– Por Victor Guimarães
No Boteco Crítico de ontem, uma frase de Jonata Vieira, dramaturgo e diretor da cena “Leitura de Portfólio”, ficou ecoando em mim por um bom tempo. Àquela altura, já mais livremente, falávamos dos desafios de se produzir teatro em Belo Horizonte, e de algumas inquietações trazidas pela linguagem dos editais públicos. Jonata falava sobre como esses documentos oficiais, na maioria das vezes, operam por uma espécie de mandato social: para que um projeto artístico seja aprovado, ele precisa argumentar ter uma relevância social inequívoca, e localizá-la sempre no assunto, no tema, no chamado “conteúdo” da obra. E então perguntou, em tom provocativo: “Mas e se eu quiser fazer uma peça sobre uma porta laranja num palco vazio?”. Ao que muitos responderam, resignados: “você não vai passar”.
Essa obsessão pelo assunto socialmente relevante e por uma linguagem que o justifique, que está nos editais, mas também no imaginário coletivo, em parte da crítica, no tecido das obras, já esteve também no Cenas Curtas. Alguns anos atrás, lembro de constatar uma recorrência de cenas baseadas numa palavra declaratória, explicativa, muitas vezes didática. Uma palavra que convidava ao pensamento, mas a um pensamento muitas vezes delimitado pelo que se diz em cada obra. Eram tempos de muitas palavras sufocadas, de muitos discursos há muito silenciados vindo à tona ao mesmo tempo, e era compreensível que o palco se enchesse delas. Mas esse estado de coisas também produzia uma geometria da contenção, em que a forma era uma espécie de envelope para o conteúdo, este que era, no fundo e na superfície, o que verdadeiramente importava. Jonata parecia reivindicar, ontem, uma espécie de direito inalienável ao livre jogo das formas, ao palco vazio e ao objeto colorido, que anda meio fora de moda.
Na primeira cena da noite de ontem, as formas pareciam responder à interpelação. Ainda antes da entrada dos corpos, somos recebidos por um triângulo vazado feito de fita azul no centro do palco, atravessado em um dos lados por um círculo vermelho. Do círculo, o ar expelido por um ventilador sustenta fragilmente um balão vermelho, que flutua frágil no ar, movendo-se como um corpo que a qualquer momento pode escapar pela tangente, mas permanece atado a fios invisíveis. Do teto, pende um outro triângulo cheio, complementar, igualmente azul. Em “A vogal EA Lei”, o que se apresenta para nós não é nenhuma palavra consequente, mas uma composição instigante de formas geométricas, cores e objetos, arranjadas em um equilíbrio instável.
Ao som de uma música eletrônica contínua, seis corpos passam a cruzar velozmente o palco, com figurinos prateados e uma pintura entre vermelho e azul no rosto. Há uma continuidade visual entre o corpo e o cenário, que tende a transformar cada integrante do elenco em forma movente. Esses corpos-formas correm pelo palco e dançam, em atração e repulsão contínua uns aos outros; carregam outros balões vermelhos inflados e os estouram; transformam o triângulo de fita em outras formas, mais intrincadas, com os pés. O equilíbrio instável das formas se desfaz e refaz constantemente. Uma lei gravitacional parece obrigar à geometria sólida e estável, mas os corpos e as formas inquietas – como o balão suspenso que não se deixa deter de todo – a infringem constantemente, para retornar ao abrigo da lei no movimento seguinte. Há uma força centrípeta que atrai para o círculo vermelho no palco, mas há uma outra, centrífuga, que convida ao escape para as bordas. Esse estica-e-puxa entre a inércia e o movimento, o centro e a periferia do palco, um corpo e o outro, é o coração pulsante da cena.
Diante de tantas coisas ditas com todas as letras por todos os lados, aqui só restam as vogais. As vozes entoam a e o e u em tonalidades variadas, intercalando-se constantemente. Gritam, sussurram, suplicam, mas nunca chegam a dizer uma palavra inteira. Nessa ginástica das cores, nessa coreografia geométrica, nesse emaranhado de sons, nessa recusa à lei do conteúdo, há uma reivindicação viva ao direito das formas.
Na segunda cena da noite, o jogo parece querer continuar. Em “Nem mesmo o lenço da minha filha”, com um figurino cinza que tende à neutralidade, Graziele Garbuio inicialmente se move pelo palco esvaziado, tecendo fragmentos de gestos interrompidos que evocam uma narrativa, mas não a ilustram de todo. Alguém que se veste e se prepara para sair; alguém com os músculos atrofiados que se debate em dor; alguém que fica; alguém que vai. São gestos reconhecíveis, mimetismos de ações narrativas, mas nesse primeiro momento, a cena tende ao fragmento solto, à interrupção constante e à cronologia desordenada. Ainda não há personagens, nem situação dramática, nem palavras.
Num segundo momento, a atriz se converte em narradora, e se dirige à plateia para relatar a situação, dizendo à sua maneira os versos do poema “Desaparecimento de Luísa Porto”, de Carlos Drummond de Andrade. O poema, com ares de anúncio de jornal, diz de uma mulher de 37 anos que saiu de casa e não voltou, e agora, três meses depois, é procurada pela mãe doente e solitária. Uma terceira voz roga em nome da mãe, e clama à sociedade que “esqueçam a luta política, / ponham de lado preocupações comerciais, / percam um pouco de tempo indagando”. A procura inadiável de Luísa é o que importa, essa dor individual deve se sobrepor às lutas coletivas, deve rasgar o tecido do cotidiano e se impor sobre os demais assuntos. Na entonação da atriz, a voz varia entre uma dicção propriamente poética, que assume a linguagem estilizada dos versos e se dirige à plateia, e uma imitação das personagens evocadas, sobretudo a mãe, a “entrevada”, que quando aparece no texto, tem uma correspondência gestual imediata no corpo da atriz, que mimetiza os músculos atrofiados da personagem.
Essa vontade mimética, que parece não se contentar com a potência de evocação dos versos, atinge seu ápice no terceiro movimento da cena, quando um novo momento gestual restitui o que, no poema, fica sempre em suspenso: o motivo do desaparecimento de Luísa. Na adaptação do poema, a cena parece não ter dúvidas sobre o paradeiro da personagem evocada. Apanhando acessórios que permaneciam ocultos em uma caixa preta no centro do palco, a atriz inicialmente é Luísa na feira, com a sacola para as frutas. Em seguida, veste-se de paletó e chapéu, e na penumbra do palco encena a perseguição da personagem agora invisível. Os gestos, que de início eram repetitivos, fragmentários e inconclusos, agora têm uma linearidade cronológica, e descrevem a inequívoca violência perpetrada por um vulto masculino.
Há ainda um quarto movimento, que retorna em modo declamatório aos últimos versos do poema: a memória de Luísa criança, a resignação diante da espera. Mas a escolha mais ousada da cena é mesmo a de impor uma interpretação narrativa definitiva aos versos de Drummond. No poema, embora se aventem diversas possibilidades, e a voz que se impregna do desespero da mãe insista que ela não se suicidou, e que não tinha namorado, o que salta aos ouvidos é uma ambiguidade insistente frente ao desaparecimento. Há diversas sugestões, mas, de fato, nunca saberemos se seu destino foi trágico para todos (a morte) ou apenas para a mãe. E se Luísa fugiu, se desapareceu por vontade própria, cansada de ter a vida atada a outra vida? É uma porta que o poema nunca fecha, e que permanece sempre em estado latente. Mas a cena decide fechar essa porta, do mesmo modo que limita as possibilidades dessa mãe na imitação da atrofia de seus movimentos, que parece confiná-la a um lugar de vítima. A geometria aqui parece mais sólida, mais centrípeta, com menos possibilidades de fuga.
Na terceira cena, é a geometria do espaço que se altera com a presença do corpo. No começo de “Cada ponto um carnaval”, uma agitada Camila Gonzalez adentra o teatro pela plateia, imiscuindo-se entre as cadeiras, gritando “Calma!” e soltando palavras aos borbotões. Sua personagem é agitada, ligada no duzentos e vinte, como se diz, e desloca a atenção de todes antes de chegar ao palco. Sua voz e seu jeito são plenos de uma carioquice convulsionada e cheia de humor. Reconhecemos aqui os ecos da Marinete de Cláudia Rodrigues, ou das personagens de Samantha Schmütz nas comédias cariocas das últimas décadas. Ela veste uma calça legging multicolorida, um avental florido sobre a blusa branca, e tem no cabelo acessórios de outras cores vibrantes, além de uma fita métrica de costura para prender o cabelo.
No palco, uma arara com roupas carnavalescas e uma máquina de costura sobre uma cadeira dão o tom da cena. Nilza é uma costureira verborrágica e carismática, que empilha anedotas sobre os muitos carnavais e seus clientes. Ela nos conta de uma fantasia para Adriane Galisteu, e imita seus gestos de quem não sabe sambar, ou, num improviso divertido com a plateia, menciona um collant para Chico Pelúcio, ator do Galpão, e outro para Sabará, chefe de palco do Cine Horto. As histórias breves vão se acumulando na velocidade vocal da atriz, que frequentemente grita “Calma, gente!” ou “Espera!”, como se estivesse aconselhando a si mesma. Sua linguagem corporal é uma espécie de palhaçaria espasmódica, que sempre pode ser interrompida por um passo de dança, ou pela constante manipulação de um paninho inquieto com o qual ela enxuga o suor nas partes mais inesperadas do corpo.
Embora a palavra aqui seja abundante em sua extravagância, o que mais chama a atenção é essa instabilidade do corpo, que a faz interromper a contação de histórias no palco para ir de novo até o espaço da plateia, subir as escadas correndo, deitar no colo de quem quer que seja. O humor galhofeiro e contagiante está também no texto, mas está sobretudo nessa coreografia convulsiva, que perfura as geometrias habituais do corpo da atriz e do espaço do teatro.
Na última cena da noite, a geometria volta a ocupar novamente o palco, quando um homem e uma mulher começam a traçar linhas e formas no chão com uma fita adesiva vermelha. Num extremo, um traçado diagonal conduz a um pequeno quadrado, que será em breve ocupado por um balde cheio de esferas brancas. No outro canto, outra linha conduz a um quadrado maior, apto para um microfone e a presença de um corpo. Atravessando o palco, duas linhas parecem se atrair para o centro, mas fazem um desvio antes de se tocar. Ao longo desse traçado central, copos vermelhos e amassados, cheios de água, são dispostos em pontos salteados no chão. Antes dessa geometria particular ser disposta em cena, a mulher de “estado de guerra: uma dramaturgia do fim do mundo” perguntava: “O que vocês estão esperando? Estão esperando que eu diga alguma coisa?”.
A cena parece apostar no verbo sufocado, no esvaziamento do palco e na geometria das linhas, quadrados e esferas como esperneio possível diante de um mundo em que as palavras não parecem capazes de deter a catástrofe iminente. Algumas frases soltas sobre a guerra ou o apocalipse inevitável da humanidade, mas sobretudo as ações em cena, sugerem um mundo em que o diálogo é inócuo diante do peso das bombas, e em que nenhum blá-blá-blá parece poder adiar o fim. Então o homem e a mulher, portando um figurino escuro com faixas vermelho-prateadas brilhantes, começam a se engajar numa série de ações repetitivas, que são como jogos insensatos à beira do abismo. Tomam goles sucessivos da água e pisoteiam os copos um a um; atiram bolinhas de pingue-pongue na parede negra do fundo, até que o palco se encha inteiro desses pontos brancos que quicam sobre o chão tracejado; seus corpos atraem-se mutuamente, mas só até certo ponto, como as linhas que desviam alguns centímetros antes de se tocar.
Ao final da noite, resta esse chão povoado de esferas brancas e de cilindros vermelhos vazados, destroçados em meio aos resquícios de água. Detritos plásticos que inundam um palco vazio, numa imagem vigorosa do que nos espera ao sair do teatro, para encher o pulmão novamente com o ar irrespirável dessa cidade. Na secura dessas formas que se debatem no vazio, talvez resida um gesto mais contundente do que qualquer palavra. Mas como as palavras e as formas ainda são o que nos resta, ainda que arruinadas, ainda que à beira do abismo, deixo aqui um fragmento (em tradução livre) de “Progenitores”, do argentino Joaquín Giannuzzi, um poema que parece rimar com aquele verso de Drummond que dizia “mas as coisas findas / muito mais que lindas / essas ficarão”:
Porque se é difícil explicar um mundo
que insiste em reclamar nossa cumplicidade,
isso não é decisivo; um aceno carregado de sentido, isto é, de justiça, importa mais
que obter conclusões já sepultas com a ação dos outros.
Mas se alguém afirma que está só
diante de seu próprio cachorro porque o pai não está, e que não pode dar um passo
sem continuar a peste que herdou,
então, que cada um fale em seu nome, quando saia do cinema ou do cemitério,
e diga: eu me reconheço nesta fastidiosa história, sou filho da estafa e dos mortos recorrentes,
me tocou a usura e tenho tempo.