* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/
Crítica do espetáculo ƎX-Magination, visto no dia 03 de maio de 2024 no Terreiro de Candomblé Ilê Wopo Olojukan, em Belo Horizonte.
Por Guilherme Diniz
Transportemo-nos para a década de 1960. Os Estados Unidos e a União Soviética disputam acirradamente a hegemonia do mundo, cada qual esforçando-se para imprimir a sua influência em distintas partes do globo. Na Guerra Fria, opunham-se projetos socioeconômicos que estavam a apresentar saídas antagônicas para alguns dos mais graves dilemas históricos que, há muito, assolam a vida social. Além disso, testemunhamos, fascinados e tensos, o auge da corrida espacial. As duas superpotências almejavam não apenas a Terra, mas também os insondáveis recantos do espaço sideral. Os dois lados da contenda aprimoravam suas pesquisas, lutavam para superar um ao outro, desenvolviam incessantes experimentos, buscando demonstrar seus respectivos poderios tecnológicos. Pisar na Lua, por exemplo, se converteu em um gesto científico e político que visava, em última instância, superar os limites da humanidade.
Pouca gente sabe, mas a Zâmbia também teve o seu programa espacial. Em 1964, Edward Makuka Nkoloso, um determinado professor de ciências, desejou levar uma dúzia de jovens de seu país para Marte[1]. O visionário homem chegou a fundar uma Academia Nacional de Ciências, Pesquisa Espacial e Filosofia, cujo objetivo maior era formar os afronautas, como ele mesmo denominou a equipe zambiana que ganharia o cosmos. “Eu vejo a Zâmbia do futuro, como uma Zâmbia da era espacial mais avançada que a Rússia ou os Estados Unidos da América”, disse, destemidamente, o líder da expedição astronômica[2]. Edward Makuka angariou incredulidade, zombarias e fortes ataques da comunidade internacional. Poderia um pobre país africano, recém-independente do colonialismo britânico, lançar-se a empreitada tão – supostamente – acima de suas condições estruturais e econômicas?
Não precisaremos cruzar o Atlântico e nem recuarmos tanto no tempo se, porventura, acharmos que a Zâmbia da segunda metade do século XX está muito distante de nós. Aqui mesmo na região da Grande BH, um jovem negro, popularmente conhecido como Deivinho, aspira a ser astrofísico para, consequentemente, integrar um projeto que irá explorar o território marciano. A realidade áspera, os incalculáveis entraves sociais e as sombrias estatísticas não demolem suas metas. O coração do menino bate na altura das estrelas.
O intrépido pesquisador africano e o cativante personagem do filme Marte Um (2022) compartilham algo valioso: a obstinada capacidade de sonhar. Nesta sociedade regida por numerosas formas de desencanto, violência e opressão, as respectivas imaginações de Edward e Deivinho produzem o espanto, conclamam a imprevisibilidade, fintam os determinismos, mirando nas múltiplas probabilidades. O horizonte vislumbrado é o das chances que fluem abertamente. Nos dois casos, a ousadia se mescla à imaginação, a ficção transpassa a ciência e o resultado é, de fato, a possibilidade de inventar uma liberdade irrefreável para, enfim, disputar criativamente o impossível. Por que foi considerada tão absurda a entrada da Zâmbia na corrida espacial? Por que para muitos é tão surpreendente o fato de um humilde garoto negro desejar ser um renomado cientista? De todo modo, nossos dois sonhadores, muito mais que entusiastas da tecnologia e do saber, olham, com firmeza e doçura, para o amanhã. O porvir é um lugar que ambos querem habitar.
Fotos de Mayara Laila
ƎX-Magination é feito da mesma matéria cósmica que anima seres como tantos Deivinhos, tantos Edwards. O fito do espetáculo, protagonizado por Michelle Sá, é provocar nosso imaginário histórico e social, instigando-nos a fabular outros universos possíveis, não arquitetados pelas estruturas racistas, conservadoras e sanguinolentas do nosso panorama atual. Neste contexto, o ato de imaginar aglutina dimensões poéticas e políticas, pois enfrenta fatalismos que intentam capturar nosso potencial de forjar imagens imprevistas, disruptivas, desafiadoras de uma ordem social hegemônica. O manancial imaginativo da peça é nutrido pela trajetória e pelos afetos de mulheres negras que caminham na contramão das heteronormatividades, e, nesse sentido, apontam para modos outros de conceber o mundo, suas relações e seus prazeres.
Assistimos à agridoce saga de ƎX, uma simpática alienígena que, ao fugir de seu longínquo planeta, sugestivamente denominado LSP-44, aterrissa, por azar ou por sorte, em Belo Horizonte. A protagonista advém de uma realidade devastadora e enferma, na qual a ganância, a truculência e o autoritarismo apequenam a imaginação de seus habitantes, produzem o esquecimento e insistem em padronizar as incontáveis formas de existir e de amar. Curiosamente, no contato inicial com a Terra, a heroína descobre uma possibilidade de vida mais saudável e aconchegante. Na peça, o nosso mundo é um eldorado. Nada parecido com este vale de lágrimas apinhado de dores, desigualdades e repressões de toda sorte. Parece que nem houve entre nós colonizações nem escravizações; genocídios e nem hecatombes. Inexistem ideologias baseadas nas noções de raça, gênero ou propriedade privada. Ao contrário, estas são as chagas enfrentadas pelas criaturas de LSP-44. Diante disso, a missão principal de ƎX não é exatamente retornar para a sua galáxia, mas restabelecer a sua capacidade de imaginar e de tecer memórias; faculdade esta que fora amordaçada pelas condições opressoras de seu planeta natal. Logo, a grande viagem da protagonista não é tanto externa, mas interna. O mergulho mais profundo será para dentro de si, refazendo recordações, escavando histórias, redescobrindo desejos e fabulações. Neste processo ela irá reconstruir sua própria narrativa.
ƎX-Magination assumidamente bebe nas fontes do afrofuturismo a partir, sobretudo, da obra literária da autora americana Octavia Butler (1947-2006). Seria impraticável resumir em poucas linhas este multifacetado conceito que, desde o início dos anos 90, época de seu advento, vem ganhando diferentes acepções, reformulações e ressignificações por parte de inumeráveis intelectuais e artistas, como Alondra Nelson, Sun Ra, Anna Everett, Tiffany Barber, Kênia Freitas, Ale Santos, Fábio Kabral, entre muitos outros nomes[3]. Sinteticamente, podemos encarar o afrofuturismo tanto como um movimento estético, quanto como uma linha de pensamento político-filosófico que conjuga denso debate racial e ficção especulativa para imaginar universos alternativos a partir das experiências sócio-históricas das pessoas negras. Como um povo, cujo passado é constantemente agredido e negado, concebe imagens do futuro? Como reelaborar a história, desarticulando arquivos, paisagens e narrativas coloniais? Como poeticamente produzir contra-memórias, dilacerando os mecanismos de esquecimento e de apagamento das tradições e invenções negras? Estas e outras interrogações são fomentadas por um sem-número de criações que implodem uma noção branca (e por isso excludente) de ficção científica e ao mesmo tempo pensam, com base nas vivências diaspóricas, as dimensões temporais para além da cronologia linear e unívoca, explorando justaposições e imbricamentos entre passado, presente e futuro. Por fim, os emaranhamentos entre arte, ciência e tecnologia, em uma perspectiva de inovação, estão na base do afrofuturismo, segundo a multiartista e pesquisadora Zaika dos Santos, uma das mais destacadas vozes deste movimento.
Outras duas considerações teóricas nos serão úteis para analisarmos os contornos ficcionais de ƎX-Magination. Em primeiro lugar, de acordo com o pesquisador e artista Kodwo Eshun, várias obras afrofuturistas se valem de motivos e de seres extraterrestres para refletir sobre a complexa experiência da diáspora negra, constituída também (mas não só) por deslocamentos forçados e por um angustiante sentimento de alienação e estranhamento sociocultural. Por este prisma, os tráficos transoceânicos e a escravização são vistos como como uma espécie de abdução alienígena, que não apenas atirou milhões de seres humanos em territórios adversos, obrigando-os a viver em áreas de imparável odiosidade racial, mas também visou, neste mesmo ato, desumanizá-los. “A existência negra e a ficção científica são uma única e mesma coisa”, diz-nos Eshun. No espetáculo, a travessia espacial de ƎX de fato evoca os históricos trânsitos atlânticos. Além disso, não deixa de questionar, direta e indiretamente, as muitas artimanhas do racismo, cujos efeitos psíquicos impõem, em pessoas negras, uma forte sensação de não-pertencimento, como se estivessem exiladas constantemente, forasteiras em uma Terra Estranha, conforme nos relembra James Baldwin[4].
Em segundo lugar, já vimos que na fábula de ƎX-Magination o planeta Terra é um lugar onde as pessoas são plenamente livres para viver e amar sem quaisquer constrangimentos, as relações sociais e interpessoais não são estruturadas por hierarquias, dominações ou abusos. Paira a mais benfazeja harmonia. A professora e poeta Walidah Imarisha cunhou um nome para isso: ficção visionária. Para ela, o termo abarca obras empenhadas em inventar sociedades verdadeiramente equânimes, libertadas dos jugos racistas, misóginos, capitalistas e normativos, desobedecendo, pois assim, os imperativos de um realismo aprisionador. “Nós frequentemente esquecemos de vislumbrar aquilo que pode vir a ser. Esquecemos de escavar o passado em busca de soluções que nos mostrem como podemos existir de outras formas no futuro. Por isso acredito que nossos movimentos por justiça precisam desesperadamente da ficção científica”[5], conta-nos Imarisha. O maior trunfo da ficção visionária, cremos, é, a um só tempo, lembrar-nos de que o estágio atual do mundo não é o fim da história e enfatizar que o exercício radical de imaginação é capaz de propor alternativas, possibilidades e fugas que, na arte e na política, reivindicam a experimentação. Este ponto, entretanto, não está tão bem desenvolvido no entrecho do espetáculo. Somos apenas informados de que os terráqueos resolveram suas seculares pendências e o paraíso se fez carne. Fim. Mas como tudo isso aconteceu? Quais pactos, estratégias e táticas foram desenvolvidos para superar os impasses? Tudo está realmente perfeito ou surgiram dilemas novos e inesperados? Ora, a arte se interessa especialmente pelos meios, pelos caminhos, pelos processos. Dar-nos apenas a imagem de um universo já pronto e idílico, isento de contradições, não é lá muito complexo.
O elemento mais contundente da dramaturgia, assinada por Nívea Sabino e pela própria Michelle Sá, é, sem dúvida, a criação de ƎX, esta alienígena tão vivaz, tão expansiva, tão irrequieta. Estamos perante uma personagem que almeja, principalmente, reencontrar-se, destravando as comportas da fantasia para existir na sua plenitude, na sua singularidade. O espetáculo, nesse sentido, arma uma série de situações em que vemos a heroína percorrer distintos estados: da explosiva alegria para a sombria tristeza, do medo diante do desconhecido para uma surpreendente paquera. Mas a performance de Michelle acentua, sobretudo, o tom irônico e matreiro da personagem, a sua faceta hilariante capaz de arrancar saborosas gargalhadas por meio de gracejos atrevidos, ambiguidades sutis e escrachadas, olhadelas que não disfarçam uma certa meninice quase ingênua, um ar peralta que nos diverte imensamente. Quem poderia negar a existência de um jogo levemente clownesco entre a extraterrestre e a Localizadora, a sua fiel companheira? Em suma, a atriz delineia uma atuação brincante. Vemos, por exemplo, esta característica, digamos, lúdica, no modo com ƎX testa no corpo as reminiscências recuperadas, os saberes reaprendidos; ora ela se arrisca no passinho, ora experimenta o gingado da capoeira. Para nós, o espetáculo certamente brilha mais quando submerge na irreverência.
Apesar disso, a dramaturgia também possui suas inconsistências, nem sempre equilibrando bem os pratos da balança. Isso fica evidente na cena em que ƎX interage com uma espectadora, representando um quiz cultural. A passagem é cômica, dá margens para Michelle improvisar agilmente e presta-se a reverenciar a trajetória de importantes mulheres negras lésbicas em diferentes áreas profissionais. Porém, neste e em outros trechos a construção da narrativa intergaláctica é praticamente abandonada. O enredo contenta-se em dizer que o planeta de origem da protagonista está dominado pelo lucro, pela brutalidade e por muitos instrumentos de opressão. A dramaturgia chega a mencionar distintos povos que existem em LSP-44, como os Verdialins e os Moedinos. Mas não há muitos detalhamentos. A possibilidade mesma de imaginarmos, de maneira bem ousada, uma outra galáxia, habitada por criaturas insólitas, impensáveis, num ambiente também ele desconhecido e misterioso, é pouco explorado dramaturgicamente. No aspecto narrativo, o afrofuturismo da peça é um tanto minguado.
O ponto mais alto do espetáculo, ou o seu zênite, para usarmos um jargão da astronomia, está na sua concepção espacial. É preciso dizer que desde a sua estreia, em 2022, ƎX-Magination vem se apresentando majoritariamente em terreiros de candomblé, quilombos, sambas, entre outros espaços fundamentais da cultura e da memória pretas de Belo Horizonte. Esta escolha artística e política é extremamente significativa. Antes de mais nada, vemos aqui como as teatralidades negras podem reconfigurar, discutir e ampliar a geografia da cidade, problematizando as relações de força contidas nas noções de centro e periferia. O que é um lugar longe? Longe para quem? Longe a partir de qual referência? A peça estimula-nos a pensar nos desenhos físicos e simbólicos da urbe, suas marcas, afetos e dinâmicas. Os teatros, de um modo geral, têm essa possibilidade de nos fazer remodelar (ou ao menos indagar) nossas relações com a cidade. ƎX-Magination vai fundo nisso.
Aliás, no início do século passado, W. E.B. Du Bois, um dos mais relevantes pensadores negros dos Estados Unidos, chegou mesmo a dizer, em um ensaio seminal, que um teatro negro seria aquele realizado por nós, para nós, sobre nós e perto de nós. Ainda que o teor algo categórico da sua reflexão não nos interesse muito, o último ponto é deveras instigante, pois Du Bois não nos deixa esquecer, para começo de conversa, como o racismo atua na organização do espaço público, estabelecendo distâncias e proximidades, atravancando as possibilidades de ir, vir e viver a cidade. Como os teatros negros lidam com isso? Ao dizer, perto de nós, o intelectual considera a maneira pelo qual a territorialidade afeta, matiza e atravessa os modos criativos, logísticos e econômicos, bem como a constituição dos públicos. Recordo-me vivamente de que esta dimensão geográfica foi um debate crucial no Fórum Taculas – Performance de Mulheres Negras, realizado em maio de 2019, no Bairro Glória e em Justinópolis, ou seja, localidades periféricas da capital mineira. O Teatro Negro e Atitude, há muito, desenvolve uma série de atividades artísticas e formativas em Venda Nova, nas quebradas, não apenas nos centros. Ou a segundaPRETA, que embora aconteça no Teatro Espanca!, baixo centro de BH, assume a política de conceder meia-entrada para espectadores que moram fora dos limites da Avenida do Contorno. Poderíamos citar outros exemplos, mas por ora importa mesmo destacar como criadores, movimentos e coletivos negros, no âmbito das artes cênicas, encaram criticamente os processos de racialização inscritos no desenho das cidades. A geografia é uma arena de batalha.
Quiseram os astros que eu assistisse a esta peça somente agora em 2024, mais precisamente na última apresentação de sua (até então) derradeira temporada. Antes tarde do que mais tarde. Na ocasião, a espaçonave de ƎX-Magination pousara no Ilê Wopo Olojukan, considerado o primeiro terreiro de candomblé de Belo Horizonte. A encenação não oculta, antes incorpora, a materialidade do espaço. Estão lá os atabaques, um vasto quadro com a imagem de Oxóssi, retratos daqueles e daquelas que já lideraram a Casa, etc. A cenografia almeja estabelecer um diálogo com a especificidade do terreiro, tomando seus traços e objetos sagrados como elementos que não apenas transformam certos desenhos de cena, certos contornos dramatúrgicos, mas propõem camadas de sentido a partir da própria história do lugar. O que nos parece mais interessante é o modo pelo qual o espetáculo compreende o terreiro (e outros território pretos) como construções tecnológicas, no sentido mais amplo do termo. Ora, basta ler, por exemplo, Muniz Sodré ou Mãe Stella de Oxóssi para entender como a formação dos terreiros foram (e continuam a ser) tecnologias de preservação dos saberes, filosofias e princípios ancestrais; manutenção de laços afetivos no seio de um povo sistematicamente perseguido; invenção performática de danças, musicalidades, simbologias que reatualizam memórias no corpo; e, enfim, um modo de ocupar e disputar a cidade. Isso é tecnologia preta. Aí o pensamento afrofuturista de ƎX-Magination é realmente forte.
A iluminação, de Veec Santos, o figurino, de Anderson Ferreira e a trilha sonora de Manu Ranilla contribuem, em boa medida, para instaurar uma paisagem fantasista, situando-nos em uma atmosfera estelar, astral. Michelle Sá está muito bem caracterizada como uma alienígena cheia de gingado. Há um rico detalhamento, seja no cuidadoso visagismo, seja no delineamento das tranças. Em geral, a visualidade de ƎX-Magination salta aos olhos. Entretanto há momentos em que o espetáculo se deixa levar demasiadamente pelas imagens, pelos dispositivos high tech e por um futurismo tecnológico, expresso nos bips, nos apetrechos e nos recursos ultramodernos. A visível empolgação com tudo isso e o uso recorrente dessa estratégia deixam, às vezes, o enredo à deriva, em segundo plano, fazendo com que a narrativa interplanetária se transforme em mero pano de fundo para a exibição dos efeitos sonoros e visuais. Ora, as esferas cibernéticas, virtuais e digitais constituem uma possibilidade de conceber o afrofuturismo, não o seu fundamento total. Voltamos a dizer que, para nós, a perspectiva afrofuturista, nesta encenação, está mais profunda e consistentemente colocada na concepção espacial, na passagem por tantos territórios pretos da cidade.
Mas também aí há um senão. Pelo menos na sessão a que assistimos, a relação entre a área de jogo e o público era estaticamente frontal. Não sabemos se esta configuração espacial foi a mesma em todos os dias de apresentação, visto que o espetáculo percorreu lugares muito variegados. Esta disposição, similar a do tradicional palco italiano, não radicaliza algo fundamental para a peça: as investigações em torno dos espaços cênicos e urbanos. Apresentar-se em um histórico terreiro, porém mantendo a frontalidade e a divisão entre palco e plateia, expressa uma estranha contradição.
Ao fim e ao cabo, ƎX readquire a capacidade de memoriar e de imaginar. É nesse momento que ela decide voltar para LSP-44, o seu combalido planeta. Após reconstruir-se e questionar as ideias fixas, impostas, é chegada a hora de retornar para a terra natal e operar estas transformações radicais por lá também. Eis a jornada heroica. No fundo, ƎX-Magination nos convida mesmo a sair dos lugares-comuns, a nos deslocarmos, a percorrermos rotas surreais. A viagem, interna e/ou externa, é o próprio sentido.
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ƎX-Magination e as cintilações do afrofuturismo nos teatros negros contemporâneos: brevíssimos comentários
ƎX-Magination é o primeiro solo teatral de Michelle Sá. No ano passado, o espetáculo foi agraciado com o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras, na categoria Performance do Tempo Espiralar. Basta observar, minimamente, o movimento teatral de Belo Horizonte para se deparar com a presença de Michelle, esta encenadora, atriz, docente, pesquisadora envolvida em distintos projetos artístico-políticos da cidade, como a segundaPRETA, o coletivo Mulheres Encenadoras e o FETO – Festival Estudantil de Teatro. Uma nota pessoal: a primeira vez que a vimos em cena foi em 2014, na longínqua e convulsiva peça: Estrela, ou Escombros da Babilônia, dirigida pelo professor Antônio Hildebrando (UFMG). A sua atuação, ao lado de Andreia Rodrigues, Danilo Mata, Rafael Bacelar e Pipe Nascimento foram aquelas que mais me fascinaram, pois continham uma explosiva combinação de visceralidade e bravura[6]. Tudo isso para reafirmar que ƎX-Magination não é um trabalho que nasce no vazio. Ele é também a culminação de anos de labor, amadurecimento, investigação e esforços de uma artista que vem contribuindo firmemente para o nosso cenário teatral.
Em 2023, Michelle defendeu a sua dissertação: Teatro afrofuturista: uma possibilidade de Teatro Negro. Ainda não tivemos a oportunidade de ler tal escrito, mas já é possível avistar aqui o afrofuturismo como um campo de experimentação poética e reflexiva que expande os modos criativos das teatralidades negras. Tal reflexão realmente parece se espraiar cada vez mais. A crítica cultural Aza Njeri, em artigo escrito há quatro anos, ansiava que as artes cênicas afro-brasileiras absorvessem o afrofuturismo em suas criações[7]. A artista e jornalista Nairim Bernardo, realizou, na USP, uma fértil pesquisa de iniciação científica, intitulada Trajes de Cena Afrofuturistas nas Artes Cênicas Brasileiras Contemporâneas[8], sob a orientação do Prof. Dr. Fausto Viana.
Inviável traçar aqui a genealogia de uma constelação que paulatinamente se expande, porém são constatáveis as manifestações crescentes do afrofuturismo nas cenas negras ao longo dos últimos anos. Espetáculos como Ícaro and the Black Stars, estrelado por Ícaro Silva; Oxum e Pele Negra, Máscaras Brancas, ambos encenados por Onisajé; Pretoperitamar — O Caminho que Vai Dar Aqui, com direção de Grace Passô; Pequeno Herói Preto, protagonizado por Junior Dantas; Quem Matou Zumbi, peça-filme de Brunno Rodrigues; Itan e Tal, do Grupo Baquetá; ; A Saga de Dandara e Bizum a caminho de Wakanda , da Confraria do Impossível; o solo de Samara Rocha, Iyá Ilu, são de uma forma ou de outra, atravessados por referenciais imagéticos, sonoros ou fílmicos do afrofuturismo. Belo Horizonte também marca presença nesta seara. Todas as performances do coletivo Black Horizonte, constituído por Gil Amâncio, Gabi Guerra, Leandro Berilo, entre outros, mesclam tecnologia, experimentação multimídia e ancestralidade. Apresentados no Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine-Horto, os trabalhos Nagô, de Zaika dos Santos e mulhernotamil, dirigido por Lira Ribas, incluem elementos afrofuturistas, assim como o espetáculo Estilhace!, de Júnia Bertolino. Até mesmo o recentíssimo Marku –Musical, conduzido por Ricardo Alves Jr e Lira Ribas, expressa, sobretudo nos figurinos, aproximações para com essa estética
Como se vê, o projeto de Michelle Sá está ladeado por parceiras e parceiros valiosos. Entretanto certas questões ainda rondam nossas ideias: como problematizar, poeticamente, uma certa preponderância estadunidense nos modos de conceber o afrofuturismo? De que modo as tradições, saberes, invenções e experiências afro-brasileiras podem oferecer possibilidades para também desenvolvermos um afrofuturismo a partir destes nossos territórios? Como um afrofuturismo, cada vez mais crítico, pode também ampliar as noções de tecnologia preta para além apenas dos equipamentos e dispositivos cibernéticos, eletroeletrônicos, etc?
Independentemente das ressalvas e dos elogios presentes nesta crítica, é forçoso reconhecer algo: ƎX-Magination se insere e fortalece um campo criativo em franco crescimento, apontando caminhos possíveis para ampliar ainda mais as formas, as modalidades, os interesses e os objetivos dos teatros negros. Isso não é qualquer coisa.
FICHA TÉCNICA
Direção criativa y atuaginga: Michelle Sá
Dramaturginga: Nívea Sabino y Michelle Sá (Gingas)
Colaboração cênico-textual, mídias sociais e técnicaginga de som: Júlia Deodora (Ginga)
Direção cênica: Eli Nunes y Michelle Sá
Maquiagem: Eli Nunes
Preparação corporal: Scheylla Bacelar
Preparação vocal: Gil Amâncio y Manu Ranilla
Trilha Sonora: Manu Ranilla y Arruda Hi – Tech
Figurino: Anderson Ferreira
Costureiras: Delzi Pereira y Rosiana Pereira
Cenário: Nilson Alves y Wellington Santos (Baiano)
Criação y operação de luz: Veec Santos
Gestão de projeto y produginga: Luana Costa (Ginga)
Assistente de produção: Laíra Luanda (Ginga)
Arte gráfica: Dayane Tropicaos
Tranças: Lícia Avelar y Tranças Cafuné
Assessoria de imprensa: Josué Gomes e Teresa Cristina Silva
Artista do coração: Felipe Arthur
Intérprete de libras: Jane Silva
Fotografia: Mayara Laila
Gingas participantes da 1ª fase da pesquisa oralitura: Júlia Deodora, Benilda Brito, Eliza Carla, Flávia Tambor, Jamine Miranda, Jozeli Souza, Kelma Zenaide, Larissa Amorim, Marilda Cordeiro y Renata Paz.
[1] https://meiobit.com/411784/afronautas-quando-a-zambia-teve-um-programa-espacial-mais-ambicioso-que-o-nosso/
[2] https://www.lusakatimes.com/2011/01/28/space-program/
[3] A título de exemplo dessa incessante atualização, é lícito mencionarmos as reflexões de Reynaldo Anderson e Charles E. Jones, para quem os coletivos, os programas político-culturais e os artistas negros e negras no presente século já nos brindam com o Afrofuturismo 2.0. Para eles, essa expansão atual do afrofuturismo reponta em um contexto histórico marcado pela emergência das mídias sociais e pelos avanços tecnológicos da última década. O Afrofuturismo 2.0 é, nas palavras dos autores: “a tecnogênesis da identidade negra nos primórdios do século XXI, reflete contra-histórias, hackea e se apropria de softwares de redes, das lógicas por detrás das bases de dados, das análises culturais, das profundas remixabilidades, da neurociência, da fluidez de gênero, das possibilidades pós-humanas, da esfera especulativa com aplicações transdisciplinares, além de ter se espraiado para um importante movimento tecno-cultural ‘pan-africanista’. Este contemporâneo Afrofuturismo 2.0 é caracterizado agora por cinco dimensões, a saber: a metafísica, a estética, as ciências teóricas e aplicadas, as ciências sociais e os espaços programáticos” (tradução minha).
[4] O livro, publicado em 1962, discute as agruras, os espinhos e as incompreensões imiscuídas nas relações raciais nos Estados Unidos, apontando, de modo mordaz, a sensação de isolamento que a sociedade racista, conservadora e preconceituosa produz naquelas pessoas, tidas como desviantes.
[5] Reescrevendo o futuro: usando ficção científica para rever a justiça. O texto completo pode ser lido pelo link https://issuu.com/amilcarpacker/docs/walidah_imarisha_reescrevendo_o_fut
[6] Escrevi uma crítica sobre esta peça. Ela pode ser lida através do link https://www.horizontedacena.com/dialogos-cenicos-a-hora-do-ou-da-estrela/
[7] https://rioencena.com/afrofuturismo-que-o-teatro-negro-brasileiro-incorpore-o-cada-vez-mais-em-seus-fazeres-artisticos/#:~:text=O%20afrofuturismo%20%C3%A9%20um%20movimento,futuro%20honroso%2C%20digno%20e%20pleno.
[8] https://www.eca.usp.br/noticias/cac/o-afrofuturismo-nas-artes-cenicas-brasileiras