– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras – UFMG/CNPq
Um coro de vozes, performance, rito… Open choir…
O espaço é completo por sonoridades de vozes múltiplas, potentes e polifônicas…
Um homem, Mario Biagini, inicia a performance-rito entonando, com uma voz vigorosa, um canto que logo se transforma em coro de vozes singulares e que, imediatamente, mexe com a “plateia” presente; são vozes fortes e com timbres distintos. A sala – “palco” / espaço da ação performática[1] – organizada para receber o público participante do evento oferece cadeiras confortáveis em seu entorno, sendo que aproximadamente a metade da audiência (cerca de umas 20 pessoas) é composta por senhores e senhoras da comunidade do Bronx. Com este homem, que continua cantando e envolvendo todos os presentes com sua voz pujante, mais quatro mulheres, Agnieszka Kazimierska, Felicita Marcelli, Graziele Sena e Pauline Laulhe, também com vozes singulares e timbres diferenciados, vão tomando a palavra, ou melhor, o [en]canto, e vão dando outras corporeidades sonoras para as canções tradicionais – hinos e louvores – e para a performance-rito. É criado um jogo performativo em que o público presente vai ganhando [apropriando-se do] o centro da sala/palco, integrando-se a cada ação/canto proposto, emprestando a sua voz, a sua corporeidade e, assim, aos poucos, todos os presentes vão dividindo o protagonismo da ação/rito com os cantores-performers.
I heard the angels singing…
Qual o alcance da performance? Qual o lugar do corpo?
Sempre retomo esses questionamentos por acreditar que mantê-los em consideração potencializam a minha escrita acerca dos alcances e os lugares da performance em nossa contemporaneidade. Participar como público do ”Open Choir” do Workcenter sem dúvida me possibilitou ampliar e amplificar o meu entendimento e a discussão que venho empreendendo sobre o lugar da performance na arte. O Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards Open Program é uma companhia radicada na Itália com artistas de sete nações diferentes, falando oito línguas diferentes[2]. Parte deste grupo tem viajado para Nova York duas vezes por ano, desde 2012, buscando criar encontros significativos entre pessoas de diversos setores sociais. Como grupo, eles têm como objetivo fazer uma mudança positiva neles e no mundo que os rodeia. O ”Open Choir” é uma ramificação de um dos projetos do Workcenter e, em 2017, “foi realizado entre os dias 27 de julho e 8 de julho de 2017, sendo que o seu objetivo foi dedicado ao encontro com pessoas que tinham o desejo fazer parte da criação de um evento performativo, conhecer uns aos outros, trocar estórias e aprender histórias.”[3] A integrante do grupo, a atriz mineira Graziele Sena, por meio de uma mensagem via e-mail, me fornece maiores esclarecimentos sobre o trabalho, explicitando:
”Começamos a fazer Open Choirs em 2014 na West Park Presbyterian Church e outros locais de NYC, fizemos também no Brasil, em 2015, no estado São Paulo, na França e por fim Itália, onde atualmente estamos conduzindo um projeto maior, que começou em 2016, que se chama “Invito ao Canto” e inclui Seminários Livres, Encontros Cantados e Open Choirs. Essas informações estão disponíveis em http://www.theworkcenter.org/open-choir/ e http://www.theworkcenter.org/invito-al-canto/.
O prospecto que você recebeu foi desenhado para uma comunicação rápida e simples, não tem muitos detalhes, é basicamente um convite. Mas o que está descrito nesse prospecto é que se trata de um projeto que estamos realizando com os nossos parceiros de NYC, o projeto se chama “Will Be Heard”, acontece em 2 fases, sendo a primeira fase essa visita que fizemos de 26-06 a 09-07, onde fizemos uma série de encontros tanto com os nossos parceiros, quanto com pessoas interessadas em participar da criação de um novo evento performativo, ou seja, Will Be Heard, essa criação vai acontecer na segunda fase do projeto de mesmo nome, de 26-09 a 04-11. O Open Choir do qual você participou é uma continuação de outro projeto chamado “Open Choir Moviment”, que existe desde 2015 e agora, provavelmente, se fundirá com “Will Be Heard”. Enfim, o Open Choir do dia 08-07 foi um encontro com velhos amigos que já participam desses eventos, desde 2015, e pessoas que encontramos durante essa primeira fase do “Will Be Heard”. Continuamos a procurar pelo momento de encontro e contato significativo, buscando a interação e estreitamento das relações com a comunidade, a criação de um evento que ultrapassa barreiras culturais e socioeconômicas, e a possibilidade do encontro uns com os outros sem medo.”
O lugar de desenvolvimento, realização e execução do ”Open choir” a que tive acesso em 8 de julho de 2017 é o Bronx e o espaço no qual foi realizada a ação/performance/rito, como mencionado, é uma sala do Andrew Freedman Home. Pensar na grandiosidade arquitetônica do lugar e na sua atual utilização como espaço de divulgação de cultura em si já é uma possibilidade de observar a ação e o alcance do ato performativo proposto, assim como representa a casa que recebe a comunidade oferecendo-lhe várias oportunidades de entretenimento e de intervenções sociais. Os participantes do Workcenter transformam a música em espaço de fruição artística, de encantamento e de “libertação” do corpo e de suas linguagens sinestésicas.
Ver o grupo em cena, ou melhor, ressignificado e ressignificando a cena, amplia e dissolve o lugar da “representação”, demonstrando assim que uma das ferramentas sociopolíticas da performance é diluir fronteiras. Os cinco integrantes do grupo – Agnieszka Kazimierska, Felicita Marcelli, Graziele Sena, Pauline Laulhe e Mario Biagini – conviveram por quase duas semanas com moradores representantes da comunidade do Bronx, conversaram, fizeram dinâmicas, escutaram depoimentos e trocaram histórias e experiências. Sendo o ‘‘Open Choir” o resultado performativo para fechar uma etapa do Programa do grupo Workcenter em 2017, que retornará à cidade entre o final de setembro e o começo de novembro para criar outra apresentação.
I’m waiting on you…
Sem nenhuma imposição, quase todos os presentes na cena-rito estão descalços, fato que me faz aproximar ainda mais o que vejo a um rito performativo. O contato com o chão (com a terra, ainda que, neste caso, artificial, pois não se trata da terra como primeira instância e território, mas como possibilidade telúrica de encontro com o sagrado que emana das matrizes negro-africanas e afro-americanas) permite que os performers e o público presente busquem uma ligação etérea com as canções que vão sendo entoadas, vivenciando assim uma prática de convívio. As pessoas mais velhas do público observam tudo com muito encantamento, elas se atêm a cada gestualidade, mexem as pernas, batem palmas, balançam os corpos e se emocionam, muitas vezes, cantando e/ou vocalizando cada refrão…
Everthing is moving by the power of God…
Performance é convívio, é compartilhamento de uma ação, é jogo, é rito, tudo e todos em jogo e em estado de jogo. Nos corpos dos sujeitos ali presentes – brancos e negros – o que se observa é que todos estão conectados em prol de vivenciar aquele momento, e a música é o veículo performativo e propulsor de todos os afetos e sentimentos que vêm à tona para cena e pela cena performativa. As sonoridades do gospel / spiritual são mescladas à ritmicidade e musicalidade dos rituais afros (candomblé / umbanda), um cajado é utilizado pelos performers para dar cadência ao rito, que também nos remete a uma roda de samba, de jongo, de maracatu e/ou a jogo de capoeira. O que se observa no rito performativo do Workcenter é uma multiplicidade de influências físicas que são trazidas para a cena. O movimento é dinâmico e os cânticos evocam, a partir da corporeidade dos cantores-performers e do público que se envolve no [e com o] rito, outras corporeidades. Em resposta a Stanislavski, Jerzy Grotowski assevera:
”Quando eu trabalhava com um ator não pensava nem no “se”, nem nas “circunstâncias dadas”. Existem pretextos ou trampolins que criam o evento performativo. O ator se remete a sua própria vida. Não busca no âmbito da “memória emotiva” ou do “se”. Recorre ao corpo-memória, não tanto à memória do corpo, mas justamente ao corpo-memória. E ao corpo-vida. Recorre assim, pois, a experiências que foram verdadeiramente importantes para ele e a experiências que [ele] ainda espera que cheguem, que ainda não passaram – às vezes, a lembrança de um instante, daquele único instante, ou séries de lembranças nas quais se encontra algo imutável”.4]
É este “corpo-memória”, este “corpo-vida” que se observa no Open Choir, ação ritualística do Workcenter.
Where are you from?..
Entrar e sair… Permitir-se entrar e sair… estar ali naquele momento e espaço… Dividir com todos ali presentes o corpo-memória inerente a cada sujeito. Todos estão livres para entrarem na roda, para se integrarem ao rito quando e como quiserem. Distanciado, eu vejo pessoas da comunidade chegando atrasadas e afoitas, deixando as bolsas e pertences, entrando no centro da sala para se integrarem ao rito musical. A música aqui é o néctar para energizar o corpo-memória-vida, para ativar e avivar as corporeidades.
Uma integrante puxa um spiritual, todos os presentes vão sendo transformados pela sua performance, pela sua corporeidade e pela sua voz que vai acionando as memórias individuais e coletivas dos presentes. Percebe-se que as pessoas se sentem completamente dentro do rito, como se estivessem em “transe”, e eu, de repente, observo que uma senhora, que chegou no meio da ação-rito e que ficou um bom tempo ao meu lado apenas observando tudo até se sentir à vontade para entrar na roda, inicia um pranto copioso e precisa ser amparada por uma das participantes do Workcenter. Outra abrangência da performance: alterar os estados dos corpos. Todos ali presentes estavam vivenciando a música e o rito performativo, mas, como o alcance do rito performativo é inexplicável, aquela canção “chegou” naquela mulher de forma diferenciada, acionando algum “lugar” recôndito de seu corpo-vida, levando-a ao pranto.
Quebra, ruptura… há que se manter atento ao rito…
A integrante que puxou o spiritual começa emitir uma vocalidade aguda como se gritasse, talvez como uma reação ao pranto da senhora, ou como se tivesse retomando o controle de seu também “transe” interno. Ela volta para o jogo…
”Inside/outside
I, I am?
I who?
I, from where?
Mine, Yours
What a wonderful home
Look for the living
Inside, outside
Who is talking
You who?”
São palavras (canção e ação física) paradoxais, em princípio, mas pronunciadas e repetidas sem perder a cadência da musicalidade e do rito. No entanto, depois de quase uma hora de ação performativa, o rito deve ser concluído temporariamente…
O pesquisador [eu que não me atrevi a entrar “fisicamente no rito”, que apenas me permiti assisti-lo, vivenciando-o a partir desta perspectiva] fica dançando por dentro, remexendo, brincando consigo e com suas memórias afetivas… Experienciar o rito, escreviver com os [meus] sentidos, fazer e vivenciar o [meu] ritual performático… Ali na cena, os corpos deles, plenos de vocalidade e musicalidade; o meu, na cadeira ao fundo de uma das laterais da sala, observando e emocionado com tudo que o meu corpo pode viver e escreviver naquele dia e espaço, encantado com os Bakulos ali presentes, pleno de afetividade e de emoção…
O rito performático cumpriu a sua função para todos ali presentes, que começam a se cumprimentar, se abraçam, trocam mensagem, comentam sobre o que experienciaram…
Open Choir. Open to all encounter through song. [Coro Aberto. Aberto a todos os encontros por meio da música.] Assim enunciava o cartaz na entrada do espaço… assim o coro-ação-rito-performático continua reverberando em mim…
FICHA TÉCNICA:
Open Choir
Participantes: Agnieszka Kazimierska, Felicita Marcelli, Graziele Sena, Pauline Laulhe e Mario Biagini
Realização: Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas Richards
Local: Andrew Freedman Home
Data: 08/07/2017
Hora: 18 às 20h.
[1] Sala dentro do Andrew Freedman Home, que é um centro comunitário localizado no Bronx e que desenvolve trabalhos com enfoque nas artes, dança, música e performance. O Andrew Freedman Home é um edifício histórico construído para Andrew Freedman que foi renovado em um hotel e é considerado um marco da cidade de Nova York. O dinheiro para a sua construção foi legado por Freedman. Localizado em Concourse, no Bronx, o lugar foi projetado como uma casa de aposentadoria para indivíduos ricos que perderam suas fortunas. O grupo que operou o Andrew Freedman Home ficou sem dinheiro na década de 1960. Em 1983, a casa foi reaberta para todos os indivíduos idosos, independentemente do estado financeiro. A partir de 2012, o Andrew Freedman Home serve como um centro cultural e um espaço para eventos.
[2] Informação disponibilizada em um Prospecto distribuído pelo grupo. Maiores informações disponíveis na página web do grupo http://www.theworkcenter.org/.
[3] Idem.
[4] “Cuando yo trabajaba con un actor no pensaba ni en el “qué si”, ni en “las circunstancias dadas”. Existen pretextos o trampolines que crean el evento performativo. El actor se remite a su propia vida. No busca en el ámbito de la “memoria emotiva” o del “qué si”. Recurre al cuerpo-memoria, no tanto a la memoria del cuerpo, sino precisamente al cuerpo-memoria. Y al cuerpo-vida. Así pues, recurre a experiencias que fueron verdaderamente importantes para él y a experiencias que aún espera que lleguen, que aún no han pasado –a veces el recuerdo de un instante, de aquél único instante, o series de recuerdos en los cuales se encuentra algo inmutable.” (Tradução minha de uma versão em espanhol publicada em Dosier: Grotowski. Respuesta a Stanislavski. Jerzy Grotowski. p. 334-335. Disponível em: http://www.raco.cat/index.php/EstudisEscenics/article/viewFile/253349/340115. Acesso: 12/07/2017.)