Crítica a partir do espetáculo “Gira” do Grupo Corpo (BH)
– por Clóvis Domingos –
Primeiro
que nasceu,
último
a nascer.
Deus capaz
de ardis,
controlador
dos caminhos.
Elegbara,
Parceiro
de Ogum.
Barrete.
Cabelo pontudo
como um falo.
Dono dos oitocentos
porretes.
Oitocentos
porretes nodosos.
Senhor da fala
fácil.
Sopra a flauta
e seus filhos vêm.
Bará chega fungando.
O povo pensa
que é o trem
partindo.
Exu. Oriki de Ricardo Aleixo
Para escrever sobre o espetáculo Gira, começo reverenciando Exu, o Mensageiro e Senhor da Palavra e da Comunicação, divindade homenageada pelo mais novo trabalho do Grupo Corpo. Nesse espetáculo, o “corpo que dança” é o grande protagonista em uma coreografia que transita entre o ritual e o poético.
O palco nu é invadido por feixes de luz amarela (que remetem a velas acesas como nos altares dos terreiros de umbanda e candomblé) e rodeado por cadeiras pretas, nas quais os bailarinos se sentam e se cobrem com um fino tecido preto. Não só assistem a tudo o que se passa, mas podem também simbolizar “corpos fechados”, que, por essa configuração cenográfica, evocariam o aspecto do hierático e do misterioso (como os espaços-santuários das camarinhas e suas liturgias de preparo).
Ao adentrarem o centro da cena para dançar, esses corpos são possuídos pelo bailado sagrado e abandonam as “vestes” do recolhimento e do tempo necessário de iniciação para assim se iluminarem, celebrarem a vida e receberem a energia emanada por Exu. Outra leitura possível seria a saída do espaço da escuridão e das sombras para o habitar na Luz, esta, irradiada no palco como lugar de fulguração no qual se dança.
Os bailarinos, como que “corpos emprestados” não só às manifestações das forças divinas, mas também às dinâmicas construídas para a execução da coreografia, apresentam um variado conjunto de desenhos com os braços e as mãos, além de intensos movimentos de quadril, chegando à experimentação de uma dança na posição de cócoras, numa renovação da gramática coreográfica do Grupo Corpo, que muitas vezes, em seus espetáculos, vem privilegiando uma estética mais retilínea e vertical (presente, por exemplo, em Bach, apresentado na mesma noite). Em Gira, diferente e mais notadamente, percebo que de fato o corpo gira, se dobra, sacode, rodopia, parece entrar em transe e encarna a malemolência, a astúcia, a ludicidade e a sexualidade características de Exu.
Com o dorso e o peito nus, os bailarinos utilizam figurinos constituídos apenas por saias brancas, o que aumenta a sensação vertiginosa provocada pelos inúmeros saltos e giros corporais que, dessa maneira, conseguem nos provocar a impressão de serem forças espirituais que dançam quando perdemos a noção da forma humana. Corpos que se apresentam como linhas e pontos que riscam o traçado do espaço. Lanças guerreiras que cortam e atravessam a dimensão ordinária do tempo.
Outro destaque é a maquiagem, com a cor vermelha de Exu marcada no pescoço dos bailarinos. Interessante associarmos a região da garganta (localização do chacra laríngeo) como lugar de fala, de expressão, “casa da palavra” e, no caso de Elegbara, como em significativa parte da cosmologia africana, a tradição da oralidade é forte, num amplo universo cujas palavras são chamamentos, podem ser preces, produzem curas e atuam como verdadeiras entidades vivas. Palavra e corpo nunca estiveram nem estão dissociados.
Se cenário, luz e figurino assumem uma estética minimalista, já a trilha sonora composta pela banda MetáMetá nos arrebata e contagia ao se encontrar com o marcante vigor físico dos bailarinos. Mescla diferentes sonoridades que vão desde os ritmos e batuques tradicionais e religiosos, até às melodias mais suaves e com leves pitadas e tons de jazz, escapando assim de uma certa padronização quando se trata de musicalidade africana.
O mesmo se pode afirmar da coreografia de Rodrigo Pederneiras. Numa encruzilhada poética, repleta de diferentes caminhos e possibilidades, não se prende aos repertórios decodificados do que se denomina como dança folclórica africana, como também não cai no perigo de movimentações ensimesmadas de algumas formas de dança contemporânea – no caso da temática do espetáculo, não se pode desconsiderar os contextos e matrizes aos quais está secularmente entrelaçada. Gira resulta num bom equilíbrio entre tradição e modernidade, religião e arte, figuração e abstração, agitação e pausa. É possível identificar a pesquisa de vocabulário coreográfico dos trabalhos do Grupo Corpo ao mesmo tempo em que se percebe a efetuação de uma nova camada de experimentações.
Exu: orixá dos caminhos. Se em Benguelê, espetáculo de 1998, o Grupo Corpo apresentava fortes influências advindas da aproximação com as raízes negras (num conjunto de movimentos inspirados nas congadas, nas Folias de Reis e quadrilhas), em Gira, a cultura e a religiosidade africanas são o mote principal. Em tempos de crescente e preocupante intolerância e violência religiosa, a opção estética do Grupo Corpo ao trazer para o cerne de sua criação a presença de um deus não cristão e negro pode ser lida como um gesto político anunciador de um possível “caminho aberto” para as transformações sociais.
Se Exu é criação e transformação, com o espetáculo Gira, o Grupo Corpo, em seus 42 anos de existência, mais uma vez se renova, agora por meio da criação de uma peça coreográfica mítica, afetiva e livre de virtuosismos, cujos movimentos eletrizantes e circulares reverenciam nossa formação, identidade e memória africanas, que se reatualizam pela força da dança contemporânea.
Espetáculo visto em 06/09/2017 no Grande Teatro do Palácio das Artes.
FICHA TÉCNICA
Coreografia: Rodrigo Pederneiras
Assistentes de coreografia: Ana Paula Cançado, Carmen Purri e Míriam Pederneiras
Diretora de ensaios: Carmen Purri
Bailarinos: Ágatha Faro, Bianca Victal, Brisa Carrilho, Carol Rasslan, Dayanne Amaral, Edmárcio Júnior, Edson Hayzer, Elias Bouza, Filipe Bruschi, Grey Araújo, Helbert Pimenta, Janaina Castro, Karen Rangel, Luan Batista, Lucas Saraiva, Malu Figueirôa, Mariana de Rosário, Rafael Bittar, Rafaela Fernandes, Sílvia Gaspar, Williene Sampaio e Yasmin Almeida.
Trilha Sonora: MetáMetá
Figurino: Maria Luiza Magalhães
Coordenador técnico: Gabriel Pederneiras
Diretor artístico: Paulo Pederneiras