Entrevista com Carlandréia Ribeiro, por Marcos Alexandre e Felipe Cordeiro – Fotos: Acervo pessoal.
Carlandréia Maria é corpo sem pouso no chão da casa/mundo em que habita,
é água em fluidez desgovernada, por vezes serena, noutras arrebentação.
Essas são algumas palavras que a própria Carlandréia utiliza para se autodefinir. São termos que potencializam as múltiplas faces e vozes de Carlandréia Maria Ribeiro – mulher negra, atriz, arte-educadora, cantora, diretora, dramaturga, escritora, roteirista –, uma multiartista que, além de desempenhar diversas funções no campo da arte, assume uma posição ideológica e sociopolítica que a faz se destacar no campo das poéticas pretas e das ações de engajamento que envolvem as textualidades e as cena negras contemporânea.
O nosso encontro com Carlandréia é feito de encantamento, uma relação quem acompanha a trajetória uns dos outros. Assim, o aceite a esta entrevista – que foi sendo construída a partir de perguntas e respostas realizadas pelo e-mail, ainda pela impossibilidade de encontros pessoais – possibilitou que exercitássemos uma conversa que foi intensificada como fruto das subjetividades que nos unem a partir de outras presenças, e que ultrapassa as letras do teclado, levando-nos a outros possíveis encontros.
Em 1975, quando teve contato com a obra da mineira Adélia Prado, o também mineiro – assim como nós – Carlos Drummond de Andrade escreveu as seguintes palavras em uma crônica publicada no Jornal do Brasil: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: está à lei, não dos homens, mas de Deus”. Hoje, passados quase 50 anos, tivemos a possibilidade de vislumbrar outras janelas em nossa poesia e, talvez, parafrasear dois dos maiores nomes das letras nacionais: Carlandréia é lírica, cultua as ancestrais forças da natureza, é politizada, faz arte como faz bom tempo: esta não é uma lei, pois ela é regida pela liberdade, mas sua voz ecoa no canto dos deuses e do tempo.
Felipe Cordeiro – Como teve início a sua relação com a representação e o teatro?
Carlandréia – Fui aquela criança que “roubava” os lençóis da minha mãe para fazer as cortinas do meu teatro de quintal. Era ali no terreiro de casa que eu fazia as minhas primeiras fabulações em torno do que eu compreendia como teatro, como arte da representação. Eu inventava histórias, construía pequenos universos imaginários e os apresentava aos meninos da minha rua. Para a minha mãe, eu pedia que fizesse pipoca, bolo e limonada, porque, afinal, tinha que servir alguma coisa para a plateia. É engraçado, porque nunca tive dúvidas ou titubeei quando algum adulto me perguntava o que eu queria ser quando crescesse. A resposta sempre esteve na ponta da língua. Eu empinava o queixo e dizia: atriz, cantora e bailarina! A bailarina ficou no desejo, quanto à cantora, digo que sou uma atriz que canta. Na medida em que fui crescendo, a resposta àquela pergunta passou a obter outras reações das pessoas que a faziam pra mim. Da reação à menina que parecia engraçadinha quando empinava o queixo pra dizer das suas aspirações, começaram as expressões de deboche e incredulidade. Eu ouvia coisas do tipo: “Oh, dó! Desde quando pobre vira artista?”, “Sonha, Carlandréia, aproveita que é de graça”, “Se enxerga, menina! Você é filha de motorista de caminhão e cantineira de escola. Tira essas ideias da cabeça.” Teimei! Não, nunca obedeci as vozes do racismo.
Na escola era eu sempre a estar à frente dos “teatrinhos” sobre qualquer tema. Na quinta série, organizei a turma e montamos Morte e Vida Severina. Digamos que foi o meu primeiro sucesso (risos), fizemos várias apresentações nas escolas da Ibirité e até na quadra da cidade. Era como se apresentar no Teatro Municipal! Num belo dia, algumas pessoas de fora vieram até ao Grupo Escolar Pedro Evangelista, onde eu estudava. Passaram de sala em sala dando notícia de que haveria um projeto na cidade chamado “Projeto de Interação de Comunidades”, organizado pelo MEC e Instituto Pró Memória, que ofereceria gratuitamente oficinas de teatro para estudantes. Acho que a minha inscrição foi a de número zero, tamanha a pressa com que corri para não perder a oportunidade. Sim, esta foi a grande oportunidade da minha vida. Foi a partir dessa oficina de teatro com os mestres José Roberto de Alvarenga, Luis Carlos Garrocho e Antônio Carlos Cardoso que os sonhos da menina, que roubava os lençóis da mãe para fazer cortinas do palco de quintal, encontraram o seu caminho. José Roberto de Alvarenga, com seu olhar sensível, viu em mim o potencial, a verve, como ele me dizia, e me convidou para integrar o grupo Teatro Vivo em BH, do qual ele era o diretor. Assim, começou a minha carreira de atriz de teatro. No Teatro Vivo, recebi toda minha formação em história do teatro, como palhaça, e foi lá, com a orientação da Zé Roberto, que me formei arte-educadora. Sou cria de um projeto social e da sensibilidade do meu querido Mestre Zé Roberto.
Marcos Alexandre – Você poderia comentar sobre outros diretores com os quais trabalhou e que influenciaram na sua trajetória como artista e intelectual. Como foi – ou tem sido – a sua integração em outro projetos sociais como atriz-professora-formadora?
Carlandréia – De fato, acredito que, se não tivesse tido aquela oportunidade de participar do Projeto de Interação de Comunidades, do MEC e Instituto Pró Memória, talvez eu não estivesse aqui hoje. Ou teria buscado de outras formas o caminho para chegar até aqui, mas não tenho dúvidas de que teria sido bem mais difícil. Com o José Roberto, pude acessar conhecimentos que eu nem imaginava que existiam. Com o Zé Roberto, tomei conhecimento dos caminhos do teatro desde os primórdios. Isso me deu base para vislumbrar um teatro dentro da minha época e, a partir do meu olhar para a realidade brasileira, do meu lugar de militante de esquerda, fui traçando um percurso dentro da arte. Sempre acreditei que o papel do artista deveria estar intimamente ligado ao seu tempo. Dentro do projeto de Interação de Comunidades, nossa formação foi voltada para a arte-educação. Após meses de estudos, começamos ir a campo. Realizávamos incursões dentro das escolas de periferia ministrando oficinas de teatro com foco na arte-educação. Jogos, brincadeiras, todo tipo de recursos eram utilizados por nós. Paulo Freire era a inspiração para a pedagogia aplicada. A ideia de trabalhar com as crianças, a partir do território no qual elas estavam inseridas, muitas vezes, causava estranheza nas professoras e direções das escolas. Éramos o que eles chamavam de “o povo do teatro”. Uma gente esquisita para eles. Mas essa experiência me deu régua e compasso para a minha vida profissional até os dias de hoje.
Infelizmente, trabalhei com poucos diretores. Penso que o fato de eu me assumir como militante de esquerda possa ter causado, por parte deles, uma ideia de que eu seria uma atriz “panfletária”, (risos), sim, eu cheguei a ouvir esse tipo de comentário em alguns lugares. Acho que também pelo fato de eu ser uma atriz negra muitas portas eram fechadas para mim. Primeiro, porque a grande maioria dos diretores, especialmente quando comecei, nos anos 1980, era todos brancos; segundo, porque a dramaturgia (eurocêntrica) nunca nos foi favorável, né? Ou nossos corpos estavam ausentes ou estavam em situação de estereótipos nada positivos.
Foi por esta razão que, junto com o meu companheiro Jacó do Nascimento, criamos o grupo Circo Teatro Olho da Rua. Nesse espaço de criação e piração, desenvolvemos toda a nossa história com apresentações nas ruas e praças da cidade de BH. Do centro nervoso da cidade, dentro de agências bancárias, na praça 7, indo até o cerne das periferias, no interior de Minas e do Brasil, o Olho da Rua causou. Foi no Olho da Rua que entendi que se os diretores ou produtores não se interessavam pelo material que eu tinha para oferecer como atriz; não os atendia. Eu também não me interessava pelo que a maioria deles estava dizendo para o público com as suas montagens. Com o tipo de abordagem que as escolhas dramatúrgicas me comunicavam. Eu queria falar sobre as Histórias das gentes como eu, do meu povo, eu queria fazer um teatro que comentasse da realidade do meu país, que fosse dedo na ferida.
Mas preciso registrar que ter sido dirigida por Marcos Vogel, Orlando Orube, Eliane Carneiro, Adyr Assumpção e por Jacó do Nascimento fez toda a diferença na minha vida. Todos, grandes diretores. Com Marcos Vogel, encontrei a erudição personificada. Ele me levou a buscar leituras imprescindíveis para a formação de qualquer artista. Eliane Carneiro me mostrou como é possível fazer uma direção a partir do afeto. Orlando Orube me ensinou como o texto poético de Amor de Lua merecia e necessitava de uma embocadura precisa, a justa pausa e a palavra dita de dentro de cada emoção. Adyr Assumpção é outro mestre a quem devo ter tomado contato e total encantamento com a obra de Bertold Brecht. Foi a convite dele, na época do maravilhoso Grupo Kuzala, que participei ao lado do imenso Ronaldo Brandão, da montagem de Círculo de Giz Caucasiano. Que experiência incrível e inesquecível! Com a direção do Jacó, aprendi e aprendo sempre que o teatro é o lugar de a gente ser feliz, de se jogar com realidade e deslumbramento sem medos ou pré-conceitos, e que do nada inventa um universo inteiro.
Minha relação com os projetos sociais perdura. Como arte-educadora, estou sempre ministrando oficinas de teatro para estudantes de escolas públicas, para idosos nos CRAS, na Escola integral, como foi a experiência recente na Fundação Helena Antipoff. Eu sempre acreditei no poder da educação e do teatro. Nunca trabalhei com a separação desses dois elementos. Sou alimentada cotidianamente por essa força.
Felipe Cordeiro – Em sua jornada pelo teatro e pela educação, a literatura parece ter sido sempre uma boa companheira. Como as letras fizeram parte da sua história artística? Gostaria que você comentasse sobre suas primeiras leituras até desembocar no sucesso que foi Memórias de Bitita – O coração que não silenciou, bem como sua parceria com Conceição Evaristo.
Carlandréia – Quem despertou o meu gosto pela leitura foi minha mãe. Eu a apelidei de Tracinha, porque ela devorava livros. Era uma média de três a quatro por semana. Acho que ela tentava compensar a frustração por ter sido impedida pelos meus avós de frequentar a escola. O pouco que minha mãe conseguiu ir à escola foi fugindo pela janela e, quando voltava pra casa, a professora sempre a acompanhava para implorar aos meus avós que não batessem nela por ter fugido para estudar. Minha mãe apanhava sempre. Ela lia de tudo que lhe caia nas mãos. Livrinhos de faroeste, Sabrina, revista de moda e culinária, até bula de remédio!
Eu adorava frequentar a biblioteca da escola e ganhava todos os concursos de redação. Li toda a coleção Para Gostar de Ler, devorava verbetes dos dicionários – me chamavam de dicionário ambulante na minha turma. Fui também em busca dos clássicos, então li Machado de Assis, José de Alencar, Vitor Hugo, Jorge Amado (me apaixonei perdidamente pelo Guma, de Mar Morto), passei por Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, João Cabral de Melo, os poetas Castro Alves, Carlos Drummond de Andrade… Interessante que, só mais tarde, fui descobrindo as autoras, as mulheres que escreviam. Daí me encontrei com Clarice Lispector, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, muitas outras. Hoje, sou capaz de compreender como o patriarcado é determinante também nesse lugar. As autorias negras então, só vim a descobrir bem mais tarde. Naquela época, por exemplo, a gente nem tinha a noção de que Machado era negro.
Todos esses livros me marcaram e influenciaram minha vida de maneira de fundamental. Quando montei Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto, eu logo senti que a literatura poderia me ajudar a denunciar ao mundo gritos que eu trazia guardados dentro de mim e que, por meio dela, transformando-a em teatro, poderia reverberar em muitos ouvidos. Carolina Maria de Jesus, certa vez, passou pelas minhas mãos. Causou impacto, mas nos perdemos uma da outra e só voltamos a nos encontrar novamente em 2014, ano do seu centenário. Chegou, chegando, essa Preta Maravilhosa. Promoveu mudanças fundamentais na minha vida. O espetáculo Memórias de Bitita é, sem dúvida, um marco na minha carreira de atriz, de produtora e, consequentemente, de arte-educadora. Com Bitita, fomos muito além das temporadas nos teatros da cidade de BH. Com o prêmio de Artes Cênicas que recebi da Secretaria de Estado de Cultura, fizemos o circuito caroliniano. Em parceria com a Secretaria de Estado de Educação, fomos para dentro das escolas de presídios apresentá-lo a jovens em privação de liberdade, vivemos momentos de intensa emoção com as mulheres dos presídios femininos. Tivemos a honra de cantar “Salve Ela” em celebração ao aniversário de 70 anos de Conceição Evaristo, ela dançou e cantou com a gente no palco do CCBB, no FAN de 2015. Recebemos o prêmio Leda Maria Martins e seguimos colhendo alegrias com Carolina.
A partir daí, começa uma relação de amor e amizade com Conceição Evaristo. Costumo dizer que é um encontro das Águas. Duas filhas de Osùn, duas mulheres Pretas que encontraram na literatura um caminho para desaguar suas existências. Como cunhou Conceição, suas Escrevivências. É incrível como a obra de Conceição Evaristo me impacta. Toda mulher Preta deveria ler Conceição. Naturalmente, não ousaria me comparar à imensa Conceição Evaristo, mas seguindo seus passos, venho, a cada dia, me aventurando no exercício da escrita. Nessa empreitada, venho desenvolvendo o projeto de Escrita e Deságue, para não enlouquecer na pandemia. É um processo de exposição da minha alma e do meu corpo, estou ali, em cada texto, em carne viva. Ter começado a ler autoras e autores negros foi de fulcral importância para tudo o que me afeta atualmente como mulher, artista e ativista. Poder olhar nesse espelho e enxergar a mim e aos meus amplificou totalmente o meu olhar para o mundo.
Marcos Alexandre – Ao ler sua resposta e considerações sobre sua aproximação e (inter)[re]ação com as obras de Carolina Maria de Jesus e Maria da Conceição Evaristo, duas Marias como tantas outras mulheres negras brasileiras, duas mulheres negras que têm transformado a vida de inúmeras outras mulheres pretas brasileiras no campo da literatura, da teoria feminista e das artes, gostaria que você nos falasse um pouco mais sobre sua escrita, ou melhor, sobre seu processo de escrita, sobre sua poética dramatúrgica e o seu olhar sobre as escrevivências pretas – principalmente das mulheres pretas – como propulsoras de novas histórias a partir de suas corporeidades e memórias.
Carlandréia – Duas Marias, dois destinos que se assemelham (há sempre repetidas semelhanças entre as vidas das mulheres pretas – Carolina e Conceição escrevem sobre este tema com a precisão de lâminas afiadas). As obras de Carolina Maria de Jesus e de Maria da Conceição Evaristo compõem um painel social, a partir de suas agudas observações da realidade de pessoas negras, especialmente as mulheres, dentro da cartografia de um país que carrega trezentos e cinquenta anos de exploração do[a]s corpos/corpas negros/negras, e que, nos anos pós-abolição, relegou esses mesmos corpos ao “quarto de despejo” da sociedade. Carolina faz a leitura de alguém que saiu do seu lugar nas entranhas de uma vida rural de Sacramento para cair na São Paulo higienista e cruel, que a “recolhe” em uma carroceria de caminhão e a despeja às margens do Tietê, na favela do Canindé . A máquina de moer carne de nordestinos, pretos e pobres nos trituradores dos subempregos, das indústrias, das violências de Estado e policial, que ainda perduram, das cozinhas e dos banheiros da classe média paulistana. É a partir dessa crueza que Carolina escreve. A vedete da favela vive a “fome infausta” e coloca os culpados no seu livro.
É também de uma favela, a Pendura Saia, de Belo Horizonte, que Conceição Evaristo se desloca até o Rio de Janeiro de carona na boleia de um caminhão e é lá que constrói toda a sua trajetória como escritora. Conceição nos dá a impressão de que carrega todas as mulheres negras do mundo. Ela parece beber todas nós, parece devorar nossas histórias. Ela sorve nossas memórias lembradas ou não, para depois nos fazer reverberar para o mundo em forma de grito, poesia – ancestralidade.
Como Carolina, Conceição também denuncia as violências, “minha voz não é canção para ninar o sono injusto da casa grande”, provoca viagens interiores em uma urdidura que, a princípio, nos dá a ilusão de uma suavidade morna, mas que, aos poucos, vai penetrando o dedo nas feridas emocionais causadas pelo racismo que insiste em querer nos matar todos os dias. Conceição traz na “palma da mão a pedra retirada do meio do caminho” e a atira com a doçura de Oxum, ela nos conduz pelas memórias e também nos ensina a usar a adaga da Rainha Mãe da água doce. A partir dessas duas mulheres, Carolina e Conceição, Maria e Maria, escritoras Pretas, Mulheres Farol e de muitas outras pretas que vou conhecendo, tento mirar o caminho da minha escrita.
Gosto de escrever como quem está numa mesa de bar, ou sentada na cama de uma amiga simplesmente conversando sobre a vida, a política, o desejo e a dor, a raiva e a fome de que tudo mude ou saia do lugar do mero incômodo que as desigualdades costumam causar. Eu quero ver tudo revirado, eu quero demolir o que está posto contra nós. Não é uma escrita ressentida ou raivosa, é deságue e cura. Preciso falar, preciso escrever e tentar dar a notícia. Muitas vezes, a notícia pode não interessar a mais ninguém além de mim; noutras, anseio criar rebuliço e desarranjo nas estruturas que nos cercam as liberdades e os sonhos. Pretensão de Preta atrevida? Talvez! Carolina e Conceição me ensinaram a insubmissão diante das estruturas que tentam nos silenciar. Eu apenas tento ser boa aprendiz. Assim como Carolina e Conceição, sou um corpo dissidente. Minha corporeidade Preta, fora dos padrões de estética eurocêntrica, mulher de candomblé e de esquerda, filha de Oxum e de Xangô, corpo parlamentar, colorido demais para os espaços brancos, sigo em construção e tentativa diária de descolonização. É das minhas memórias, das memórias das mulheres da minha família de sangue e mundana, dos olhares que lanço para o mundo que nasce a minha escrita.
Felipe Cordeiro – Durante a pandemia, assim como diversos artistas de teatro, você se reinventou e atuou de forma mais intensa nas linguagens audiovisuais, tendo lançado seu filme Ei! e a obra Espalhada pelo continente. Gostaria que você nos contasse um pouco sobre cada um desses trabalhos e de que forma essas obras atravessaram seu corpo e suas escrevivências.
Carlandréia – O processo EI!: Era o tempo do medo da morte da vida e da arte. Fomos os primeiros a serem recolhidos em confinamento. As artes e os artistas se viram de uma hora para outra desterrados dos palcos, das praças, de todos os lugares onde se realizam as ações performativas, coletivas e ritualísticas. Das artes cênicas em especial – teatro é presença (a vida é presença). Essa máxima do teatro posta em xeque em brutal realidade pandêmica. Lutamos contra um vírus e um verme. Ambos implacáveis em seu desejo de morte. Nunca havia visto assim, em exagerada proximidade, a pulsão de morte tão exacerbada. Na medida em que as notícias da tragédia iam chegando, uma angustiante sensação de tristeza, medo, indignação e raiva ia fazendo um trânsito por dentro da minha cabeça, das vísceras e das memórias. Era imperativo tentar sobreviver. Um mantra começou a me rondar: eu não vou sucumbir. Dias bons e dias maus foram se passando, e o mantra lá dentro, circulando, rodando, fazendo a gira. Naquele momento, março de 2020, eu estava completamente isolada em um sítio encravado dentro da barriga da montanha. Me sentia uma espécie de Jonas às avessas, a minha barriga não era a de uma baleia. A barriga que me engolia e abrigava era uma montanha milenar de minério de ferro e terra vermelha. Inevitável destino de capricorniana obstinada, serem sempre essas velhas senhoras, as montanhas, a me acolherem. E foi de lá de dentro, num milagroso momento em que o telefone deu sinal, que veio a ligação do Adriano Borges me fazendo o convite para escrever e dirigir um espetáculo que concorreria ao Cena Rascunho, editado pelo Galpão Cine Horto. Um disparo no coração, um suspiro e… topei a empreitada! Fiquei dias matutando, confabulando com minhas memórias, traumas, imaginando uma máquina do tempo que me levasse em viagem de descruzamento do Atlântico, que me conectasse com uma ancestralidade sem mácula… impossível. Todos os percursos dessa empresa de delírios e pensamentos me levavam a imagens da destruição civilizatória que as invasões coloniais promovem aonde quer que cheguem.
“O Brasil é uma fratura exposta
Tratada com falsos unguentos
Enfaixada numa atadura branca e podre
Donde se lê escrito em sangue
Ordem e progresso”
Essa metáfora veio como um martelo na minha cabeça. Era sobre isso que me importava falar naquele trabalho e seria pelo corpo/cavalo de Adriano Borges. Homem de corporeidade afro-indígena, que carrega os dois lados de uma memória de processos de invasões, sequestros e genocídios, enquanto na atualidade brasileira outro genocídio era/é operado. Que lugar é este? O que funda este país? O que esses quinhentos e poucos anos de um território assentado na exploração e no etnocídio ainda reservam de perversidade para esses dois povos? Ei! fala sobre isso na perspectiva de um aglomerado de personas que coexistem no ator em cena. Vítimas e algozes se digladiam no corpo/cavalo de guerra posto em cenário de escombros. Em tempo ficcional, ele é o único sobrevivente da tragédia. Tragédia pactuada desde as primeiras invasões, desde a primeira matança perpetrada contra os povos originários até o primeiro desembarque de povos sequestrados em África aqui escravizados, destituídos dos seus nomes próprios, vilipendiados em sua humanidade. A fratura continua exposta e sem tratamento. A covid serviu ao mesmo tempo para confirmar que os cento e trinta e dois anos de pós-abolição não foram suficientes para eliminar desigualdades, como também para escancarar o real propósito do ocupante do cargo executivo mais importante do país. Em 2020, o texto fala em “milhares de mortos pela pandemia”, chegamos a mais de 600.000 até o momento em que escrevo aqui.
Como uma cena rascunho virou filme? Bem, por conta do confinamento houve a exigência de entregar o material com duração de oito minutos em vídeo. Quando esse material chegou às mãos da comissão avaliadora e do Chico Pelúcio é que surgiu essa ideia de que o material era um curta-metragem, e então veio a proposta de lançá-lo como tal. O formato de gravação foi fundamental para que o vídeo recebesse esse olhar. Todo gravado em plano sequência, texto e imagens geram uma vertigem de acontecimentos passados e recentes da história do Brasil e vemos um desfile de personagens ora contraditórios, ora narradores do futuro fazendo uma convocação urgente à memória.
Espalhada pelo continente: Nasce como texto dentro do projeto de sobrevivência/reesistência Experimentos de Escrita e Deságue Para Não Enlouquecer na Pandemia, ao qual pretendo dar o formato de livro. Assim também é o blasFÊMEA, que estreou no Festival Mineiro de Literatura. Sempre quis ter a experiência com o audiovisual, fiz algumas poucas incursões por esse lugar, e a pandemia trouxe essa necessidade de a gente continuar se comunicando por meio do nosso trabalho, apesar da distância, apesar da ausência, forçou-nos ao desconhecido. Fiz muita coisa na precariedade do meu celular, o Devir Oxum, por exemplo. Já em Espalhada pelo continente, tive todo um aparato de recursos, gravação feita no teatro de bolso do Galpão Cine Horto e a produção impecável da Estação Criativa que criou um projeto incrível chamado Hora da Cena, que reuniu um time de artistas muitos ativos e necessários na cena teatral mineira – Cida Falabella, Letícia Castilho, Glicério Rosário, Rodrigo Robleño, Chico Pelúcio.
Muitos atravessamentos permanecem reverberando dentro de mim, o Ei! e todos os outros trabalhos que venho realizando nesses últimos dois anos. Eles refletem uma mulher que sentiu a chave girando lá dentro e que, apesar dos medos, não fez nada para impedir o movimento das suas engrenagens internas. Na medida em que o tempo vai passando para mim, que vou me tornando uma senhÔra”… (risos) vou tentando compreender cada dia um pouquinho mais sobre a dinâmica desse tempo no meu jeito de estar no mundo. Enveredei pela escrevivência seguindo os passos de duas Marias, a Carolina e a Conceição são a mirada dessa Maria aqui. Carlandréia Maria é corpo sem pouso no chão da casa/mundo em que habita, é água em fluidez desgovernada, por vezes serena, noutras arrebentação.
Outros apontamentos:
1 – foram sempre a palavra (ofó), a teimosia, a curiosidade e a desobediência que me fizerem permanecer andando, em movimento constante a despeito de todas as interdições que me impuseram;
2 – por todos as cidades, estados e países por onde andei, foi sempre o teatro que me levou;
3 – fiz teatro nos lugares mais inusitados que vocês podem imaginar: dentro de agência bancária detonando com os agiotas do mercado financeiro, em porta de fábrica e hospitais, em praças e ruas, presídios e até na zona.
4 – teatro pra mim vai muito além do espetáculo. É função social;
5 – e sim, é verdade que a arte salva. Podem acreditar.
Marcos Alexandre – Depois de te ler (de te escutar), Carlandréia, suas palavras impregnam em nossos corpos e continuam ecoando para além da tela, reverberando e provocando novos e outros sentidos, pois sua voz escrevivente toca em aspectos sociais e afetivos que também nos movem como sujeitos. O desejo que tenho é de que esse jogo de perguntas e repostas não findasse com uma pergunta derradeira. Não obstante, gostaria que você comentasse sobre o que ainda te move como corpo pulsante de mulher negra, atriz-cantora-diretora-escritora, artista múltipla e movente; e se existe ainda alguma personagem que você gostaria de levar para o palco e/ou para o universo audiovisual.
Carlandréia – Adoro a imagem do ‘corpo movente’, essa ideia de deslocamento constante, criando atritos com os objetos estáveis, provocando mobilidades itinerantes, fricções com as permanências intocáveis que a colonização interpôs entre as nossas existências e corporeidades, e as realidades criadas para nos paralisar e banalizar a importância dos nossos movimentos e ações. A ideia de corpo instituinte, que não se apega aos modelos de comportamento, que está sempre criando dissidências em contraponto ao status quo, branquinho e etiquetado. Por esses contornos que procuro caminhar enquanto sujeito Mulher/Preta/Artista.
É uma caminhada dura, uma vez que todos os dispositivos de controle dos nossos corpos estão muito bem organizados para nos causar toda sorte de interdições e silenciamentos, mas sou atravessada constantemente pelo desejo de ser esse corpo-voz que cria ruídos outros que não aqueles que esperam de mim.
Existem muitos personagens que eu gostaria de levar para os palcos e para as telas, uma multidão de mulheres, de tipos com os quais convivo ou imagino, quero colocar de pé a proposta de montagem sobre a vida e a obra de Conceição Evaristo. Pretendo fazer um cotejamento entre a vida e a obra dessas duas Marias – Carolina e Conceição. Comentei sobre isso aqui na nossa conversa. As semelhanças que unem as duas escritoras. Quero também levar adiante um projeto de espetáculo sobre as mulheres da minha família, falar sobre elas, das histórias delas e de como sou o que sou a partir da existência delas, do que me tornei e do que tive de modificar em mim, em minha trajetória, para escapar das armadilhas em que o patriarcado e o racismo muitas vezes as colocaram, as capturaram. São mulheres fortes e delicadas, mas são tomadas por questões de que todas nós, mulheres pretas ou não, somos atingidas – as marcas do machismo estrutural nas epidermes da alma e como carregamos essas marcas.
Ah, ainda tem uma história que me caiu nas mãos por acaso numa das minhas incursões por sebos. É um material sobre a memória do blues e descobri umas composições escritas por mulheres que, após a abolição da escravização nos EUA, se viram obrigadas a se prostituir. Nessas letras, que marcam o período de transição do blues rural para o blues urbano, essas mulheres falam de sua condição enquanto corpos femininos mediante toda a violência a que foram expostos naquela conjuntura de miséria e luta pela sobrevivência. No mais, não dou como finda essa conversa com vocês, porque sei que nossos Odus não se cruzaram por acaso e que seguiremos em trocas de intenso afeto.
Devir Pomba Gira
Fez a vida calhar que eu fosse o meu próprio desassossego
Me converti em confusão
Desacertei o passo
Acertei
Tropecei
E levantei dando gargalhadas na encruzilhada
Se dobrar a esquina
Cruza comigo
Toda mulher deveria ter um caderno e um lápis nas pontas dos dedos.
Novembro de 2021.