Crítica a partir do espetáculo “Mary e os monstros marinhos”, da Cia. Delas de Teatro, de São Paulo.
– por Diogo Horta-
Foto: Maria Tuca Fanchin
As luzes se acendem aos poucos no teatro e revelam três homens com grandes cabeças de fósseis de animais pré-históricos lendo livros e se movimentando de forma precisa e marcada. Acompanhados por uma trilha sonora repetitiva e de voz grave marcante – na qual se pode identificar a reincidência da palavra “sauro” – os personagens despertam a curiosidade ao mesmo tempo em que parecem bem estranhos. Enquanto leem, os homens-fósseis fazem gestos pesados que indicam reflexão, compreensão e dúvida sobre o que estão estudando. O tom denso e escuro desta cena inicial é mantido durante todo o espetáculo, promovendo uma atmosfera de mistério e suspense.
Quando se pensa em teatro para crianças algumas características recorrentes saltam à mente: cores, velocidade rápida, euforia, desafios, vilões, heróis, bem versus mal, personagens encantados, entre outras. O espetáculo “Mary e os monstros marinhos” parece partir desse senso comum com um objetivo claro: opor-se a ele. A partir daí, explora um tom vivo, mas denso, no qual os personagens se confrontam com as dores e conquistas da vida real para narrar a história de Mary Anning.
Hoje reconhecida cientista e paleontóloga, Mary nasceu em 1799 em Lyme Regis, na Inglaterra, e passou parte de sua infância acompanhando o pai que explorava achados arqueológicos na chamada “Costa Jurássica de Dorset”. O sustento da casa vinha de pequenas pedras fossilizadas encontradas com resquícios pré-históricos que eram comercializadas na cidade. Após a morte de seu pai, quando tinha apenas 11 anos, Mary Anning passou a explorar a região e foi responsável por importantes descobertas científicas na época, dentre elas a de um fóssil de cinco metros de um réptil do gênero Ichthyosaurus (segundo fonte da Revista Galileu[1]).
A peça, com direção de Rhena de Faria, conta a história de superação da cientista, com apenas três atrizes que se revezam no papel de Mary em suas diferentes idades. Ao mesmo tempo, vivem os demais personagens da peça, como o pai, a mãe e o irmão da protagonista, além dos membros da sociedade científica da época e a própria morte. Esta última é uma das responsáveis por manter o tom grave do espetáculo com aparições frequentes desde o início.
Foto de Camila Picolo
De forma sutil e misteriosa, a primeira dessas aparições acontece diante da mãe da protagonista. A morte, uma senhora de branco com uma xícara nas mãos, se apresenta para tomar um chá e anuncia que deve levar um recém-nascido. A mãe de Mary Anning passa por esta experiência mais de uma vez no início do espetáculo. Quando a única filha nasce, também é ameaçada pela senhora de branco, mas Mary demonstra sua força logo cedo e resiste à morte prematura. Apesar de certa tensão, o espetáculo lida com esta personagem de forma natural no fluxo da narrativa. As despedidas que acompanham a protagonista se envolvem de dor e resiliência diante das perdas. É possível que nem todas as crianças consigam fechar um entendimento sobre esta personagem de forma aprofundada, no entanto, esse é um aspecto positivo já que o espetáculo permite que o espectador crie diferentes níveis de leitura para vários recursos e elementos cênicos.
A equipe de criação do espetáculo é hábil em fazer com que o público tenha o mesmo espírito corajoso e desbravador da personagem principal. Sendo assim, instaura cenas sobrepostas, passagens de um espaço a outro em segundos com indicações poéticas e precisas, objetos que mudam de função e utilização de um momento a outro, signos de diferentes níveis para as crianças e para os adultos, enriquecendo a encenação e exigindo do público um olhar atento e curioso, sem deixar de trabalhar a experiência teatral de forma divertida.
Foto de Camila Picolo
O cenário, o figurino e os elementos visuais também surpreendem o público, seja pelas cores mais sóbrias, seja pelo revestimento de solo que permite a descoberta dos fósseis diante do público, revelando os desenhos dos esqueletos de grandes animais marinhos. Estes animais também aparecem, em outro momento, como esqueleto 3D iluminado, como se estivessem nadando pelo palco e inundando com a memória de um tempo remoto o pensamento e a pesquisa científica de Mary.
Dessa forma, a direção organiza as cenas em planos diferentes e explora o palco de forma ampla, assim como desenvolve um trabalho contundente na criação dos personagens. Diante disso, os espectadores se mostraram atentos e interessados durante toda a peça, envolvidos pelo mistério como também por uma atmosfera não convencional no teatro para crianças, o que demonstra o quanto é possível explorar a arte teatral voltada para este público sem precisar recorrer a velhos padrões.
Outro aspecto importante da montagem é abordar as dificuldades da paleontóloga para ter seu trabalho reconhecido naquele tempo. No início do século XIX, as mulheres não podiam participar de várias esferas da sociedade, dentre elas a ciência. Diante disso, mesmo realizando descobertas que produziram importantes reflexões para os cientistas da época, Mary tinha seu lugar negado e precisava lutar para ter seu trabalho reconhecido. Por isso, seus achados e estudos eram desconsiderados por uns, menosprezados por outros e usados por alguns como se não tivessem sido produzidos por uma mulher. Essa reflexão é trazida quando os signos da cena inicial dos homens-fósseis retornam para deixar claro como aqueles homens antigos, retrógrados e misóginos, não eram capazes de reconhecer Mary Anning como cientista.
O recurso da narração da história, utilizado durante todo o espetáculo, ganha mais força nos momentos finais ao fazer com o que espectador reflita sobre o preconceito sofrido pela protagonista e as consequências deste feito: Mary não consegue prosperar financeiramente mesmo com seus achados e acaba sendo levada pela senhora do chá aos 47 anos. O espectador é conduzido, portanto, a refletir sobre a situação da mulher naquela época em uma abordagem que traz aproximações com a luta feminista ainda hoje, como a menção à frase “lute como uma garota”.
“Mary e os monstros marinhos” demonstra, portanto, toda a potência do teatro tanto em aspectos formais quanto temáticos, com uma lógica que trabalha o desenvolvimento da criança deixando-a livre para percorrer seu caminho a partir de elementos diversos. A atenção de uma criança de um ano sentada ao meu lado foi parecida com a das crianças de oito a dez sentadas próximas e acredito que os adolescentes e adultos também possam receber o espetáculo com a mesma concentração.
Esta é uma obra instigante e que possui o mérito de comunicar com o público de forma precisa, mesmo abordando uma história baseada em fatos reais, na qual não existem vilão e mocinho, mas, sim, a luta de uma mulher pela sobrevivência e o desenvolvimento das ciências naturais na Inglaterra do início do século XIX.
Espetáculo visto no dia 28 de abril de 2019 no Teatro do Minas Tênis Clube (Belo Horizonte).
Ficha técnica
Direção: Rhena de Faria
Dramaturgia original: Rhena de Faria, Cecília Magalhães, Julia Ianina e Thaís Medeiros
Elenco: Cecília Magalhães, Julia Ianina e Thaís Medeiros
Direção de Arte: Mira Haar
Iluminação: Wagner Freire
Trilha Sonora Original: Arthur Decloedt
Consultoria em Paleontologia: Prof. Dr. Luiz Eduardo Anelli.
Produção Geral: Companhia Delas de Teatro.
[1] Acesso em 08 de setembro de 2019.