(Foto de capa: Espetáculo Ombela. Crédito: Fernando Azevedo)
– Por Marcos Antônio Alexandre – (Faculdade de Letras – UFMG/CNPq)
* * * O Horizonte da Cena faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, ao lado das seguintes casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Cena Aberta, Agora Crítica, Tudo, menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
Crítica escrita a partir dos espetáculos Brechas da Muximba e Xirê, do Coletivo À Margem, e Ombela, do grupo O Poste Soluções Luminosas.
Em meus estudos sobre as poéticas pretas, venho buscando ampliar as minhas investigação e olhares analíticos para outros territórios em que os teatros negros vêm ganhando destaque, diversificando os campos de reflexão para ler tais cenas pretas em suas múltiplas dimensões dramatúrgicas e estéticas. Foi em busca de encontrar e conhecer novos trabalhos que escolhi Recife como espaço para realizar a segunda etapa de minha pesquisa de pós-doutoramento intitulada Poéticas dos corpos aqui e alhures: afetividades, dramaturgias, narrativas e performances e, assim que cheguei à cidade, pude observar a existência de um cena artística intensa e tive a oportunidade de acompanhar espetáculos do eixo Rio-São Paulo que chegaram à cidade para cumprir temporada, assim como pude assistir a trabalhos que integraram festivais importantes locais como o “FETEAG – Festival de Teatro do Agreste”[1], que aconteceu em Caruaru, mas que teve passagem pelo Recife com a apresentação de algumas peças, e o “Zuada – Mostra de Circo Daqui”[2], um encontro de artistas circenses locais capitaneados pelos artistas João Lucas Cavalcanti e Vitor Lima, integrantes da Cia Devir e criadores de um número circense performativo primoroso nomeado Assum Preto, uma performance circense-teatral envolvendo as habilidades da dupla com o trapézio, a música, a poesia e o improviso.
Na minha busca pela cena preta na cidade do Recife, cheguei a O Poste Soluções Luminosas, espaço gerido por Agrinez Melo, Naná Sodré e Samuel Santos, artistas com uma extensa e sólida carreira e responsáveis pela criação de trabalhos comprometidos com as perspectivas dos teatros negros. Na página web dO Poste, lemos que se trata de “um grupo artístico pedagógico e de investigação teatral, [que] se dedica ao trabalho de pesquisa voltado para a antropologia teatral e a ancestralidade e tem como instrumentos o corpo, o jogo e o pensamento crítico da sua obra.” (http://oposteoposte.blogspot.com/). Pesquisando sobre o grupo, tomo conhecimento de sua trajetória de mais de 20 anos de existência na construção de uma produção espetacular contínua e consolidada em que as poéticas pretas têm sido fonte de inspiração artística para a composição de trabalhos artísticos que pulsam para além da cena recifense; salientando que seus integrantes realizam uma prática pedagógica de formação de jovens artistas negras e negros, a partir de uma perspectiva afrorreferenciada.
Na consolidação de um trabalho prático-pedagógico é que os integrantes do grupo criaram o projeto de “Residência do Núcleo de Teatro O Postinho Soluçõezinhas Luminosas” (@nucleopostinho), que estreará, no dia 22 de novembro, seu espetáculo Àwọn Irúgbin, primeiro trabalho do coletivo cujo nome, de origem iorubá, significa Sementes. A peça, que já teve um ensaio aberto realizado no final de outubro, conta com uma dramaturgia que foi concebida pelos integrantes, mediados pela assessoria de Samuel Santos, quem também assina a direção da montagem, que conta como mote inspirador para a construção dramatúrgica e espetacular da obra, as proposições conceituais sobre o “tempo espiralar”, de Leda Martins.
Os integrantes da companhia, ademais, organizam o “Ìtàn do Jovem Preto”, uma ocupação que também é realizada no espaço do grupo, que abre as portas para receber espetáculos de companhias de artistas locais e de outros territórios, propostas voltadas para as questões negras, a partir de múltiplas estéticas e de proposições dramatúrgicas diferenciadas.
Foi nesse contexto que, no dia 28 de setembro de 2024, eu tive a oportunidade de conhecer o teatro de O Poste Soluções Luminosas, bem como seus integrantes, Agrinez Melo, Naná Sodré e Samuel Santos. Dirigi-me ao espaço, após acessar as redes sociais do grupo e depois de receber a recomendação de que ali, nO Poste, eu teria contato com propostas teatrais pautadas no teatro negro. Assim, cheguei ao teatro para assistir à peça Brechas da Muximba, que integrava a programação da 3ª edição do projeto “Ìtàn do Jovem Preto”. Para minha grata surpresa, além de conhecer pessoalmente os integrante do coletivo, tive acesso a um espetáculo muito especial, em que, de fato, “jovens negros do Recife contam suas vivências a partir de performances culturais”, como anunciava a programação veiculada no Instagram do grupo.
Brechas da Muximba
Foto: Fernanda Gomes
O espetáculo tem direção do Coletivo À Margem e foi concebido a partir de um experimento cênico construído por estudantes do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Considero relevante pontuar que esse movimento de trabalhos surgidos dentro do contexto acadêmico nos cursos de Artes tem sido comum nas universidades brasileiras. São propostas espetaculares em que estudantes negros e negras têm levado suas pautas para os cursos e têm impulsionado uma cena preta, revelando espetáculos potentes e, muitas vezes, indo contra um sistema que coloca empecilhos para a produção e realização de trabalhos concebidos a partir de propostas que buscam reivindicar seus lugares de pertencimento e/ou que os inovam ao trazer para cena e discussão de pautas específicas voltadas para as questões afetivas, divergentes, e identitárias.
A sinopse do grupo explicita o teor do espetáculo:
Quatro jovens negros trazem à cena relatos inspirados em suas vivências pessoais, que refletem ausência de afeto, dificuldades na vida e relações familiares conturbadas. Mesclando Teatro e Hip Hop, a obra faz refletir sobre a busca da juventude negra por brechas no cotidiano que inspiram leveza, acolhimento e aceitação.
Com a direção de Cas Almeida e Iná Paz e contando com um elenco formado por Tycia Ferraz, Mah Carvalho, Felipe Araujo e Nelba Santos, a peça se revela como um sopro de vitalidade cênica e com uma tessitura dramatúrgica construída de forma a dar vazão para as identidades, subjetividades e pulsões do coletivo, composto por jovens artistas negros que apresentam assuntos que transitam do universo pessoal às coletividades da população negra e periférica.
BRECHAS MEMÓRIA MEDO MUXIMBA
Essas são palavras-motes com base nas quais a dramaturgia do espetáculo é construída. Os quatro artistas – dois atores e duas atrizes – vão desenrolando a teia dramatúrgica a partir de cada palavra-mote, colocando o que cada uma representa dentro de suas vivências como jovens – negros e periféricos –, pessoas que estão desenvolvendo uma arte comprometida com suas (escre)vivências. Como já explicitado, a escrita do texto surge dentro do contexto acadêmico, espaço de compartilhamento de experiências comuns do elenco e de seus parceiros, mas, pela potencialidade dos discursos, alcança outros espaços e olhares rompendo com os “muros” da universidade e ganhando a cidade. A partir das relações afetivas e de convívio, os autores, no processo de construção dramatúrgica, transitam a partir das memórias de pessoas próximas (como a memória da avó de Iná Paz, um dos dramaturgos) e das questões pessoais relacionadas ao tema do acalanto, o que faz o grupo pensar no termo – muximba / acalanto – como gesto e como pulsão corpórea para construção de um estar juntos em cena. Para os envolvidos no processo de construção espetacular de Brechas da Muximba, o acalanto se converte em um lema para refletir sobre como as pessoas negras recebem esse gesto, propondo algumas respostas cênicas para discutir, inclusive, como os mais próximos e os ancestrais dos integrantes do grupo recebem/receberam esse ato afetivo.
A chicotada do calango dói
A chicotada do calango dói
Assistir ao espetáculo no espaço cultural de O Poste é uma experiência à parte, pois a dramaturgia do lugar acaba contribuindo muito para a sua recepção, visto que se trata de um ambiente intimista em que o público se senta muito próximo dos intérpretes e as cenas apresentadas acabam aproximando a plateia, como se passássemos a integrar as ações e as partituras físicas que vão sendo evocadas pelos artistas. O elenco utiliza das possibilidades de contação de histórias para que o público vá, de alguma forma, sendo acalentado pela tessitura poética, que evoca os Orixás, e, ao mesmo tempo, estabelece relações muito caras aos estudos dos teatros negros. Assim, a peça estimula conversas transversais e os intérpretes somam às suas histórias de vida correlações com os legados do TEN e com os conhecimentos ancestrais e corporais possibilitados pelas presenças griotte de Rute de Souza e Lélia Gonzales, com seu pretuguês, que, no espetáculo, é também uma opção estética.
Do trabalho, merecem ser destacados o figurino e os adereços utilizados pelos performers que nos remetem à estética do hip-hop sem deixar de evidenciar o elo entre intérpretes e as ancestralidades pretas. Os dois atores e as duas atrizes têm seus cabelos ornamentados com búzios e utilizam óculos escuros com búzios colados nas lentes, uma evidente relação com as conexões do tempo espiralar, que é evocado o tempo todo pelo texto.
Faz jus a evidência da cena final, em que cada intérprete apresenta para o público um quadro, que, antes, integra o cenário, composto por um emaranhado de redes, formando uma grande teia de histórias. Por meio de cada quadro, o ator/ a atriz traz um depoimento de sua história de vida que é entrecruzada com sua corporeidade negra e dividida com a plateia, proporcionando que muitas pessoas, entre as presentes, se identifiquem com as partituras de histórias pessoais.
Cercados por dor,
Vamos atrás de uma abertura,
Para assim encontrarmos conforto
E nós deparamos com momentos,
Brechas que ultrapassam o tempo,
Lembranças que um dia nós foi alento.
A cada lembrança de abraço,
A cada gesto de carinho,
A cada amor que me foi dado,
A cada momento em que não estive sozinho,
São pequenas lacunas, assim como essas,
Que faz a dor por um momento,
Sumir bem rapidinho.
Ainda consigo me lembrar,
De vários momentos que pode vivenciar.
Das risadas espontâneas,
Dos momentos em família,
Do meu primeiro espetáculo,
Dos meus velhos amigos
De um bom dia empolgado,
Do colo de voinha,
Das brincadeiras de criança,
E do olhar de mainha.
Lembro de ir pro mar e nele mergulhar,
Lembro de olhar pro céu e ver ele brilhar,
Lembro do primeiro livro, que me fez chorar,
Lembro do piquenique, que comecei a namorar,
Lembro daquele abraço quentinho, que me ensinou o que é amar.
São pequenos momentos,
Pequenas brechas,
Brechas que buscamos, quando uma porta não é aberta.
Tudo isso é por cada momento,
Por cada brecha que nos fez continuar vivos.[3]
Xirê
Volto a ter contato com um trabalho do Coletivo À Margem no dia 3 de outubro, quando tive a oportunidade de ver a peça Xirê, no Teatro Luiz Mendonça. Fui assistir ao espetáculo motivado pela experiência prévia de ter assistido Brechas da Muximba. Na proposta divulgada pelo coletivo, Xirê é descrito como um espetáculo que traz à cena as vozes e histórias dos corpos periféricos da região metropolitana do Recife, que existem e resistem na sociedade contemporânea. Construído a partir do hip-hop e regado pelas escrevivências e pelo sagrado afro-brasileiro, o Coletivo À Margem convida você a reivindicar, conosco, o futuro que nos pertence.
Foto de Jheni Rodrigues
A montagem tem produção, direção e concepção cênica do próprio coletivo, que também é responsável pela assinatura da dramaturgia com a participação de outros colabores, contando com um elenco formado pelos jovens artistas Alice Portela; Cas Almeida, Eduarda Ferreira, Elaine Cristina, Francisco Bento, Iná Paz, Maria Guerra e Torres ZN, todos negros e protagonistas de suas histórias. A dramaturgia é inspirada nas experiências do elenco, nas tradições ritualísticas do xirê e nas referências do hip-hop, do slam e do rap, congregando, na proposta, influências de vozes outras e plurais como, a título de exemplo, a arte da jovem artista recifense Júlia Bione, atriz, cantora, poeta marginal e locutora.
O público é convidado a assistir ao espetáculo ocupando o palco do Teatro Luiz Mendonça e todas as pessoas são recebidas no espaço e, antes de serem direcionadas pelos atores e atrizes para seus respectivos acentos compostos por colchonetes e algumas cadeiras, são convidadas a lavar as mãos em uma bacia com uma infusão com água, plantas e ervas. Nesse momento, se instaura o rito do xirê e é estabelecido o pacto com o espectador. O palco é transformado em um espaço de semiarena, onde as pessoas presentes ocupam as laterais e a frente do espaço, sentindo-se muito próximo dos intérpretes que convocam o público para participar do espetáculo com o seu caráter ritualístico, performativo e, acima de tudo, combativo.
Tô cansada de ser didática para explicar a quem não quer aprender. Então só me respeita se me ver passar.
A meta é encher a minha mãe de prata, mostrar para ela que a gente tem valor.
Tenho o que mereço.
Ecoam essas e outras vozes nas letras e nos corpos e nas corpas do elenco.
Os jovens intérpretes constroem Xirê influenciados esteticamente pelo movimento hip-hop, seguindo os preceitos do movimento, sua sonoridade e filosofia de vida, propondo um teatro engajado em que as histórias pessoais do elenco são utilizadas como dispositivos dramatúrgicos para tratar temas que são de interesse da população negra e periférica. A partir dessas pressuposições, o espetáculo se apropria de signos e imagens ancestrais para ler a nossa contemporaneidade e colocar em discussão os lugares de pertencimento dos atores-atrizes que integram o espetáculo com suas corporeidades, suas histórias e suas palavras poéticas que reivindicam identidades, subjetividades e denunciam questões sociais e de invisibilização. A relação de “eu conheço essa história” é inevitável se pensamos nas realidades de outras cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. As vivências trazidas para cena pelos jovens artistas do Recife não é distinta das cidades citadas e provavelmente de outros municípios brasileiros.
Merece realce o cenário proposto em que o chão é coberto por folhas secas e o fundo do palco é envolto por jornais que, esteticamente, remetem às grandes cidades com seus muros cobertos por intervenções de grafitagens e pichações. Há uma cena específica em que os atores, na parede de jornais, picham nomes como “xirê”, “margem”, “resistir”, “estar vivo”. Em outra cena, cada ator/atriz do elenco se aproxima de uma pessoa e oferece um pincel para que ele/ela escreva algo na sua camisa branca fazendo com seus corpos – e corpas – funcionem como uma tela, um muro, um quadro. Em cena vão sendo criadas paisagens poéticas nos corpos dos/das integrantes do elenco.
No Xirê do Coletivo À Margem, a interrelação entre a religiosidade e o hip-hop se entrecruzam. Nas cenas, há momentos precisos em que se observam as dinâmicas do candomblé e, em outros, as influências do hip-hop. O xirê como rito, como festa se faz presente ao som da percussão; o hip-hop, também como rito e festa, se faz presença na atitude e nas partituras físicas dos/das intérpretes, cujas palavras ganham, em vários momentos, a dimensão de letras/versos/oralituras como nos duelos de MC’s, nas batalhas do Slam e nas cadências performativas do rap.
Por obra da sorte nasci preta
Retinta, pérola negra
Bisneta de rezadeira
Que na ancestralidade me acompanha
Destinada a ter que encarar
O Racismo que maltrata
mas não conseguiu me apagar
Não conseguiu nossa força anular
Essa sim, nos foi roubada
Porém tomamos de volta
Eu não ando só, como dizem povoada
Mas voltando a reza
Traz as ervas pra eu me banhar
Pra fortalecer minha corpa periférica
Minha existência despadronizada
Minha alma sedenta de justiça
Por isso minha voz ecoa
Onde muitas foram silenciadas
Por mim, por elas e por todas
Enquanto viver não posso ficar calada
Pra gente preta desistir não é escolha
Mas vamos voltar pras ervas
Pois eu quero adoçar minha alma.[4]
Ombela
Regresso ao Espaço de O Poste Soluções Luminosas, no dia 26 de outubro, agora para assistir a Ombela,[5] espetáculo do grupo criado, em 2014, e que realizou uma única apresentação dentro do projeto “Ocupação Espaço O Poste”.
Com direção de Samuel Santos e canções autorais de Isaar, as atrizes Agrinez Melo e Naná Sodré personificam o encontro de duas entidades femininas a partir de duas gotas de chuva. A montagem é baseada no texto épico homônimo do escritor africano Manuel Rui, onde “Ombela”, em umbundo, significa chuva. O espetáculo musical convida o público a mergulhar nos arquétipos ancestrais femininos da cultura africana, utilizando a chuva como símbolo de transformação e conexão com a ancestralidade.
Foto de Lucas Emanuel
A sinopse do trabalho entrega a real dimensão da preocupação do grupo na realização de uma peça voltada para a valorização de nossas culturas negras e ancestrais, entendendo, fundamentado nas palavras de Leda Maria Martins (2021, p. 63), que “[a] ancestralidade é clivada por um tempo curvo, recorrente, anelado; um tempo espiralar, que retorna, restabelece e também transforma, e que em tudo incide”. E é esse tempo espiralar que é evocado por meio do espetáculo Ombela.
A interpretação das atrizes Agrinez Melo e Naná Sodré é excepcional, com uma dinamicidade e uma sofisticação que nos conduz a uma viagem através dos tempos e das águas. “A água não se segura”, diz, em algum momento, a atriz Naná Sodré; e as duas atrizes, com suas corporeidades e vocalidades, conduzem os espectadores pelas águas e pelos caminhos inusitados do universo onírico e de nosso tempo da presença e da memória. São duas mulheres-entidades transitando em cena pelo tempo – e a partir de suas espirais – acionando os arquétipos que nos aproximam de deidades como Iemanjá, Oxum, Iansã, Nanã…
Assistir à Ombela é navegar, a partir das águas, pelas espirais do tempo. Segundo o diretor Samuel Santos, o espetáculo foi concebido a partir de uma pesquisa realizada pelo grupo e relacionada com uma investigação sobre o “corpo ancestral”. Como defendo que os teatros negros estão conectados, acredito que Ombela pode – e deve – ser visto como uma construção espetacular concebida a partir dos procedimentos estéticos do “teatro preto de candomblé”. Recorrendo, aqui, às pesquisas de Fernanda Júlia Barbosa, Onisajé, que assim explicita a sua proposição metodológica:
Um fazer cênico que pudesse reelaborar a ritualidade do Candomblé e assim empretecer o ritual do teatro. Por isso, proponho nesta pesquisa o projeto poético Teatro Preto de Candomblé, que para além do emprego dos elementos sinestésicos, sinergéticos, sonoros, linguísticos, mitológicos, intelectuais, rituais e plásticos inerentes a ritualidade do axé, é um teatro que toma como paradigma para a construção da cena, a história de luta, resistência, ressignificação, representação e reterritorialização construída pelo Candomblé. Objetiva ser um teatro polissêmico, multilingual, que se apresenta como mais uma possibilidade poética no vasto campo de possibilidades do Teatro Negro. Como um ebó (oferenda, presente), ele oferta representatividade e igualdade de presença negra, criatividade e memória, preserva a existência de um universo negro, místico, mítico e espiritual na cena teatral atual. Pretende-se um teatro de reunião de memórias. A memória ritual negra encontra-se com as memórias ancestrais do teatro e deste encontro nasce uma trama potente de linguagens, tecidas pela ancestralidade no terreno das fronteiras identitárias. Um teatro mergulhado no ritual e com a força transcendental que emana de múltiplas manifestações culturais e de variadas expressões artísticas que se atravessam nas dimensões do humano e do sagrado. Um atravessamento de almas com o poder de invocação das energias das naturezas e das espiritualidades negras. (Onisajé, 2021, p. 36-37)
O teatro de O Poste contribui muito para que os espectadores adentrem o portal que é aberto pelo espetáculo. O local é intimista e o público fica bem próximo do espaço de cena de das atrizes, que atuam o tempo todo num cenário em forma de círculo muito compacto enfatizando ainda mais o caráter ritualístico das cenas e da fábula, que vai sendo construída diante dos olhares atentos dos espectadores. Como a peça surge de um poema de Manuel Rui, quando as atrizes começam o espetáculo falando em Umbundo é criado um “estranhamento” na plateia (e em mim) que quer “entender”, literalmente, as palavras, mas, rapidamente, esse estranhamento é desfeito, pois as palavras na língua banta vão tomando formas em imagens que vão sendo criadas nas corporeidades das atrizes, nos gestos, nos cantos, no deslocamento pelo espaço. As ações e partituras físicas das atrizes evocam um estado de movência que vai sendo corporificado nas corpas das atrizes, fabulando e fazendo do mito ação, realizando uma poiesis cênica, lembrando aqui, mais uma vez, Leda Martins que afirma que “O corpo-tela é um corpo-imagem” (Martins, 2021, p. 77). E são múltiplas as imagens que ficam ao entramos em contato com as corpas e as corporeidades de Agrinez Melo e Naná Sodré. Convoco, aqui, mais algumas palavras de Martins:
O corpo-tela, como imagem material e mental, fundo, superfície, volume, relevo, perspectiva e condensação, não nos remete apenas às inscrições peliculares e aos adereços e adornos corporais e, por consequência, ao privilégio das poéticas da visibilidade, pois evoca também, como sonoridade, a evidência auditiva, o pescrutar dos ouvidos, a ativação intensa dos registros auriculares. (2021, p. 78)
Ombela, a partir dos corpos-tela das atrizes, convoca tudo isso e nos faz pensar como o espetáculo mantém-se “contemporâneo” ao nosso tempo, atualizando as espirais do tempo depois de 10 anos de sua estreia. Como um espectador que assisti ao espetáculo pela primeira e depois de uma década de sua concepção, senti-me completamente envolvido pelas fabulações propostas cenicamente pelas atrizes. Ombela é uma ode às mulheres, é sobre mulheres e o tempo (ou os tempos), é sobre mulheres transitando pelo tempo, de uma mulher água, para uma mulher terra; de uma mulher barro, para uma mulher lama. Por meio dos arquétipos imagéticos dessas mulheres, chegamos às mulheres negras contemporâneas com suas movências, potências, ritos e vivências… Ombela, como espetáculo, produz um momento de aquilombamento entre as atrizes e o público, acentuando uma instância do rito.
Trazer esses três espetáculos para reflexão é uma primeira aproximação minha como crítico dos teatros negros que vêm sendo produzidos na cidade de Recife, com a expectativa de que sejam as primeiras experiências de muitas outras que estarão por vir. Os trabalhos do Coletivo À Margem e de O Poste Soluções Luminosas são potentes e têm como singularidades comuns o fato de serem concebidos a partir de investigações estéticas em que as experiências de seus integrantes integram o processo de concepção dos textos dramatúrgicos e espetaculares. Não posso deixar de pontuar a importância que a história e a trajetória artística e de pesquisa de O Poste têm na formação de outros coletivos na cidade de Recife, inclusive na dos integrantes do Coletivo À Margem, fortalecendo assim o caráter de formação inerente às ações pedagógicas dos integrantes de O Poste e comum nas proposições artísticas construídas pelos teatros negros.
FICHA TÉCNICA DOS ESPETÁCULOS
Brechas da Muximba
Direção, Produção, Figurino e Cenografia: Coletivo À Margem
Iluminação: Pauly e Eduarda Ferreira
Elenco: Tycia Ferraz, Mah Carvalho, Felipe Araujo e Nelba Santos
Musicalidade: Iná Paz
Produção: Coletivo À Margem
Xirê
Direção: Coletivo À Margem
Dramaturgia: Coletivo À Margem e Colaboradores
Elenco: Alice Portela, Cas Almeida, Eduarda Ferreira, Elaine Cristina, Francisco Bento, Iná Paz, Maria Guerra, Torres ZN
Concepção Cênica: Coletivo À Margem
Produção: Coletivo À Margem
Iluminação: Diniz Luz
Sonoplastia: Maddu Cabral e Iná Paz
Assistência de produção: Jheni Rodrigues
Preparação Vocal: Elaine Cristina
Preparação de Elenco: Coletivo À Margem
Intérpretes de LIBRAS: Yastricia Santos, Joana Rosas e Samuel Feijó
Design e Mídias: Rômulo Jackson
Fotógrafo: Lucas Carneiro
Ombela
Direção: Samuel Santos
Elenco: Agrinez Melo e Naná Sodré
Texto: Manuel Rui
Canções autorais: Isaar
Concepção: grupo O Poste Soluções Luminosas
Referências:
MARTINS, Leda Maria. Performance do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021
BARBOSA, Fernanda Júlia (Onisajé). Teatro Preto de Candomblé: uma construção ético-poética de encenação e atuação negras (Doutorado em Artes Cênicas) Universidade Federal da Bahia. Escola de Teatro. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Salvador, 2021.
[1] O Programa e as informações sobre o Festival estão disponíveis em https://feteag.com.br/.
[2] Confira https://www.folhape.com.br/cultura/projeto-da-cia-devir-leva-arte-circense-de-artistas-locais/365274/.
[3] Dramaturgia cedida pelo Coletivo À Margem.
[4] Fragmento da dramaturgia cedida pelo coletivo.
[5] Um apresentação do espetáculo, realizada em 2021, pode ser conferida no link: https://www.youtube.com/watch?v=oEWJPZpLPME.