que a ideia de matar o rei já engatinhava em sua mente. A sua parceira o instigou, mas o fardo maior é dele. Se intimamente o dramaturgo pretendeu ou não defender seu dileto personagem me parece impossível descobrir. O importante é que toda a peça – o texto! – enfatiza as decisões de Macbeth. Nem mesmo as bruxas e suas previsões podem ser responsabilizadas, pois elas não disseram a ele que seria necessário ou desejável cometer um crime para ser rei. Se ele tivesse ficado quietinho…
O espetáculo inclui um brevíssimo vídeo informativo a respeito da biografia da rainha Elizabeth I, ressaltando a importância de uma mulher governar um território tão atribulado como o britânico, que estava em seu próprio período de expansão econômica e sociocultural. Se a intenção era aprofundar as discussões a respeito das relações entre gênero e poder, o vídeo, tentando ser jocoso, não ultrapassou a superficialidade. Nem mesmo um dos feitos mais conhecidos do seu longo reinado, isto é, a vitória naval sobre a “Invencível” Armada Espanhola, foi incluído. Elizabeth, cravejada de contradições, lançou as bases para as investidas coloniais da Inglaterra mundo afora; receando perder o trono, aprisionou, por quase duas décadas a sua prima, Maria Stuart da Escócia, para no final, após muita angústia, mandar decapitá-la por suspeita de conspiração contra a coroa. E o que então dizer da sua relação com o teatro? Se por um lado é dito que a soberana foi uma entusiasta das artes em geral, por outro não se pode ignorar a ferrenha censura por ela imposta. Apenas mencionar que existiu uma rainha inglesa diz alguma coisa, se levarmos em conta o mundo no século XVI, mas para discutir as relações entre gênero e poder não seria necessário mergulhar nos seus feitos concretos?
Antes de concluir, há um outro ponto (já abordado pela crítica de Julia Guimarães) que merece ser mencionado. No início da peça, Mariana Muniz afirma que é uma mulher branca e que seu corpo, assim sendo, estaria investido historicamente de uma “ciência da tirania”. E depois disso nada mais. Eu realmente me pergunto: por que abordar esta dimensão tão complexa, se o próprio espetáculo não almeja e nem tem condições de discutir, a fundo, branquitude e desigualdade sociarracial? Esta escolha se assemelha a um recurso retórico chamado de prolepse. É como se a dramaturgia antecipasse eventuais objeções, réplicas ou contestações antes mesmo que estas apareçam, demonstrando que já havia considerado o problema e que, portanto, não está despreparada. Seria esse um medo de não ser visto como atualizado, “desconstruído” ou politizado o bastante?
No teatro brasileiro contemporâneo, Macbeth 22 se liga a outros espetáculos, como Ubu Rei, do grupo Os Geraldos (SP), dirigido por Gabriel Vilela; e o Ubu Rei, criado por três grupos de teatro potiguares, quais sejam, o Clowns de Shakespeare, o Facetas, Mutretas e Outras Histórias e o Asavessa, todos dirigidos por Fernando Yamamoto. Em todas estas montagens há um denominador comum: debater a política brasileira a partir de obras protagonizadas por figuras autoritárias. Os críticos amilton de azevedo, da plataforma ruína acesa e Heloísa Sousa, do Farofa Crítica, em suas respectivas análises[6] das peças sobreditas, indagam, cada qual a seu modo, as armadilhas e as fragilidades no modo como dramaturgia e realidade histórica estão sendo pensadas por tais grupos. “Quais escolhas formais (e que adaptações, inserções, subversões dramatúrgicas) realizar a fim de que a obra mantenha a potência – que inegavelmente ainda pode nos dizer muito – do material original de Jarry?”[7], interroga amilton; “O teatro conseguiria, para além da exposição de um retrato da realidade, evidenciar a articulação complexa de um sistema/figura, sua transformação e composição? Não apenas representar um golpe em cena, como um fato; mas expor, analiticamente, sua estruturação”[8], interroga Heloísa.
Sem nenhum esforço, posso dirigir semelhantes perguntas a Macbeth 22. Este espetáculo, que marca, após um considerável hiato, o retorno de Mariana Muniz aos palcos (a atriz, professora e pesquisadora está, coincidentemente, em uma das minhas primeiras vivências como espectador de teatro, quando a vi no já longínquo Tio Vânia, do Grupo Galpão, em 2011), é também sintoma de uma vontade um tanto ansiosa, um tanto imediatista de retratar, cenicamente, os nossos mais recentes acontecimentos históricos. Porém, esta matéria tão viva, a que chamamos de história – e Shakespeare decerto sabia disso ao ter lidado repetidamente com esse universo –, não é tanto o retrato estático, mas o movimento. Como esse movimento tem sido encarado em nossos palcos?
FICHA TÉCNICA
Concepção e atuação: Mariana Lima Muniz
Dramaturgia: Mariana Lima Muniz e David Maurity
Encenação: Thálita Motta
Guitarrista e música original: Maurilio Rocha
Direção da atriz: Ana Regis
Participações especiais: Inês Peixoto, Fernanda Vianna, Lydia Del Picchia e Rejane Faria
Produção executiva: Polyana Horta
Cenografia: Bruna Christófaro
Cenotécnico: Helvécio Isabel
Figurino: Silma Dornas
Iluminação: (criação, montagem e operação) Akner Gustavson
Sonorização (montagem e operação): Bruno Souza Banjo
Maquiagem: Malu Magalhães
Vídeo de animação: Fabiano Lana
Assessoria de imprensa e mídias digitais: Rizoma Comunicação e Arte
Identidade Visual: Cíntia Marques
Fotografia: Guto Muniz
Vídeos: Leila Verçosa e Byron O’neill
Produção: Arte em Conexão
Apoio: Departamento de Artes Cênicas EBA/UFMG
[1] Ao longo da crítica, salvo quando assinalado o contrário, recorro à tradução realizada por Barbara Heliodora para o primeiro volume da edição Teatro Completo de William Shakespeare, publicado pela Nova Aguilar em 2016.
[2] Este ponto está interessantemente discutido na crítica escrita por Júlia Guimarães e publicada aqui no Horizonte da Cena: https://www.horizontedacena.com/teatro-como-gesto-de-aproximacao/
[3] Em entrevista ao jornal O Estado de Minas, Mariana Muniz chega a dizer que Macbeth não é o ex-presidente da República, mas na concepção do espetáculo e, especialmente, em sua dramaturgia, essa afirmação não se sustenta bem, pois o que se vê é uma vinculação direta entre as duas figuras. A entrevista pode ser lida na íntegra por meio do link: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2023/02/01/interna_cultura,1451601/macbeth-22-mistura-shakespeare-e-jair-bolsonaro-em-solo-teatral.shtml
[4] Tradução de Rafael Rafaelli, publicada pela editora da UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina – em 2016.
[5] Idem.
[6] Tanto o ruina acesa quanto o Farofa Crítica integram, juntamente com o Horizonte da Cena, o projeto Arquipélago de fomento à crítica teatral, com apoio da produtora Corpo Rastreado.
[7] A crítica pode ser lida na íntegra por meio do link: https://ruinaacesa.com.br/ubu-rei/
[8] A crítica pode ser lida na íntegra por meio do link: http://www.farofacritica.com.br/criticas/conteudo/206/por-que-ubu