– por Clóvis Domingos –
Belo Horizonte, 26 de maio de 2020.
Ana Luísa querida.
Saudades de você.
Essa carta é repleta de espaçamentos.
Venho há meses e dias te escrevendo inúmeras cartas mentais que se perdem na efemeridade do tempo.
Cartas fragmentadas. Pequenas notícias. Algumas perplexidades.
Cartas nunca enviadas feito antigas promessas.
Mas penso em você.
Gosto muito de escrever/receber missivas. Cartas são endereçamentos muito especiais. A prática epistolar é uma espécie de literatura da intimidade. Coleciono cartas as quais guardo como documentos afetivos. São histórias compartilhadas através de escritas atravessadas pela respiração viva daqueles que escrevem, leem, buscam o outro.
Bonita e sensível essa troca de cartas que você propõe no Horizonte da Cena.
Penso que a crítica é como uma carta escrita e enviada aos leitores e artistas contando um pouco de como vivenciamos um espetáculo, feito um relato de viagem. Uma crítica é uma espécie de carta cuja voz e pensamento se tornam públicos. Ressonâncias. Quando lemos uma crítica, um trabalho se atualiza no tempo.
Uma carta assim como uma crítica sempre conta alguma coisa.
Com os espaços teatrais fechados, o que contar agora?
O que podemos contar então?
Há aqueles que contam o número de mortes.
Há outros que contam histórias de vida.
Há alguns que não contam com ninguém e com nada, estão na mais absoluta solidão e miséria.
Entre mortos e vivos estamos todos pagando uma conta cara demais.
O artista assim como o crítico paga uma conta alta através do corpo. Corpo como presença, partilha, desejo de encontro, o gasto e o gesto humano de se querer comunicar, sensibilizar, estar junto, se abrir, (ar)riscar.
É de uma fragilidade bonita isso.
Mas agora o que conta?
Como contar essas horas passadas em confinamento doméstico e sem contato humano?
Como contar esse excesso de teletrabalho e conectividade digital?
Diante de tantos espetáculos disponibilizados gratuitamente na Internet, quem é que paga as contas dos trabalhadores da cultura?
Que vida conta mais agora: a dos infectados ou dos imunizados?
Quem são os mais vulneráveis? É possível se contar isso também?
Entre necessidade de proteção, estratégias de vigilância e controle dos corpos e pedagogias do medo, quem está contando (no sentido de narrar) o que estamos vivendo?
Com quanto de saúde mental é preciso contar para se participar de um edital artístico de ajuda emergencial?
E avida (errei aqui, escrevi tudo junto…. será que queria dizer: “ávida”?), entre duas contas correntes: a humana e a econômica.
Essa minha carta para você é sobre imaginação e contação, o oposto de contabilidade.
Eu desejo a contação porque nela há qualidade de tempo vivo. Não se conta qualquer coisa nem na vida e nem no palco.
Na contabilidade o tempo acaba acumulado e monetarizado, logo morto.
Isso é só um corpo comendo uma fatia de tempo.
Então deixa eu te contar uma coisa: eu quero viver. Eu quero amar. Eu quero te encontrar depois que tudo isso tiver passado.
Eu quero no futuro contar que, apesar de tudo, redes de solidariedade foram criadas e vidas foram valorizadas. São essas cenas que vejo em meu anônimo horizonte.
Eu não quero contar mortes, posso talvez contar sobre os mortos. São milhares deles no Brasil. Eles têm nome, idade, endereço, profissão, família, classe social (na maioria são pobres) e histórias.
É preciso contar, e se necessário gritar, que toda morte causada por descaso e omissão é evitável sim.
Quero também contar que estou me transformando como pessoa, revendo valores, redimensionando afetos e as questões do tempo.
Quero contar que não venci o medo, mas consigo conversar com ele.
Quero contar que há algo se curando em mim.
Ana Luísa, essa minha carta para você é sobre teatro.
Sobre o que se vem (re)contando há muito tempo:
“A peste coletiva devastando o povo de Tebas diante da arrogância de um tirano envenenado pelo Poder.
Depois a velhice sempre exilada: o rei cego e abandonado recebendo a visita e os cuidados apenas das duas filhas.
Por último, uma jovem lutando para enterrar seus mortos”.
Não é isso o que a gente vem assistindo agora?
Há milênios a humanidade vem ensaiando e apresentando essa mesma trágica trilogia.
Mas, acredite: o vírus maior é o ódio, a ambição desmedida e a injustiça social.
Eu quero te contar que escolho humildemente a compaixão e a solidariedade porque: “Nasci para compartilhar amor, não ódio” (Antígona).
Eu quero te contar que estou desenterrando uma vida vasta e que estava escondida.
Eu estou aqui te escrevendo sobre contação, contabilidade e ânsia de contato.
O que nunca deveria estar confinada: a nossa indignação individual e coletiva, a produção de pensamento crítico, a imaginação política e a ação humana.
Sigamos juntes em novas respirações.
Um forte abraço,
Clóvis.
Texto escrito como carta- resposta às provocações da crítica Ana Luisa Santos. Para acessar a carta dela: https://www.horizontedacena.com/por-uma-performance-queer-da-ausencia/