por Luciana Romagnolli*
“Ifigênia”. Foto de João Falcão. No Teatro Municipal de Presidente Prudente, infelizmente, não havia toda essa amplitude de espaço. Mas o espetáculo vive bem mais compactado. |
A tragédia grega não se ampara na culpa, mas sobre uma contradição inconciliável, que coloca homens e deuses como adversários. Constatada a vulnerabilidade humana perante a vontade divina, o indivíduo é conduzido ao aniquilamento – com o qual geralmente contribui por meio de um erro que precipite sua desgraça. Tal jogo de forças entre céus e terra move os eventos de “Ifigênia”, espetáculo da companhia Elevador de Teatro Panorâmico que adapta “Ifigênia em Áulis”, a última peça de Eurípedes, escrita no século V a.C.
Filha de Agamêmnon, a jovem que batiza a peça é condenada ao sacrifício a pedido da deusa Ártemis e sua morte se efetivará por artimanha do próprio pai. Se não verterem o sangue de Ifigênia, os gregos não terão chance na guerra contra Troia. Só a imolação da virgem devolverá os ventos capazes de soprarem as velas das embarcações rumo ao território inimigo. Sem a obediência à deusa, a guerra, o tempo, a vida ficam em suspensão. O destino, traçado num plano superior, impera, nesta obra de Eurípedes, como uma fatalidade sobre os homens.
Contudo, a companhia paulista opera uma síntese no texto original que evidencia outro aspecto do embate, travado totalmente no plano humano: a tensão entre o sentido de coletivo e a individualidade. A necessidade do povo se confronta ao desejo de justiça do eu solitário e o sobrepõe.
Para tanto, o dramaturgo Cássio Pires recorta as ações determinantes da obra original, abreviando o conflito, e reveste-as com refrãos poéticos reveladores desse embate. Como a metáfora repetida de que, somente juntas, as ondas formam o mar. Ecoando ao longo do espetáculo nas vozes dos atores e em elementos cenográficos que remetem à praia, essas frases-sínteses ampliam e reforçam as implicações da contradição vista em cena.
Como método de trabalho, o diretor Marcelo Lazaratto propôs que esse texto fixo fosse aprendido pelos nove atores sem distinção de papéis, de modo que pudessem improvisar a cada encontro com o público. A cena, em si, não muda tanto. O que importa é o efeito de indiferenciação entre os indivíduos produzido por essa alternância. Além de exigir uma atenção diferida para reagir às ações dos outros atores e dos músicos sem que a encenação se perca, essa configuração do elenco reforça a predominância do coletivo sobre o indivíduo. O coro eleva-se à força primordial em cena, o protagonista de partituras corporais simbólicas e sensíveis e de imagens potentes.
É desse coro adensado que se descolam, ocasionalmente, os personagens individualizados, em um movimento pendular de pertencimento e diferenciação em relação à natureza e ao todo. Porém, uma vez que esses personagens são intercambiáveis entre os atores e logo se dissolvem novamente na formação coletiva, fica exposta a fragilidade do indivíduo e, sobretudo, sua dependência. A identidade perde importância diante da perpetuação da sociedade. Faz-se, assim, uma leitura política do sentido de comunhão coletiva presente na tragédia e, a princípio, ausente no mundo contemporâneo.
De volta ao embate entre homens e deuses, é notável ainda como a predição do destino se manifesta no tempo do discurso do coro, quando o ato de um personagem é narrado num futuro imperativo (algo como “Agamêmnon deverá se ajoelhar”), impondo-se ao presente da ação sem escapatória, como um agouro da inevitabilidade da tragédia.
Nas metáforas visuais que compõem o espaço cênico, tal fatalismo também se faz mostrar. A imagem inicial de uma concha sobre a qual se projeta um olho já instaura em cena a figura do oráculo, para mais adiante se transformar no ralo pelo qual escorre o sangue de Ifigênia. São duas imagens de algum modo interligadas por uma ideia de fio do destino, que se materializa, definitivamente, nos teares e tapetes da cenografia.
Toda a síntese praticada pelo grupo, atento tanto à poesia das palavras de Eurípedes, ampliada por metáforas visuais, quanto ao seu impacto político, direcionado a uma discussão sobre o homem em sociedade, constrói um espetáculo capaz de purgar pela emoção, como era a tragédia grega, mas também reavivado segundo uma lógica e uma linguagem contemporâneas.
*Crítica originalmente publicada no site do Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, em setembro de 2012.