(Foto de capa: Daniel Pitanga – Performance Outras Rosas – Soraya Martins).
Salvador, dezembro de 2018.
Soraya,
Cheguei, na segunda, de Buenos Aires e vim direto para Salvador. O Bruno me convidou para participar do Encontro Periférico de Artes. Na quarta, fui almoçar na casa dele e lembramos muito de você. Ele comentava com alegria do nosso encontro no FIT-BH 2018. Dizia, emocionado, que foi o primeiro festival de nível internacional de que ele participou, em que a maior parte da curadoria era de pessoas pretas. Fiquei pensando na força da presença de nossos corpos nesses lugares e também em como temos ressignificado esses espaços.
A programação do EPA, como é carinhosamente conhecido, está bem bonita. Bruno e Iná articularam uma curadoria cuidadosa, que me fez lembrar muito das nossas conversas, em Pernambuco, sobre o processo da curadoria das obras nacionais para o FIT. O desejo de ampliar os imaginários sobre nossas poéticas, um dos critérios pautados por eles, diz muito sobre as estruturas racistas que insistem em nos invisibilizar, mas também da potência do que estamos produzindo. A cena contemporânea de Salvador é muito rica e me possibilitou estabelecer relações com a cena de BH que podem favorecer nossas investigações. Não sei se já leu, mas Mário Rosa publicou a crítica que escreveu sobre a Unha Postiça, do Coletivo Tropeço. Gosto desse fragmento: “na operação desta cena: subjetividades, o contemporâneo de uma vida e algo que não está circunscrito à individualidade, encontram estranha aproximação. É como se tentassem falar da vida no campo expandido de uma experiência que não se reduz ao registro da percepção ou da identidade, pois algo de intensivo e afetivo ronda o trabalho”. Nesse outro, apontou que “é um exercício que aproxima o fracionado de memórias e de desejos para tocar a matéria fina da singularidade. Um movimento que se dá em chão pedregoso, de difícil cultivo, mas que ainda assim, não fugindo dos tropeços, segue e persevera no que é da ordem da prudência e da urgência”. Percebo, nesse nosso gesto de aproximar o fracionado de memórias, uma relação sincera com a obra da Rosana Paulino e sua poética da sutura.
Em seu manifesto “Dança em voz alta”, Bruno diz que ancestralidade é fogo. Percebo que o fogo também tem sido recorrente em algumas produções e acredito que mereça nossa atenção.
Mais tarde saio para ver o mar. Para submergir o corpo no mar. Para ser o mar.
Te abraço!
Belo Horizonte, dezembro de 2017.
Anderson,
Assim como, certa vez, o Ricardo te disse que Belo Horizonte dos anos 1990 viveu uma espécie de renascimento à Harlem, brinco tentando forjar paralelos e dizeres que consigam dimensionar a experiência que foi vivenciar na hipoderme, bem lá no fundinho, o que foi este ano, 2017, para as teatralidades negras na cidade. Explosão? Aquilombamentos-es[téticos]? Coreopolíticas fabulantes? A evidência do provisório de toda e qualquer centralidade? Suturas?
A perene tentativa de reconfigurar territórios e fabular imagens – com, sobre e a partir dos corpos da negrura – para não apenas movimentar outros sentidos, mas, antes, dar a ver o próprio plural do sentido das estéticas pretas, foi essencial para, assim como fazem os gatos, não confundirmos a noite com a escuridão. É a partir dessa cuidadosa distinção que se pode tocar, como dirá Mário Rosa, daqui uns anos, “a matéria fina da singularidade”.
Em 2017, celebramos o plural dos sentidos com a segundaPRETA, a Polifônica Negra, o Aquilombô e o Prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas. Todos esses projetos-aquilombamentos nascem e se consolidam neste ano. Viva! São territórios pulsantes, que dizem de caminhos e movimentos que são ressignificados, ajustados e (re)elaborados no pisar de pés no chão das e dos artistas que se propõem a criar territórios que, ao mesmo tempo, são da ordem da desobediência a um sistema imperativo e da ocupação de espaços físicos e simbólicos na construção de novas humanidades através dos teatros.
Acho que não é à toa que este ano, para os teatros pretos, começou numa segunda-preta, dia 17 de janeiro. A segundaPRETA, de alguma forma, abriu espaços para a tessitura dos projetos e pensamentos que se fizeram ao longo de todo o ano. A gente aprendeu, ali, a estabelecer diálogos, mesmo frágeis, sobre as estéticas negras, a pensar e repensar formas de fazer teatros pretos que não sejam somente uma arte do revide, um tipo de resposta e atestado de comprovação da capacidade preta, que os brancos negam, pois se cai, fácil, no lugar de aprisionamento permanente ao tentar dar respostas perfeitas à branquitude. A gente não quer ver, como Otelo, o mundo só em duas cores. Aprendemos a fabular. Quero escrever sobre isso na minha tese.
Feliz ano novo.
Soraya.
Buenos Aires, junho de 2021.
Ainda não consigo parar de pensar no Delirar o Racial, filme dos artistas Davi Pontes e Wallace Ferreira. Mais cedo, lia o artigo de Juliano Gadelha, “Habitar a escuridão”, e me lembrei das nossas conversas sobre neblina. Do esforço, talvez desnecessário, de pensar e refletir sobre essa cena preta. A representação de uma arte negra será a de jamais representar o negro de modo algum? Como performar nossos velhos dramas? O que deixamos escapar na busca incessante por novos imaginários?
É tudo novo de novo. Migrar para Buenos Aires, neste momento, diz muito do desejo de coabitar outras paisagens, de problematizar formas já cristalizadas e de ampliar o pensamento. Parece-me importante ressaltar que, apesar de estarem delimitadas pelo uso estratégico do adjetivo preta, as cenas contemporâneas produzidas por nós são diversas por definição e princípio, são causa e consequência da diversidade mesma de ser negra/o e estar no mundo. E é essa poética, aliada a uma diversidade de formas e motivos, que tem guiado meu olhar pela leitura reveladora de mundos. Tenho me interessado muito por essa cena criada pelas LGBTQIA+. Também venho acompanhando o trabalho do coletivo belo-horizontino de teatro Cia Breve. Na dramaturgia de Amora Tito, para Uma, outra, ser indefinida é, sobretudo, abertura por onde se deslizam memórias de muitos tempos e vida vivida, permitindo ecoar muitas vozes. Avó. Mãe. Filha. Irmã. Como aponta Aline Motta em A água é uma máquina do tempo: linhagem é linguagem. Não que pareça ou tenha alguma relação, mas a proposta me faz recordar A cor púrpura. Não o livro maravilhoso da Alice Walker, mas, mais especificamente, a cena do filme em que Celie está sentada num bar ouvindo Shug cantando Miss Celie’s Blue. Em cena, Anair Patrícia e Renata Paz mais do que falar de amor, de afeto e de memórias, vivem as muitas possibilidades dos amores, dos afetos e das memórias. Elas são duas, mas se multiplicam sob a direção cuidadosa da Amora. Elas querem falar de amor sem dor, mas são conscientes de que o amor é um fogo que arde sem doer e também é uma ferida que dói e não se sente. E, sem medo de viver, amam e, mais desafiador ainda, se permitem ser amadas. Em jogo, duas mulheres, uma mesa, duas cadeiras, muitas histórias e a dança com o tempo. Tudo é movimento. São como aqueles castelos de areia que construímos na praia, a onda vem e leva e a gente insiste em reconstruir. Interessa-me ainda mais o como se conta.
Te abraço!
Belo Horizonte, junho de 2021.
Anderson,
Esta escrita é permeada de memórias. De nós dois juntos. De mim sozinha. Das memórias contadas e inventadas. Cada vez mais, gosto de inventariar memórias e ficções. Acredito que elas, ficção e memória, nos dão a oportunidade de construir espaços e saberes, reelaborar temporalidades e nos permitem nos dedicar a um desejo. O desejo! Aquele que, como diz Leda Maria Martins em A cena em sombras, imprime uma “marca nos afetos e conflitos humanos”.
Lembra do nosso almoço, em São Paulo, com a Rosana? Acho que foi em agosto de 2019. Ali, do ladinho do Centro de Referência da Dança. Ela nos levou flores. Eu, você e a primeira apresentação da obra Tropeço, performance do coletivo Tropeço, de Belo Horizonte, em outras cartografias e perspectivas. De lá para cá, uma travessia de quase dois anos, em que continuamos a suturar, com a menor dor possível, humanidades cindidas.
Travessia. Sutura. Fabulações.
E a gente de volta a Belo Horizonte. Eu e o pensamento de que os corpos da negrura são, também, corpos da sutura, no sentido mais técnico do termo, como a Rosana nos falava, ou seja, um procedimento que consiste em costurar as bordas de um corte ou ferimento para fechá-lo. Anderson, acho que pensar a sutura, nesses e desses corpos, é pensá-la a partir do lugar de fragmentação, que diz de estéticas elaboradas com base numa história/cultura de um povo em pontilhados, feita de fragmentos espalhados e recriados no/pelo mundo. A fragmentação não é um processo de “desencanto”, ela é uma condição, sem possibilidade de escolhas para os sujeitos negros moventes pelo mundo. Dessa condição se anuncia, cria, recria e transcria uma arte de suturar rastros, restos, resíduos e vestígios. Alguns dos nossos grupos e coletivos, Breve Cia, Tropeço, assim como nossos aquilombamentos, Polifônica Negra, segundaPRETA, tecem-e-retecem-fio-a-fio a história e fabulam o passado e a memória fraturada pelos corpos e corpus desterritorializados. E isso não é invenção!
Daqui pulso nas minhas memórias e invencionices.
Soraya.