– por Bremmer Guimarães –
Com o tema “A diversidade é a nossa marca”, a 43ª Campanha de Popularização de Teatro & Dança começou no último dia 5 de janeiro e, apesar da programação reduzida, essa edição traz algumas novidades, como uma oficina de dramaturgia ministrada por Daniel Toledo (que é editor aqui do Horizonte da Cena) e a inauguração do La Movida, teatro-bar que, além de ser o ponto de encontro oficial da Campanha, apresenta uma variedade de cenas curtas num ambiente que foge às salas de teatro convencionais.
Na lista de espetáculos, é curioso ver diversos trabalhos autorais e de pesquisa, muitos deles com forte viés político e social, ao lado de montagens que reforçam estereótipos e preconceitos sociais. Não podemos ignorar que esse reforço de figuras e situações machistas, racistas, homofóbicas e transfóbicas é também um ato político, de manutenção do status quo. Mas não faltam trabalhos que caminhem na contramão desse obscurantismo. Neste texto, falo sobre alguns espetáculos a que já assisti e outros que quero ver.
JÁ VI E QUERO REVER
DANAÇÃO
Tive o prazer de conhecer “Danação” em texto, quando ainda se chamava “A Menina de Lá”, e é bonito ver a peça-poema escrita por Raysner de Paula transformar-se numa montagem teatral. No ano em que o Grupo Galpão se propôs uma experimentação radical em sua trajetória com o espetáculo “Nós”, ver o empenho do ator Eduardo Moreira em estrear também seu primeiro solo mostra a resistência do teatro como ofício diário e da pesquisa do trabalho atoral que nunca se finda. A encenação de Marcelo de Castro e Mariana Maioline aposta na presença do atuante, permitindo que a performatividade ganhe força, mesmo num texto dramático com personagens, enredo, etc.
EM VERDADE VOS DIGO
Assistir a essa criação do Grupo In-Cena de Teófilo Otoni é também um reconhecimento do desafio diário de se manter um grupo de pesquisa continuada em teatro no interior do país. Com dramaturgia de André Luiz Dias e Anderson Feliciano, o espetáculo leva o público para o ambiente de uma casa de prostituição, discutindo questões como machismo, racismo, homofobia e transfobia. A força dos corpos em cena se destaca, num trabalho bastante visceral.
ENSAIO PARA SENHORA AZUL
As fricções entre teatro e realidade, e entre processo e espetáculo, são alguns dos fios condutores dessa montagem. Um trabalho de muita entrega e esforço físico da atriz Kelly Crifer, que dialoga também com a dança, por causa da direção do ator e bailarino Robson Vieira. “Ensaio para Senhora Azul” mostra a importância de resistirmos às normas que nos são impostas cotidianamente. A senhora azul não é uma, e sim várias. Várias mulheres. Entre um grito e outro, entre uma risada e outra, a atriz nos provoca a pensar sobre a condição de insanidade atribuída à mulher numa sociedade machista e misógina.
FREDDIE ROCK STAR
Assisti aos três últimos espetáculos dirigidos por Juarez Guimarães Dias (além deste, “Marilyn Monroe.Doc” e “EuCaio”), e “Freddie Rock Star” me chamou a atenção pela performatividade dos espectadores. Gritos da plateia, celulares em mãos, flashes por todos os lados, aplausos após as performances musicais do ator Fábio Schmidt, preciso e seguro em todos os momentos de improvisação e interação com o público, além é claro da incrível semelhança entre ele e Freddie Mercury, me deram a impressão de estar, de fato, num show. A montagem também se destaca por apostar no entretenimento, sem perder seu viés crítico, com reflexões sobre a AIDS e as manifestações políticas que têm tomado as ruas do país.
MÁQUINA
“Máquina” é o trabalho que marcou o surgimento da Miúda Cia, coletivo de atrizes e atores que se formaram no curso de teatro do Cefar/Palácio das Artes em 2015, e não é à toa que esse espetáculo saiu da escola e ganhou caráter profissional. Com direção de Cláudio Dias, o trabalho se destaca pela construção das personagens pelas atuantes. É uma montagem essencialmente dramática, inspirada na obra de Valter Hugo Mãe, que mostra com poesia e sensibilidade o dia a dia de um lar de idosos.
REAL
Esse trabalho consolida uma nova fase do Grupo Espanca, com a abordagem política cada vez mais presente no trabalho do coletivo. Depois de “Dente de Leão”, o grupo busca nas manchetes dos jornais a inspiração para “Real”, que traz reflexões incisivas sobre a intolerância, a violência e a desigualdade em nosso país. É bastante potente a forma como o trabalho é apresentado ao público: o caráter espetacular dá lugar ao “real” do processo artístico, com o fazer teatral sendo explicitado ao longo e nos intervalos das quatro micropeças que compõem a montagem. Dentre elas, destaco o caráter absurdo e sombrio de “O Todo e as Partes” e a dança dos corpos num caminhão de lixo de “Parada Serpentina”.
ROSA CHOQUE
Esse espetáculo tem uma das cenas mais impactantes que já vi no teatro. Não darei spoilers, mas nesse trabalho o machismo é realmente levado para a fogueira. Dá pra dizer que “Rosa Choque” é dividido em duas partes: a primeira, que conta a história de uma mulher que foi violentada sexualmente quando voltava de seu trabalho; e a segunda, que traz uma maior performatividade das atuantes no palco. Uma das potências da montagem dirigida por Cida Falabella, com atuação de Cris Moreira e Guilherme Théo, é não se apresentar como uma obra maniqueísta e ter também autocrítica: ainda que partindo de uma lógica binária, este é um começo para pensarmos as questões de gênero em nossa sociedade.
RUA DAS CAMÉLIAS
Confesso que nunca havia entrado num prostíbulo antes. Na época em que diversos prédios da Rua dos Guaicurus começaram a ser ocupados por festas, não me sentia à vontade pra estar ali, num ambiente em que exploração sexual e violência contra a mulher conviviam com o clima festivo e uma espécie de espetacularização daquilo que é considerado marginal, como se bordéis fossem zoológicos ou coisa parecida. Mesmo na experiência de assistir a “Rua das Camélias”, um pouco dessa dúvida permanece em mim, mas, neste caso, o trabalho mergulha numa profunda pesquisa histórica sobre a região e ocupa um espaço desativado, o Hotel Imperial. Com uma dramaturgia que permite que, a cada dia, espectadores possam assistir a espetáculos diferentes, a montagem se destaca também pelas atuações, apresentando um elenco em bastante sintonia, mesmo composto por pessoas e corpos tão diferentes.
UM INTERLÚDIO – A MORTE E A DONZELA
Este é o primeiro espetáculo que vi do diretor Wilson Oliveira e seria um engano dizer que o encenador está obsoleto em suas apostas estéticas. No último ano, foram muitas as peças em que encontrei com Wilsinho como espectador, nas filas e plateias, e assistir a um trabalho tão realista e dramático pode parecer inesperado atualmente, mas é também um exercício de apreciação do diferente e daquilo que foge às nossas preferências. Além de ser uma possibilidade de imersão teatral quando executado com primor. A peça de Ariel Dorfman nos faz refletir sobre as intolerâncias e a falta de diálogo em nossas discussões, e nos atenta para um passado que não pode ser esquecido e tampouco reeditado: a ditadura militar. A atuação de Christiane Antuña, certamente, foi uma das que mais me marcou em 2016.
SER – EXPERIMENTO PARA TEMPOS SOMBRIOS
Se a “montação” e a “lacração” são essenciais nos outros trabalhos da Toda Deseo, dessa vez o coletivo deixa as duas coisas de lado e aposta num tom menos festivo e cômico pra falar das violências sofridas por pessoas homossexuais e transexuais. O encontro com Alexandre de Sena e Marcio Abreu leva o grupo a experimentar novas possibilidades de fazer artístico, potencializando ainda mais seu repertório.
MADAME SATÃ
Um rico trabalho do Grupo dos Dez com direção de João das Neves. Com canções marcantes e um elenco sintonizado, “Madame Satã” não tem medo de ser uma montagem panfletária e, por isso, ser tachada como menor artisticamente. O musical toca em feridas profundas da sociedade brasileira a partir da história de João Francisco dos Santos. Racistas, machistas, homofóbicos e transfóbicos: não passarão!
NÃO VI E QUERO VER
KURÔ
Nunca vi um espetáculo de dança do bailarino Sérgio Penna, mas vi um pouco do seu trabalho em “Congresso Internacional do Medo” e “Por Elise”, do Grupo Espanca. Como tenho me interessado cada vez mais em acompanhar a cena da dança em BH, esta é uma chance que não dá pra perder, nesse trabalho que conta também com a trilha sonora do Barulhista. E, pra quem ainda não conhece, é também uma oportunidade de conhecer o espaço do C.A.S.A. (Centro de Arte Suspensa Armatrux), onde a montagem será apresentada.
A-CORDA QUE É REAL!
Seguindo o compromisso de acompanhar mais trabalhos de dança neste ano, o que me despertou a curiosidade de assistir a esse espetáculo foi a sinopse. Trata-se de uma obra sobre ser mulher e ser negra. No solo, a bailarina Cyntia Reyder propõe a reconstrução de um corpo que foi subjugado por uma cultura machista, patriarcal e escravocrata/colonizadora. Bom ver a discussão de temáticas político-sociais, que têm impactado tanto o teatro de BH, presente também na dança.
RETINA
Esse é outro trabalho que me chamou atenção pela sinopse. O espetáculo do Grupo Camaleão parece falar sobre como o excesso de informações intervém no mundo contemporâneo. A trilha sonora traz músicas de artistas que morreram aos 27 anos, como Jimi Hendrix, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Ver as energias do rock, da transgressão e da morte, juntas em cena, numa montagem de dança, parece um encontro bastante potente.
NUVENS DE BARRO
Diferente das duas montagens anteriores, “Nuvens de Barro” me chamou atenção pelas fotos. Logo de cara, o mascaramento dos bailarinos da Cia de Dança do Palácio das Artes me fez lembrar do quadro “Os Amantes”, de René Magritte. Além da plasticidade, o espetáculo também se inspira no universo do poeta Manoel de Barros e ver esse “voo fora da asa” no palco tem tudo pra ser uma experiência bastante sensível e bonita.
JOÃO DE BARROS
Dentre os espetáculos infantis, um que quero assistir é “João de Barros”, do grupo Mamãe Tá Na Plateia. Por coincidência, o título da montagem dá a entender que a poesia de Manoel de Barros também é inspiração para a construção de sua dramaturgia e, num cenário que é dominado pelas adaptações de filmes da Disney e por contos de fada, é importante ver um trabalho autoral e de pesquisa voltado pra criançada.
A PREGUIÇA DE DEUS E DO DIABO
Assim como “Máquina”, esse também é um trabalho criado numa escola, mas que tem ganhado os palcos da cidade. A montagem da Cia. Blumbang foi desenvolvida na Escola Livre de Artes Arena da Cultura e é uma livre adaptação da obra de Ariano Suassuna. É uma boa oportunidade pra conferir a obra de um dos grandes artistas da cultura popular brasileira.
RIOADENTRO
A dramaturgia de Raysner de Paula é inspirada na obra de Guimarães Rosa e apresenta a história de um pai que decide embarcar em uma canoa e permanecer no rio próximo à sua casa por décadas, sem nunca revelar os motivos que o levaram a isso. É outro trabalho que surgiu num curso de teatro, como trabalho de conclusão do ator Carlos Caetano na UFMG. A direção é de Lira Ribas, de quem pude assistir dois trabalhos bastante potentes no último ano: “E Peça Que Nos Perdoe” e “Num Ano com 13 Luas”.
NOS PORÕES DA LOUCURA
A equipe surpreende, reunindo nomes de destaque como Ronaldo Fraga (que assina o figurino), Marcus Viana (na trilha sonora) e Décio Noviello (criador da cenografia). Tive a oportunidade de assistir a apenas um espetáculo do diretor Luiz Paixão, “O Pelicano”, mas sei de seu reconhecimento e importância na história do teatro em BH. Acredito que seja um trabalho que aposta no realismo e num viés mais dramático, sendo também um exercício pra mim, enquanto espectador, e que fala de um tema muito relevante: a saúde mental.
BRINCANDO EM CIMA DAQUILO
Outro exercício que me propus na Campanha de Popularização deste ano é o de assistir a mais comédias. Essa se destaca também pela equipe, ao reunir a atriz Marisia do Prado com o diretor Ítalo Laureano, do Grupo Quatroloscinco. O texto de Dario Fo e Franca Rame já foi montado no Brasil por Marília Pêra e Débora Bloch, e essa é a sua primeira montagem em Belo Horizonte.
AS MENINAS DE MADAME MIMI e DDD: DELEITE, DEPOIS DELETE
Por último, mais duas comédias. E dois trabalhos a que quero assistir principalmente pela presença de duas grandes atrizes da história do teatro de Belo Horizonte. Em as “As Meninas de Madame Mimi”, temos Wilma Henriques no papel de uma ex-vedete de teatro de revista, num texto escrito por Rogério Falabella especialmente pra ela. Já em “Deleite, Depois Delete”, a atriz Matilde Biadi, que já trabalhou com diretores como Aderbal Freire Filho, Jota Dangelo e Paulo César Bicalho, volta aos palcos depois de 35 anos, numa peça que fala sobre os desafios de quem nasceu numa época em que não existia computador ou internet em lidar com as novas tecnologias.