Por Julia Guimarães :::
Em 1992, quando o artista argentino Rirkrit Tiravanija converteu em cozinha uma galeria de arte em Nova York e convidou o público a degustar uma refeição feita à base de curry, o alvoroço da crítica em torno dessa obra foi imenso. A ponto dela se transformar numa das principais referências para a corrente artística batizada hoje como estética relacional.
Ao fazer da obra um ato de encontro, Tiravanija abriu precedentes para uma série de outros artistas que experimentaram princípios semelhantes. Certo mesmo nessa experiência é que esse tipo de partilha vinculada ao alimento seja talvez uma das formas mais eficazes de aproximar pessoas.
Foi também através de uma refeição – mais especificamente um farto jantar de quitutes nordestinos – que a Cia Teatro Balagan (SP) abriu sua sede para os grupos Teatro Kimen, do Chile, e o Clowns de Shakespeare, de Natal, na noite da última quinta-feira (7). A celebração fez parte do intercâmbio artístico entre coletivos teatrais, atividade da programação da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. O encontro contou também com integrantes da Cia. Stravaganza di Teatro, de Porto Alegre e da Inquieta Cia. de Teatros, de Fortaleza.
Embora tenha se iniciado nos moldes tradicionais – com a formação de uma grande roda entre os presentes e uma breve apresentação dos grupos – foi na cozinha, nos corredores e ao redor da fogueira acesa na área externa do espaço que as trocas ganharam fôlego e espontaneidade.
Conhecidos de longa data, os artistas da Balagan e do Clowns de Shakespeare ficaram responsáveis pelos pratos do jantar. Baião de Dois, Escondidinho de Carne Seca, Cuscuz, entre outras especialidades da região do grupo potiguar foram degustadas. De sobremesa, a tapioca apareceu em duas versões: na forma de pudim e com recheios de brigadeiro e morango.
Quem já participou de ensaios abertos e de outras atividades na sede da Balagan provavelmente conhece: é tradição antiga do grupo de oferecer jantares aos visitantes. Como relata Maria Thaís, diretora do coletivo, muitas vezes os pratos preparados têm relações simbólicas e metafóricas com a própria identidade das companhias que os oferecem. O vatapá, por exemplo, é a refeição que melhor corresponde às características da Balagan. Sua elaboração complexa e demorada, com muitos ingredientes fortes, remete tanto à personalidade dos integrantes quanto aos longos processos de pesquisa do grupo.
Os sabores da culinária nordestina que inspiraram o jantar tinham também relação com a nova investigação da trupe paulista. Batizado “Cabras – cabeças que voam, cabeças que rolam”, o projeto iniciado em março de 2013 teve como ponto de partida uma imersão no universo do cangaço nordestino. A partir daí, desdobrou-se na reflexão sobre a guerra, a partir de diversas perspectivas culturais.
Os outros grupos também conversaram sobre suas criações. A atriz e diretora Paula González Seguel, do Teatro Kimen, explicou como a proposta de seu coletivo nasceu da necessidade de reconhecimento das origens mapuche de sua família. Falou também sobre o delicado trabalho com senhoras da mesma etnia, que participam de espetáculos e processos do coletivo.
Já Fernando Yamamoto, diretor do Clowns de Shakespeare, contou que o grupo prepara dois novos trabalhos com foco na América Latina. “O Livro dos Abraços”, do uruguaio Eduardo Galeano, inspira montagem voltada para crianças. Já a peça “Nossa Senhora das Nuvens”, escrita pelo argentino Arístides Vargas, servirá de base à criação adulta.
Findo o jantar, os integrantes do Kimen tomaram emprestado tambores, chocalhos e outros instrumentos do grupo paulista para executar alguns ritmos pertencentes à cultura do povo mapuche. Assim como faz no espetáculo “Galvarino”, apresentado na Mostra, a chilena Elsa Quinchaleo entoou canções comuns a esses povos. Também puxou uma dança e foi seguida por nós.
A partir daí, as trocas se tornaram rítmicas e corporais. Não faltaram também as manifestações brasileiras, como o boi do Maranhão, o caboclinho, o coco e o samba. Modos de aproximação condizentes ao ofício que entrelaçava os participantes. Produções de sentido que não se descolam da produção de presença.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.