Por Soraya Belusi (*)
Roberto Audio em cena de “Bom Retiro 958 Metros” (Foto Flávio Portella)
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Foram quatro dias intensos de imersão em propostas muitas vezes diversas, opostas, divergentes, mas todas elas marcadas – e por isso a minha escolha em vê-las na rápida passagem por São Paulo – por sólidas trajetórias de seus criadores, independentemente do tempo de ofício e da projeção que alcançaram. É comovente (emocional e artisticamente) presenciar e compartilhar momentos de plenitude no percurso de artistas capazes de levar o espectador a experiências teatrais tão singulares.
O primeiro encontro deu-se nas ruas do Bom Retiro, bairro do centro da capital paulista conhecido pela tradição têxtil, que, mais que palco, é o ponto de partida e de chegada de toda a dramaturgia do mais recente espetáculo do Teatro da Vertigem, “Bom Retiro 958 Metros”. Depois da primordial dica de um amigo de que deveria assistir à peça em dia de semana, foi possível vivenciar as fricções entre espetáculo e o cotidiano do bairro, potencializando um ao outro, ambos se ressignificando, contradizendo-se.
A ideia de dramaturgia do espaço aqui parece explodir e se redimensionar, determinando todo o desdobramento da cena, dos recursos de iluminação ao delineamento dos personagens, da relação com o espectador, este, “obrigado” a se relacionar com os ocupantes deste lugar perdido no tempo na memória, corrompido no seu ideal romântico, dando lugar a consumistas obsessivos, mendigos, imigrantes escravizados. A pesquisa no que tange à ocupação do espaço urbano alcança imagens sublimes, como a dos clientes abrindo as portas do “templo” do consumo ou do trem projetado sobre o fantasma de uma noiva que se mistura com a passagem do trem real, entre várias outras.
A condução do espectador pela ação dramática e pelo espaço também atinge soluções eficazes como os carrinhos de som e transporte de materiais, tão comuns ao cotidiano do bairro, incorporados à encenação. Ao mesmo tempo em que se vê o trabalho hercúleo de produção que tal trabalho demanda, percebe-se um momento de grande maturidade de um coletivo que se propõe a dialogar, ocupar e desestabilizar nossa relação com a cidade e com nossa própria noção dos limites do teatro.
Mas isso não tem nada a ver com o trabalho do Antunes Filho, alguém poderia argumentar. Sem querer aqui defender paralelos, o que une o Vertigem ao encenador paulista é a capacidade que ambos têm de oferecer experiências plenas ao espectador – é disso que se trata o texto. No ano do centenário de Nelson Rodrigues, Antunes revisita a obra do dramaturgo e a si próprio em “Toda Nudez Será Castigada”. Talvez não fosse necessário lembrar, mas Antunes, com montagens como “Nelson Rodrigues – O Eterno Retorno” e “Paraíso Zona Norte”, deu novos contornos à leitura da obra rodriguiana.
O funeral de Geni por Antunes Filho (Foto Emidio Luisi) |
A encenação de “Toda Nudez…” convida o pequeno Nelson para abrir a cena, a voz do dramaturgo em off, como se estivesse presente enquanto a ação se desenrola. Em sua direção, Antunes imprime um ritmo frenético à história, deixando a cargo dos atores que, com o mínimo de recursos, ocupem o espaço, construam a cena, o clima, a dinâmica da cena, imprimindo à cena um equilíbrio entre o rigor e a espontaneidade.
Esses dois elementos também estão presentes no novo trabalho de Newton Moreno e Os Fofos Encenam. Em “Terra de Santo”, a dramaturgia consegue trafegar entre a quase naturalidade da cena inicial, uma manhã no cotidiano de um canavial, ao rigor quase ritualístico imposto às cenas seguintes.
Depois de “Assombrações do Recife Velho” e “Memória da Cana”, o grupo dá desdobramento às suas pesquisas, desta vez focando nas relações entre a cana de açúcar e a construção histórica, social e religiosa nordestina e brasileira. O coletivo reuniu vasto material de pesquisa e, a partir do Pentateuco – os cinco livros do Antigo Testamento –, evoca a dimensão do sagrado com origens nas religiões cristãs, judaicas, indígenas e africanas, permitindo aos atores apropriarem-se da ideia de presença e de performatividade.
A dramaturgia de Newton abraça o espectador, que está sempre amalgamado pela encenação, seja no momento mais naturalista, quando compartilha com os cortadores de cana uma boia-fria, seja quando é convidado a entrar no mundo do divino e do metafísico, no plano do indefinível.
Ainda nestes breves relatos sobre momentos de plenitude, incluo uma experiência no mínimo intrigante para o espectador “iniciado”. Um dos destaques das últimas temporadas na cena paulistana, Roberto Alvim tem feito barulho (literalmente) com sua pesquisa que envolve “princípios” próprios no que tange à dramaturgia, encenação e trabalho do ator, propostas condensadas em trabalhos como “Prometeu” e “Sete Contra Tebas”, que integram o projeto “Peep Classic Ésquilo”, de seu Club Noir.
Cena de “Prometeu”, uma das montagens do projeto Peep Classic Ésquilo (Foto Julieta Bacchin) |
Vou tentar resumir (tarefa impossível) o que se passa: o espectador é conduzido respeitosamente até a sala de espetáculo (num charmoso café na rua Augusta). Um quase breu toma o espaço quando a ação se inicia. Os atores, todos com vestes pretas quase que dos pés a cabeça e Prometeu encapuzado, estão milimetricamente posicionados no espaço, um grande cubo preto vazado sob um fundo branco (ou seria um fundo branco aparente sobre um cubo vazado?). Essa imagem sofrerá pequenas modificações. Os atores permanecem quase que sob total penumbra, movem-se poucas vezes, como que em movimentos de peças de xadrez, únicos momentos em que a luz se modifica.
É a voz que parece conduzir tudo. A tentação de fechar os olhos e entregar-se ao breu total parece irresistível. Mas e se algo acontecer, deve se perguntar o espectador. É na palavra, na articulação, no poder de ocupar o espaço e construir o tempo com o som que parece residir a principal potência dessa investigação do Club Noir. Um poder de síntese, de limpeza de informações para o espectador, de extremo rigor e radicalidade no ato de se contar uma história.