— por Luciana Romagnolli —
No calor da primeira noite do 16º Festival de Cenas Curtas, uma questão emergiu dos contrastes entre discursos e corpos que transitaram pelo palco do Galpão Cine Horto: a normatização (ou normalização). Isto é, aquilo que regula, adéqua a uma norma, dociliza e restringe os corpos dentro de uma estreita margem de ação da performance de gênero – o que seria o homem ou a mulher – e da própria performance social e sua movimentação no espaço. Essa indagação incide sobre o tema do festival neste ano , “Diversos Sempre Fomos”, e vem à tona provocada pelas infiltrações da Trans Residência Experimento Queer nos intervalos entre as cenas, convidando os corpos presentes a experimentarem desvios do padrão normativo de comportamento.
Nesta primeira noite, mesmo entre os artistas residentes, esse impulso ao deslocamento da norma (do “normal”) concretizou-se ainda mais pelo discurso do que em ações ou imagens que efetivamente ampliem no nosso imaginário os possíveis desses corpos e de seus modos de se mover no mundo; seja por uma dificuldade ainda de contaminação dos espectadores, seja por desviar pouco em relação ao que já se tem visto com frequência na cena artística belo-horizontina, como num show de Marcelo Veronez para o grande e diverso público da Virada Cultural, por exemplo. Ainda que este, talvez, seja um mérito da parte dos artistas da cidade já dedicada a desconstruir moralidades impressas em corpos e comportamentos.
No recorte das quatro cenas apresentadas, entretanto, preponderou o revisitar de padrões de gênero e de procedimentos estéticos, aos quais bem cairia uma margem maior de desvio para mobilizar a sensibilidade do espectador e deslocá-lo de sua zona de conforto e de conhecido. O que disciplina os corpos? Quais parâmetros sociais e culturais se repetem? Repeti-los é o que se quer? Com ou sem crítica? Com ou sem disrupção?
Primeira cena a encontrar o público, “Como Ele Mentiu para o Marido Dela”, de Fortaleza (CE), é uma comédia satírica que regurgita elementos da cultura pop sob o signo pós-moderno (ou hipermoderno) do processamento de referências acumuladas e de diversidade de linguagens, sob um tratamento pretensamente amador, próprio de um humor cínico que – para ficar na definição do Houaiss – se baseia “na convicção de que não é possível conciliar leis e convenções estabelecidas com a vida natural autêntica e virtuosa”. Os artifícios, então, tomam a cena por intermédio de falseamentos vários, como o disfarce, a dublagem e a temática da traição.
Contrasta a profusão de linguagens arroladas para contar a história com a previsibilidade da trama, de contornos moralistas (talvez não o fossem em 1904, quando Bernard Shaw a concebeu, ou trata-se da adaptação), repetindo esquemas de relações amorosas superficiais vividas por corpos hipernormatizados. O efeito cômico, quando vem, é justamente desse cambiar constante da representação farsesca para a dublagem, da fotonovela pop para os teatros de sombra, das desproporções das sombras humanas para a animação de mãos-animais. Em que medida essa composição de discursos estéticos e temáticos efetiva uma crítica ao artificialismo, ao consumismo e à superficialidade desses modelos comportamentais ou em que medida somente os reforça, por meio de um riso conciliador?
Um ponto interessante para se pensar isso é o uso da pop art, estilo que surgiu no contexto dos anos 1950 com potencial crítico à sociedade consumista, de um cotidiano banalizado e esvaziado. Como é próprio de nossa formação social, contudo, os movimentos que a criticam são rapidamente absorvidos e reinterpretados de modo a esvaziar-se o potencial crítico deles – que o diga o punk de boutique. Com a pop art, não tem sido diferente. E a apropriação que se faz dela em cena, transformando Roy Lichtenstein em uma montagem melodramática, segue esse movimento de descarregar o que havia de confronto, questionamento e ironia, em troca da zombaria infantilizada, que é também um comentário sobre o estado social atual, mas não deixa de repeti-lo. Quando rir do clichê basta para que se tome distancia crítica dele? Como ser contemporâneo aderindo a todas as luzes de um tempo acelerado de consumismo e infantilização? Talvez falte a ambivalência, como havia na pop art dos anos 1960, mas já perdida na absorção dos contrafluxos.
“Todas Elas Musas”, de Belo Horizonte, retoma ao menos dois aspectos da cena anterior – a ambientação em Londres e o recurso à dublagem – para contar a história de um triângulo amoroso por trás de músicas de Eric Clapton e George Harrison (uma fonte sobre isso é o livro “Músicas & Musas”). O que a dublagem diz do nosso tempo enquanto estética? Parece acionar um espaço ao mesmo tempo real (da voz gravada) e ficcional, mas, sobretudo, falar daquilo que se diz por nós, dos discursos repetidos, das colonizações incorporadas. É o ser e não ser da cultura pop, o jogo com a identidade, tão performativo e teatral.
Armada como um programa de rádio, entre a radionovela e o fetiche por celebridades, a cena-narrativa dirigida por Luiz Arthur, com dramaturgia coletiva, ecoa o fascínio pela figura do artista e o discurso romântico da musa, apresentada por Ana Paula Torres com debochada ingenuidade e capaz de gerar efeito cômico, embora ainda demonstre dificuldade em sair da faixa de humor descolado e atingir a profundidade emocional solicitada pelo momento do monólogo sentimental da personagem Pattie Boyd.
Muito provavelmente não esteja no horizonte de questões dos criadores uma preocupação como esta, mas, no conjunto do que se viu na primeira noite de festival, sobressai novamente certo tratamento infantilizado da personagem feminina, assim como uma colonização dos corpos por um modelo eurocentrado.
Por outro lado, a cena cresce em função das escolhas estéticas: a luz, entre o azul e o vermelho, que recobre o espaço de uma aura romântica propicia às histórias contadas; o manejo do tempo, que envolve o espectador sem pressa, cria uma sincronia de repetições ritmadas e proporciona o timing para um humor mais sutil; o formato do programa de rádio, que sustenta a encenação; a segurança de Ítalo Mendes e Thaís Coimbra na aproximação desse universo de estrelas da cultura pop, além da linda voz dela; e a habilidade em instaurar a atmosfera pretendida por meio das músicas e da caracterização física dos atores.
Vinda de Brumadinho, “Safena” adentra o universo feminino por caminhos já bastante percorridos no teatro. É fácil lembrar, por exemplo, do poema cênico solo de Julia Branco, “Diário do Último Ano”, apresentado no Festival de Cenas Curtas de 2012. Lá e aqui estão os corpos dessas mulheres angustiadas, cuja interioridade se expressa, no nível do discurso, pela poesia lírica, e no nível dos corpos, por um perder-se como modo de se deslocar no espaço cênico. O vestido como representação da mulher – ou as trocas de vestidos, para evocar várias delas – também parece ser um elemento recorrente que responde rapidamente à busca por uma suposta imagem-síntese de um feminino. Qual é a norma que o rege? O que ainda tem a nos mostrar que ainda não detemos?
A beleza dos sentimentos convertidos em imagens pela escritora mineira Ana Martins Marques no poema “Tenho Quebrado Copos” apresenta-se como um desafio para a encenação desses versos. Quando as palavras já carregam tanta força emocional, poética e imagética, de uma densidade própria e de uma delicadeza incomum que só poetas alcançam, como não fazer dos corpos e dos objetos meras sombras desse ideal platônico? Seria preciso, talvez, encarnar as ideias com o vigor dos corpos ou fazer do palco dança, essa poética da carne em movimento.
Dirigida por Patrícia Manata, a atriz Raquel Pedras atinge esse estado de desnorteamento dos sentidos e da razão na cena final de “Safena”, com a imagem-metáfora do coração-balão. A ação se reduz ao mínimo, o respirar, e faz desse ato trivial um drama vital que modifica a percepção do tempo e do corpo. Sintetiza a angústia e encontra a potência inversa do quase nada.
A vitalidade diluída nas cenas anteriores explode em “Feito de Som e Fúria”. A corporeidade desviante, num sentido libertário, aparece nos movimentos quebrados dos bboys, que desarticulam os membros do corpo e desobedecem a gravidade e a estabilidade física performando passos de alta dificuldade, que seguem uma técnica marginal à chamada alta cultura – cuja polaridade com a baixa cultura já há um século vem sendo desconstruída de modo a desfazer os prejulgamentos de valor dessa oposição, embora não deixem de conviver éticas pré e pós-modernas na produção artística atual.
A cena dirigida por Rodrigo Pinheiro Peres faz a travessia da arte do asfalto para o palco. É, dentre as cenas da noite, a mais desencaixada de modelos prévios sobre o que se espera ver no teatro, mas ao qual este se abre como campo expandido, interessado não em instaurar limites mas deslocá-los, num diálogo com formas artísticas menos institucionalizadas. E o que se consegue vislumbrar ao trazer uma arte da rua para o edifício teatral é a complexidade da composição, o rigor artístico e a extrema habilidade dos bboys, que recombinam as possibilidades de relação entre corpo, tempo e espaço, como quem remodela a gramática e a sintaxe do movimento socialmente normatizado, e manipulando uma alta carga energética.
Além disso, “Feito de Som e Fúria” traz à cena a representação do sujeito em situação de rua, da marginalidade determinada pelo desencaixe em um sistema capitalista. Em outra chave, menos identificada à performance e às discussões de gênero, ecoa a paisagem urbana e humana trazida ao Festival de Cenas Curtas do ano passado em “Não Conte Comigo para Proliferar Mentiras”. Assim cria um fundo dramatúrgico, poético e político para a cena de dança, espaço de expressão e agência para corpos estigmatizados.