por Luciana Eastwood Romagnolli
A luz azul intensa recobrindo o palco não permite ver nada mais, até que aos poucos desvela um homem. José. Síntese de todos os homens em todos os tempos e territórios, o personagem se apresenta ao público em sua materialidade corpórea. Diz algumas palavras de identificação e então narra o próprio silêncio preenchido pelo olhar. Com ele, o público silencia e olha. O efeito de sua presença põe-se em embate com os sentidos plurais que apregoa em sua fala, alusiva a Homero e a mitos fundadores da civilização que desembocaria, milênios adiante, no homem contemporâneo. Entre a presença e o sentido, o ontem e o hoje, o lá e o aqui, é este homem – e o falso paradoxo entre suas andanças e a imobilidade instaurada em cena –, o vértice do solo As Tramoias de José na Cidade Labiríntica, da curitibana Obragem Teatro e Cia.
A imobilidade, contudo, se dá apenas no sentido de um deslocamento espacial mínimo, daquilo que não sai do lugar, por mais que se mova – através dos continentes e dos séculos. Eduardo Giacomini, o ator, ora encoberto, ora revelado pela luz, se desequilibra sobre uma plataforma de metal instável, um quadrado de dimensões restritas. Ao fundo, pontuais projeções de vídeo tensionam a configuração do espaço, mostrando-o em outras paisagens mais abertas. Por mais longe que ele recue no tempo e no espaço em suas memórias, evocando guerras por Helena de Troia, entre Jacob e o anjo, entre Hamlet e seus pares, porém, a materialidade da cena só lhe permite o aqui e agora que vive e compartilha com os espectadores.
Essa questão fundamental ao teatro, a presença efêmera, é retrabalhada pela companhia de modo a revelar, pela materialidade da vida, algo mais da condição humana. Na fala povoada por imagens do passado, as experiências desse homem arquetípico recorrem a distintos idiomas representantes de uma ínfima parcela da variedade cultural no mundo, se repetem e se acumulam, deixando entrever o imenso peso da história da cultura sobre um homem qualquer. Não mais que um corpo limitado, fragilizado e, sobretudo, mortal. As duas acepções dessa palavra emergem: um corpo capaz de matar e de morrer.
Solidão, violência, guerra e morte operam como constantes atemporais em sua trajetória. São como os caminhos repisados do labirinto do Minotauro, do qual o homem não sai sem o fio de Ariadne – e se morre o amor, morre a esperança de saída. O que se percebe, então, é que antes de forjarem uma suposta evolução civilizatória, as sucessivas gerações humanas estão atadas à repetição das mesmas fraquezas e forças. De forma que uma indagação a respeito de quais as qualidades do homem contemporâneo ecoa a dúvida proferida frases antes sobre por que o mundo se tornaria um lugar melhor aqui e agora, se nunca, até então, o foi.
O texto de Olga Nenevê, diretora da companhia, enfileira frases em fragmentos como se tecesse o fio de Ariadne em busca de um rumo, acumulando vestígios e assumindo incompletudes e descaminhos. Na voz do ator, o eu lírico e o narrativo se estreitam, em uma tomada de consciência. Seu fluxo discursivo, contudo, se abala pela instabilidade do chão onde pisa, e ele reinaugura estranhamentos a cada hesitação perante palavras violentas, de tal forma assimiladas ao vocabulário cotidiano, que se perdeu o espanto diante delas.
Tanto o corpo restrito pelo cenário quanto sua fala fragmentada, que dá saltos temporais e espaciais trazendo consigo um vasto repertório cultural sem nunca fechar os sentidos do que diz, fazem pensar sobre o quanto esse homem contemporâneo, presente, que é todos e é só, é também o mesmo desde sempre. Por mais que o renomeiem, reformulem, ressignifiquem.
O sentido e a presença, portanto, concorrem em cena, em paralelo. Talvez, extrapolando o entendimento de dramaturgia como a estruturação dos sentidos de um espetáculo, conforme a define Ana Pais, possa-se pensar em uma dramaturgia da presença. Seria aquela que comporta o que se estrutura aquém e além dos sentidos, para afetar o espectador pela materialidade e pela aparência: a luz densa, o corpo construído e os ruídos do metal teriam esse efeito de presença em As Tramoias de José na Cidade Labiríntica. Esses elementos, é claro, podem também ser lidos e interpretados por quem neles busca sentido – até porque, como diz Hans-Ulrich Gumbrecht, o sentido nunca desaparece completamente, nem a presença, não os há “puros”, por mais que um predomine sobre o outro em dado momento. Mas, independente do que possam significar, são elementos que, naquele instante específico de contato, afetam o estado do público e interferem na sua experiência de expectação.
Na trajetória da Obragem, marcada pela investigação de diálogos possíveis entre as artes visuais, do corpo e da palavra, o solo de Eduardo Giacomini surge como síntese madura das inquietações anteriores e propulsor de novos trilhos. Há, de parte do ator, a intenção manifesta de mantê-lo ativo em seu repertório por décadas, envelhecendo com ele. Se assim for, o trabalho há de sofrer um acúmulo de tempo e experiência análogo ao que problematiza.
Crítica do espetáculo “As Tramoias de José na Cidade Labiríntica”, da Obragem Teatro e Cia, publicada originalmente na revista eletrônica Questão de Crítica.
Visto em 02 de setembro de 2012, em Curitiba.