– Por Brenda Campos-
(Foto de capa: Guto Muniz).
No dia vinte e cinco de setembro de dois mil e vinte e quatro, foi publicada pelo Galpão Cine Horto e pela plataforma Horizonte da Cena, a crítica de Guilherme Diniz sobre a cena curta Receita para um teatro infantil https://galpaocinehorto.com.br/portfolio/festival-cenas-curtas-25anos/, apresentada no dia anterior, na abertura da 25º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, pela Insensata Cia de Teatro. Senti-me fortemente mobilizada a escrever uma resposta, no sentido de possibilitar a continuidade de um diálogo urgente e da maior importância, que tange às artes e às infâncias em nosso país. Nesse sentido, agradeço ao Galpão Cine Horto e à curadoria do 25º Festival de Cenas Curtas, pela importante atitude de pautar um trabalho que suscite esta discussão, e ao próprio Guilherme Diniz pela abertura deste diálogo. Pois bem, começarei este exercício de contracrítica evocando dois verbetes do dicionário Aurélio de língua portuguesa.
Caricatura: substantivo feminino. 1. desenho de pessoa ou de fato que, pelas deformações obtidas por um traço cheio de exageros, se apresenta como forma de expressão grotesca ou jocosa. 2. figurado reprodução deformada de alguma coisa.
Receita: 7. [Culinária] Fórmula que indica os ingredientes e o modo de preparar um prato.
Penso ser necessário começar meu contra-argumento explicitando o que me parecia óbvio: a proposta da nossa cena curta era ser um deboche. Era a de evidenciar por meio do exagero tosco, da deformação, da jocosidade, a relação de poder envolvida no trato adulto-criança e que ainda hoje reverbera sim no teatro infantil. E muito ainda precisa ser feito para essa desconstrução.
Claro que conhecemos e celebramos muitas e maravilhosas iniciativas que despontam na cena entre infâncias e que só se multiplicam, por atuar na curadoria e proposição de trabalhos que fogem aos rótulos apresentados em Receita para um teatro infantil, como você bem observou, e também por sermos mãe e pai. Entretanto, este continua sendo um território permeado pela censura, pelas fórmulas e pelos apelos de mercado, e eu não faço arte a favor. Não existe arte a favor, como diria Millôr Fernandes. Estamos aí para denunciar, não é mesmo? Os tabus – temáticos ou estéticos – podem ser óbvios mas também muito, muito sutis, como aqueles que costumam andar junto com a ideia distorcida de proteção. A despeito de toda a produção, pesquisa e festivais que se propõem a investigar novos caminhos, a censura já pode começar pelo adulto que escolhe onde levar a criança.
No lugar da curadoria, da criação artística e da coordenação pedagógica, estamos sempre administrando as questões referentes à censura de mães, pais, cuidadoras, educadoras e educadores que querem garantir o cerco ao contato das crianças com questões urgentes e sensíveis, as mais diversas. Nesse sentido, acho extremamente importante que a gente consiga se comunicar. Não apenas com as artistas e pesquisadoras, mas com as famílias e redes de apoio, com a sociedade em geral. Encher as plateias da Insensata e dos festivais dos quais a gente participa ou realiza de artistas e filhos de artistas é maravilhoso e importante, mas precisamos furar nossa bolha. Nesse sentido escolhemos, com esta cena, abordar três grandes paradigmas que rondam o teatro infantil: o excesso de didatismo, o apelo mercadológico e o menosprezo ao potencial intelectual e sensível da criança.
Então vamos falar sobre as relações de poder. A começar por aquela envolvida no exercício de uma crítica, que pode contribuir, mas também pode diminuir bastante a força de um trabalho, configurando encontros capazes de produzir afetos felizes ou afetos tristes, como sugere Espinosa. Em um festival que se quer lugar de acolhimento, onde artistas sintam-se encorajadas a arriscar, devo confessar que, em um primeiro momento, me senti bastante acuada com a crítica publicada. Em seguida, veio o desejo de resposta. Sobre “não compreender bem as razões que levaram a direção da cena a construir, para a atuação do menino Francisco, uma postura tão autoritária e impositiva, reproduzindo, inclusive, um certo estereótipo de diretor teatral prepotente” você poderia perguntar isso para ele – se ele estivesse aqui. Posso responder da minha parte, uma vez que a outra parte da direção – o próprio Francisco – não está presente na tessitura desta contracrítica. Da minha parte volto outra pergunta: Você costuma ver crianças nessa condição de poder? Não acha que, no contexto de uma cena que se quer uma caricatura – pode ser uma atitude política colocar a criança nesse lugar, ao passo em que a mãe “tenta desesperadamente agradar o seu filho”? Não por acaso estamos investigando há algum tempo a possibilidade dos contradispositivos cênicos. Máquinas de “fazer ver” e “fazer falar” (para usar termos de Deleuze) as vozes silenciadas, na busca de inverter as relações de poder estabelecidas, especialmente, nos interessa subverter as relações adulto-criança e artista-público. O microfone na mão do Francisco é um contradispositivo e não cabe a mim – e, me desculpe, nem a você – dizer o tom que ele tem que falar quando está com o microfone nas mãos! Na Insensata trabalhamos com direções coletivas. Nunca recorremos aos benefícios dos quais poderíamos gozar pelo apadrinhamento de um nome respeitado na cena teatral mineira – ou brasileira – por um ideal democrático que nos acompanha desde sempre. Inclusive esta é uma direção coletiva – minha e do Francisco. A construção do Francisco de um diretor autoritário em alguns momentos não corresponde à nossa prática, mas, talvez, deixe emergir a forma como ele se sente na relação com as pessoas adultas e tenha encontrado nesta oportunidade a chance de viver outro papel e virar o jogo.
Nesse mesmo sentido, penso que a leitura da proposta não soube ler nas entrelinhas as “críticas necessariamente mais complexas e novas sobre o tema”. Espanta o fato de que alguém que esteja buscando um pensamento aprofundado no território das infâncias não ter considerado, em tempo algum, o processo de coautoria envolvido no trabalho. Francisco não apenas performa o diretor, ele é o diretor, o dramaturgo e o ator do trabalho. A ideia de Receita para um teatro infantil surgiu numa conversa descontraída e despretensiosa entre mãe e filho, na varanda de casa e imediatamente começamos a confabular. Assim, Francisco trouxe suas próprias referências. A máscara do Darth Vader por exemplo, gasta de tanto brincar, saiu do baú de brinquedos de quem já maratonou toda a saga Star Wars incontáveis vezes. Menino doce e delicado, Francisco sempre preferiu os vilões, tendo tido aniversários com temas inusitados como lobo mau, bichos escrotos, lobo guará e o próprio Darth Vader. Aliás, quando coloca a máscara e quebra a Alexa que responde à pergunta que realmente foi feita ao Chat GPT (o que reforça, mais uma vez, a necessidade e urgência das críticas feitas por esta cena), é o próprio sistema que Francisco deseja estraçalhar. Fico a me perguntar de onde vem esse incômodo todo com a construção de uma criança de oito anos. Será que por revelar que a infância é também o lugar da crueldade? Ou pelo ataque implícito à figura do diretor autoritário – o DEUS do teatro?
Por fim, Receita para um teatro infantil quis mostrar o que não fazer. Quer saber das possibilidades que a Insensata tem investigado no caminho (um dos possíveis!) que achamos interessante? Deixamos aberto o convite para assistir aos espetáculos ou comparecer aos festivais e conhecer melhor o nosso trabalho!
(Ah! Vai ter Chuá! dias 4, 5 e 6/10 no Palácio das Artes! Vem com a gente!)