por Luciana Romagnolli*
“A Casa” |
Uma das indagações que se faz a Cia. Pangéia na sinopse de “A Casa” é se intimidade gera teatro. A constatação que se desprende do próprio corpo do espetáculo é de que não há resposta absoluta. A autoficção e a criação coletiva com base em depoimentos pessoais são estratégias recorrentes no teatro contemporâneo, relacionadas a um busca por autoria e construção da subjetividade. Dependem da elaboração dada a esse material privado para que ele reverbere universalmente. Além disso, a exposição pública da intimidade é uma questão fremente numa sociedade atraída por reality shows e redes sociais.
No caso do grupo carioca, a intimidade dos quatro atores é tomada como ingrediente-base para uma encenação de estrutura documental, que se apresenta como um debate sobre a família, perfurado por momentos de fantasia. Eles agem usando os próprios nomes, nessa zona imprecisa entre o indivíduo e o personagem de si mesmo. O efeito cênico desses procedimentos é que ora esse grupo de atuantes estabelece um jogo teatral que mobiliza a atenção do público, desperta associações com suas memórias e histórias pessoais e, por vezes, o comove; ora não oferece mais do que um desabafo privado que não causa maior interesse e o palco se reduz a um espaço de exposição de egos.
Não é óbvia a distinção entre o que desencadeia um efeito ou o outro. Os vídeos caseiros e de intervalos comerciais tendem a provocar um esvaziamento da atenção. Porém, quando a atriz Gabriela Carneiro da Cunha reproduz ao vivo, com igual fantasia de odalisca, a canção cantada em uma gravação da infância, sua presença real e virtual simultâneas e a sobreposição de tempos impossíveis de se reconciliar criam um momento de fulgor. Embora dentre as muitas citações lembradas pelo ator Daniel Kristensen ao longo do espetáculo não haja nenhuma a Marcel Proust, sua busca por um tempo perdido bordeja a dramaturgia.
Entretanto, parece que ao grupo o interesse do que se diz não é o mais importante. A certa altura, conclama espectadores a contarem algo de sua história familiar, frisando que “não precisa ser interessante”. O ato de dizer, então, está alçado a protagonista, seguido pelo ouvir. A necessidade de se expressar e de compartilhar a intimidade surge como tema latente num trabalho que assume a indefinição do que é de interesse teatral e não se furta a experimentar (e causar) o desinteresse.
As fragilidades que se poderia apontar no espetáculo, então, se revelam ao mesmo tempo estruturais, determinantes na sua forma e, em consequência, no conteúdo . É também o caso do roteiro que a atriz Izadora Mosso Schettert teima em seguir, a despeito de ficar claro para o público que sua reação irritada à rebeldia dos outros três atores não passa de representação previamente marcada. No meio de atuações que seguem um registro documental e com uma margem de improviso, essa insistência no “teatrinho” do atrito entre eles, calculada para instaurar em cena picuinhas do tipo que se tem em relações familiares, não convence. Contudo, a necessidade reiterada de se seguir um roteiro para a encenação reflete o ideário de que para a vida haveria também um roteiro padrão, no qual a constituição de uma família é um capítulo fundamental.
A falência da instituição familiar está o centro do debate, cujo quarto elemento é o ator Gabriel Salbert. Cabe a ele fazer com que o tema contamine mais uma vez a forma, provocando uma crise da representação ao opor-se à composição documental do espetáculo, preferindo a encenação do drama de um pai ausente. A uma dramaturgia que absorve os desejos contraditórios dos integrantes, preferindo múltiplos estímulos à coesão, sobrepõe-se uma direção que praticamente desaparece em cena, pelo fluxo aparentemente solto das ações e seu tempo distendido – distinto do ritmo acelerado que se habituou a ver em espetáculo fundados na fragmentação e na profusão de referências. Aí reside certa ironia: o grupo empilha citações, mas mais promete referências do que de fato as concede.
Em meio a esse acontecimento teatral contaminado pela crise em suas estruturas representativas, o que pouco avança – nem no discurso nem na cena – é o questionamento sobre os modos de ser e não ser da família na sociedade contemporânea. Detém-se na ausência do pai e no destronamento de seu posto de domínio na hierarquia familiar, desde que não é mais o único provedor. Esta é a constatação mais evidente. A partir dela, há um longo caminho para se pensar como ela reconfigura ou desfigura a noção de lar e como os outros integrantes das relações familiares – mães, filhas e filhos – são agentes ativos dessa reinvenção.
*Crítica originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente em setembro de 2012.
*Crítica originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente em setembro de 2012.