— por Daniel Toledo —
Crítica do espetáculo “Ledores no Breu”, da Cia. do Tijolo (SP).
Há quem saiba ler as palavras, mas não o mundo. Há quem saiba ler o mundo, mas não as palavras. É sobre premissas como essas que se constitui o espetáculo “Ledores no Breu”, realizado pela Cia. do Tijolo a partir de materiais tão diversos quanto a prática pedagógica do educador Paulo Freire e a produção poética do alfaiate Zé da Luz. Conduzida pelo ator pernambucano Dinho Lima Flor sob a direção de Rodrigo Mercadante, a montagem chama atenção às contradições que permeiam a noção de analfabetismo, ampliando seus significados e atribuindo-lhe uma complexidade que muitas vezes nos escapa.
A partir de uma dramaturgia que combina música, poesia, diálogos diretos com o público e uma sucessão de poéticas narrativas guiadas por personagens em processo de alfabetização, temos acesso a um universo em que os sentidos não são dados de antemão, mas construídos em cena, não raro por meio de exercícios pedagógicos ali convertidos em instantes performáticos que convocam a participação do espectador.
Habitado por cadeiras escolares, grandes rolos de papel em branco e alguns pedaços de carvão, o palco remete a uma improvisada sala de aula, revelando, decerto, uma escala mais adequada a adultos que a crianças. Aos poucos, entretanto, essa sala de aula se expande em direção ao público, e nos imbricamos, de fato, em exercícios de leitura, escrita e aprendizado, a exemplo das turmas conduzidas por Paulo Freire e das numerosas escolas para jovens e adultos que, mesmo na surdina e sem grandes incentivos, já há algum tempo vêm transformando a paisagem social brasileira. Segundo dados de 2014, no entanto, ainda passa de 13 milhões o numero de analfabetos no país.
Nina, Paraíba e Brasil são algumas das palavras que, da plateia, reaprendemos a ler e interpretar. Aprendemos também que, se não há caderno, a terra e o corpo podem servir como superfície de escrita. E para além das letras e sílabas que já conhecemos, as palavras ganham, em “Ledores no Breu”, significados profundos que remontam a experiências e histórias em que aspectos pessoais e sociais frequentemente se imbricam. Por meio de narrativas que tocam em temas caros à realidade brasileira, tais quais o machismo, a reforma agrária, o êxodo rural e a grave desigualdade social – e educacional – que nos acompanha desde sempre, a montagem nos convida a percorrer um caminho político e poético em direção aos múltiplos sentidos das palavras.
Tratadas, ali, como possíveis instrumentos de poder e emancipação, as palavras, sejam escritas ou faladas, ganham ainda outros significados. É por meio delas, afinal, que se constroem memórias, expurgos e confissões. Também apoiam-se nas palavras as falsas promessas, os legítimos protestos e uma série de mecanismos de distinção social dos quais somos, recorrentemente, vítimas e algozes. E quando as palavras correspondem a meros enigmas, tais como as pinturas rupestres aos olhos de boa parte de nós, o não saber é defendido como campo de abertura para a criatividade e a invenção de sentidos, por vezes mais pertinentes e certeiros do que os encontrados no dicionário.
Aprendemos, ainda, que não somente as palavras nos desafiam à leitura, mas também o céu, as cidades, as linhas das mãos e a própria realidade social. Superando em muito o sentido mais óbvio do analfabetismo, que se refere à incapacidade de ler e escrever palavras, o trabalho nos convoca a pensar sobre outros analfabetismos dos nossos tempos, decerto tão ou mais graves que o primeiro, relacionados, por exemplo, aos campos ético, estético, político e afetivo.
Definido pelo próprio intérprete como um espetáculo para “cutucar a pátria”, “Ledores no Breu” convida o público a retornar à sala de aula e visitar os próprios analfabetismos, afirmando, em certo sentido, a impossibilidade contemporânea do drama burguês e de qualquer obra teatral que disponha o espectador ante uma cena da qual tenha a impressão de não fazer parte. Estamos todos no escuro, afinal, e cabe a cada um de nós encontrar luzes que possam indicar um novo caminho para a sociedade que, a cada dia, construímos juntos.
(Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Críticos para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.)