— por Luciana Romagnolli —
Se você procura espetáculos teatrais sensíveis e desestabilizadores para ver ou rever nesta Campanha de Popularização do Teatro e da Dança, as minhas sugestões são essas:
“Rua das Camélias”
Talvez tenha sido o espetáculo de BH que mais me impactou no ano passado, e um dos mais desestabilizadores independentemente da origem geográfica. Com direção de Gabriela Luque e dramaturgia coletiva costurada por Daniel Toledo e Gabriela Figueiredo, trata-se de um teatro de imersão, que coloca o espectador na situação de visitante/frequentador de uma casa de prostituição na rua Guaicurus e convida-o à experiência de estar frente a frente com as personagens prostitutas, ouvir suas histórias enquanto partilha a intimidade, o aperto, o calor daqueles espaço, que por si só já instaura tantos sentidos e sensações. Ao mesmo tempo em que investe na potência dessa vivência breve do ambiente da prostituição, a dramaturgia é crítica e autoconsciente o bastante para não transformar a entrada do público em uma visita guiada gourmet, elitista e apaziguadora. Em vez disso, provoca reflexivamente o espectador de classe média e a suposta elite intelectual que tem diante de si a repensar seu lugar social. O tratamento destinado ao público é de uma receptividade não ingênua, e concede ao espectador espaço de ação, escolha e decisão, que é um dos modos menos embrutecedores de configuração da relação artística. Em uma visita, consegui presenciar apenas três das histórias, que já se mostraram suficientemente diversas em suas experiências de gênero, violência, desejo, liberdade. A rever – ou melhor, ver mais.
“Real”
Se, em 2016, foi “Rua das Camélias”, em 2015, “Real”, do Espanca!, foi o espetáculo que mais me perturbou. Fatos sociais contemporâneos ganham formas estéticas, inventivas e sensíveis, as mais variadas, que nos permitem perceber a violência e a poesia com que a arte pode recriar a complexidade ética, emocional, sensível de uma sociedade colapsada, e restituir a eventos que absurdamente já se tornaram cotidianos, anódinos, banais, o seu caráter extraordinário, a sua capacidade de afetação sensível. Estranhar os processos desumanizadores e reconhecer o outro em sua humanidade.
Sobre o trabalho, escrevi uma longa crítica aqui. Destaco um trecho: “O real, então, aparece como gesto de ir ao encontro do outro social. Especialmente porque as histórias envolvem camadas da sociedade recorrentemente desfavorecidas tanto nas ruas quanto nas páginas de jornais, onde mantêm-se muitas vezes ocultadas, não nomeadas, destituídas do direito a uma narrativa própria. (…) Nesse sentido, o recurso ao real abre a possibilidade da restituição não de um acontecimento (o que seria impossível – como Diogo Liberano brada no texto de Inquérito), mas de uma dívida de invisibilidade”.
“Madame Satã”
A força cada vez mais evidente do teatro negro belo-horizontino já mostrava-se nesse espetáculo de 2015, fruto do (agora saudoso) Oficinão do Galpão Cine Horto. Encontro do Grupo dos Dez com João das Neves, que compartilha a direção com Rodrigo Jerônimo, o espetáculo sobressai pela força discursiva e musical, ao colocar o dedo na ferida social da violência contra as travestis – e contra o negro, e contra a mulher – enquanto expressa a riqueza cultural desses corpos desviantes no passado e no presente.
Sobre o trabalho, escrevi com Soraya Belusi uma crítica publicada na revista A[l]berto. Destaco trecho: “Ao espectador é propiciada uma experiência de empatia, rara numa sociedade plena de esforços para tornar invisíveis, risíveis e miseráveis indivíduos em desacordo com o gênero, a cor e a sexualidade aceitáveis dentro de estreitos padrões normativos conservadores. (…) A beleza da montagem reside na dinâmica entre opostos: de um lado a denúncia crua e necessária, que se impõe como apelo à razão; de outro, a vivacidade de homens e mulheres que cantam, dançam e seduzem pela graça de peles, cabelos, vozes e corpos negros, como tão raramente se vê em predominância nos palcos brasileiros. A arte eleva o discurso do panfleto à experiência sensível incomum.É simultaneamente denúncia e homenagem, protesto e celebração”.
“Rosa Choque”
Tantas vezes já recomendei esse espetáculo, e escrevi sobre ele, que é impossível não me repetir. Eis mais uma chance de ver/rever um trabalho certeiro na desnaturalização dos comportamentos gerados pela divisão de gêneros, em constante atualização, reflexão e transformação por parte da atriz Cris Moreira e do ator Guilherme Théo, dirigidos por Cida Fallabela. O texto é de Assis Benevenuto e Marcos Coletta. Desse encontro entre artistas mulheres e homens, nasce uma dramaturgia reflexiva e muito eficiente em fazer com que espectadoras e espectadores questionem papéis sociais mantenedores de desigualdades e violências, e repensem suas performances de gênero.
Sobre o espetáculo, escrevi aqui. Destaco um trecho: “é no sutil (e no simbólico) que começa a violência contra a mulher – e ver tratamentos costumeiramente dado às mulheres serem destinados a um homem escancara essa disparidade: as mãos no ombro, o diminutivo ‘mocinho/mocinha’, pequenos gestos que colocam a mulher numa posição de fragilidade. A inversão choca por evidenciar como consideramos aceitáveis abordagens do feminino que soam absurdas no masculino. Para esse efeito, é didática a reversão, que restabelece o ‘normal’ (essa palavra que sempre remete à normatização) da hierarquia de gênero.”
“Amanda”
O solo da mulher que pouco a pouco perde os sentidos me faz reviver a primeira vez que vi Rita Clemente em cena, em “Dias Felizes”, e o deleite que é assistir a um trabalho de atriz inteligente, expressivo, sensível, em que os caminhos do texto de Jô Bilac são desdobrados – e alargados – pela atuação, sempre se recusando a redundar emoções. Nem sempre a junção de bons artistas em uma ficha técnica deriva na soma das qualidades de seus trabalhos – em “Amanda”, Rita, Jô e Diogo Liberano (codiretor) conseguem esse feito. Ela colore de mais tons e sombras a fábula absurda que se mostra como metáfora de nosso estar num mundo saturado de dispositivos embotadores da sensibilidade, enquanto o terceiro esgarça o drama pela força da performatividade.
“Clínica do Sono”
A direção e dramaturgia de Daniel Toledo derramam um humor estranho e crítico sobre os ambientes corporativos e as relações de trabalho no capitalismo.
“Prazer”
Trabalho anterior a “Urgente”, da Cia Luna Lunera, e – para mim – mais potente na costura dramatúrgica dos sentidos e sensações, ao criar a situação de um jantar entre amigos para expressar as dificuldades individuais de desfrutar da vida. Angústias sobre autoimagem, desejo, gozo, separação, amor, melancolia e depressão permeiam os diálogos e explodem para paredes e chão como uma dramaturgia visual que comenta o que vemos em cena.
Sobre o espetáculo, escrevi aqui. Destaco um trecho: “Penso se a maior ousadia está justamento no antiniilismo. Sem dispensar uma consciência crítica social e existencial, representada principalmente no personagem Osório (paradoxalmente, importante agente da comicidade no espetáculo), o grupo ecoa de Clarice (Lispector) a compreensão de que é preciso gozar “apesar de”. A música catártica e a dança mobilizadora contribuem para que palco e plateia atinjam uma comunhão, refletindo a que acontece em cena pelo entrosamento dos atores e a disposição a estarem juntos e fazer disso uma experiência real”.
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Do que ainda não vi, curiosa, compartilho os meus maiores desejos:
“Ser – Experimento para Tempos Sombrios”
Um dos espetáculos que mais lamentei ter perdido no ano passado, tanto pelo trabalho de ator de Rafael Bacelar, cuja presença e contundência pude ver em “Nossa Senhora do Horto”, quanto pela orientação dramatúrgica de Marcio Abreu e a direção de Alexandre de Sena, dois artistas de quem venho acompanhando a trajetória criativa com máximo interesse pelas qualidades sensível e crítica incomum que apresentam. Para arrematar/arrebatar, o tema da resistência insurgente de identidades desviantes aos rígidos padrões normativos que emperram nossa sociedade ainda tão conservadora e reacionária.
“Controle de Estoque”
Fecho da trilogia sobre o trabalho no capitalismo tardio iniciada por Daniel Toledo com “Fábrica de Nuvens” e seguida por “Clínica do Sono”, que recomendei ali em cima.
“Estranha Civilização”
Outro trabalho com texto de Daniel Toledo – fato que destaco não por amizade ou relação profissional (ele é editor desse site também), mas por dois dos espetáculos mais potentes de 2016, “Rua das Camélias” e “Nossa Senhora do Horto”, terem escrita sua. Aqui, em parceria com Ana Luísa Santos, assistente de dramaturgia (o que será essa função?). A direção é de Lydia del Picchia, do Grupo Galpão, e, se ainda mais fosse necessário para despertar meu interesse, uma frase da sinopse toca direto numa ferida latejante: “A humanidade precisa sobreviver à civilização”.
“Danação”
Conheci o texto quando ainda se chamava “A Menina de Lá”, em uma leitura do Janela de Dramaturgia, na qual se revelou mais uma vez a poesia da escrita dramatúrgica de Raysner de Paula, aqui em versão adulta, mas ainda lúdica e terna, estranhando as palavras sob o rigor da rima. Como o ator Eduardo Moreira, do Galpão, e os diretores Marcelo Castro e Mariana Maioline terão transformado essa matriz cênico-literária em acontecimento teatral?
“Migrações de Tennessee”
Há muito espero oportunidade de ver essa direção de Eid Ribeiro, de quem infelizmente não pude ver a longa trajetória teatral, mas admiro especialmente pela concepção e direção de “Antes do Silêncio”. Se lá recriava o “Primeiro Amor” de Beckett, aqui, encena obra e vida de Tennessee Williams – um dos grandes dramaturgos do século passado, hábil no desenho de relações intersubjetivas dentro da família ou de um casal.
“Ensaio para Senhora Azul”
Sempre me desperta a curiosidade ver o solo de uma atriz que decide investigar cenicamente o ser-mulher a partir de suas próprias vivências. Kelly Crifer conta ainda com a companhia criativa de Grace Passô (autora de parte dos textos), do dramaturgo Assis Benevenuto e do diretor Robson Vieira, seu parceiro no grupo Teatro Invertido.