— por Joyce Athiê —
Crítica a partir dos trabalhos apresentados na segunda noite do 17º Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, realizado entre 15 e 18 de setembro de 2016, em Belo Horizonte (MG).
O segundo dia do Cenas Curtas permanece trazendo trabalhos carregados de posicionamentos políticos, quase todos eles empenhados em colocar luzes nos sujeitos oprimidos e marginalizados. As micropolíticas – que de micro têm apenas uma função didática – estão no palco, na interação discursiva e estética do teatro. Mas o que chama a atenção na noite é a diversidade de gêneros e linguagens, passando pelos bonecos, pela dança, pela escrita vivencial e pela presença marcante do audiovisual.
O boneco apareceu em “Redescobrindo Lautrec”, de São Paulo, e instaurou o clima
Interessante ver em “Redescobrindo Lautrec” a relação entre a marionete e a marionetista. Se, em algumas propostas, o desejoso é que o manipulador desapareça da cena para que o público se concentre na magia do boneco e imerja naquela realidade construída sem interferências que possam dizer que aquilo é uma fantasia, na cena em questão, o oposto é que se faz relevante. A revelação do processo que dá animação ao boneco cria outra relação e outros códigos que vão além da mera exposição das “engrenagens”. A interação e as trocas que ocorrem, colocando marionete e marionetista em interação, é o que constrói uma linha de mutualidade, de preenchimento, de comunhão – de doar-se.
A atriz não apenas se torna extensão do boneco, como explora essa relação quase de completude. Corpos do boneco e da marionetista precisam estar em consonância, mas, quando propositalmente não estão, apenas enfatizam a necessidade um do outro. A relação de intensa intimidade que se estabelece ganha um grau de cumplicidade em que as pernas de um tornam-se as pernas de outro. Para seguirem, precisarão estar juntos. Indo um pouco além da relação entre atriz e boneco, as interações que ali ocorrem levam a pensar na necessidade do viver a partir das trocas, de só ser possível constituir-se enquanto sujeito na alteridade. “A felicidade só é real quando compartilhada”, afirmava “Na Natureza Selvagem”.
Em um trabalho em que a alteridade é explorada pela necessidade da comunhão dos corpos (e também do choque entre eles, vale dizer), chama a atenção a presença da deficiência, representada pela personagem cega e pelo corpo transformado (no caso, por acidentes e doenças), em que altura, pernas e postura levam à dificuldade na forma de se movimentar. Em tempos de representatividade e de buscas pelo respeito aos corpos diversos, a deficiência e a anatomia acidentada chamam a atenção para os outros sujeitos que ainda permanecem fora da cena. Ao boneco de Lautrec, olhamos com afetividade e encantamento. Mas como olhamos e nos relacionamos com os corpos transfigurados?
O que eu deixo para o grupo seria apenas um apontamento sobre a possibilidade de trazer para o público um pouco mais de quem foi o homem e o artista a quem o cena presta uma homenagem, sem pretensão de com isso tornar o trabalho didático. A biografia de Lautrec e os trabalhos artísticos desenvolvidos angariam uma série de informações que poderia reforçar os sentidos postos no trabalho, assim como agregar novos valores. Não se trata de narrar a vida do pintor, mas de levar em maior grau aspectos, pensamentos e reflexões de sua biografia e obra. Inevitavelmente, a cena desperta o interesse pelo conhecimento mais profundo de que ideias pintou Lautrec, informação interessante não apenas pela curiosidade, mas pela importância que teve seu trabalho de representação das mulheres, das artistas, das prostitutas e do mundo dos cabarés.
Dos bonecos para a dança, “Casulo”, de Campinas, chama a atenção pelo trabalho corporal da bailarina Letícia Rodrigues, de grande vigor, força energética e habilidades físicas que a possibilitam construir com o corpo imagens e movimentos de muito expressivos. Da representação do animalesco surge uma mulher, evidenciando proximidades entre esses corpos em que um nasce do outro e retorna, por fim, em um mesmo movimento para o corpo do bicho. O gesto e a construção dessa “mulher meio bicho”, “entidade meio humana” vão também refletir sobre a androginia, sobre esses que não se encaixam em binaridades e se postam múltiplos de possibilidades. Dentro da temática da cena, pautada pela cultura negra e centrada em uma cerimônia de valores religiosos, torna-se interessante pensar nos orixás como essa representação que irá trazer reflexões tão caras e atuais sobre a multiplicidade de corpos.
Um trabalho marcadamente forte e impactante quanto à performatividade da bailarina, capaz de rodopiar incontáveis vezes, num ritmo de aceleração que, aliado às sonoridades e ao trabalho com os tecidos, chega a entorpecer o olhar. Esses elementos – corpo, música e vestimentas carregadas de simbologia e circularidade – vão apontar para a ritualidade do que é a representação cênica, ao mesmo tempo em que revelam o que há de diálogo com a teatralidade e a dramaticidade em rituais de cerimônias culturais e de cunho religioso. A construção passa por um ritual em que corpo e música percorrem um caminho de vivências e transformações, uma espécie de parto, o jogar-se na terra retratando a importante relação com elementos naturais e o círculo, formação presente em diversas danças em que a roda ganha representação da terra, da natureza e de valores sagrados.
Em termos musicais, é interessante notar o uso de outras potencialidades do violão, de onde se tiram sons da natureza, barulhos de choque ou lampejo e outras sonoridades que não parecem vir do instrumento. O som percussivo, de grande importância para a cultura a que a cena se refere, aparece mais discreto, chamando a atenção quando as batidas são trabalhadas pela sutileza.
Dito sobre a beleza e o apuro estético do corpo e dos movimentos da cena, o trabalho deixa um incômodo digno de abertura para uma profícua reflexão e o entendimento do pensamento e dos desejos dos artistas. Não é possível ver o trabalho e não se questionar sobre o que está fazendo um corpo branco mergulhar em uma cultura que, aparentemente, não diz de seu lugar, como é, no caso, a cultura iorubá. Olhando apenas para a cena, sem compreender ou ter informações sobre a trajetória dos artistas, as relações e os laços que estabelecem, as formas como são atravessados por uma cultura originariamente de um povo africano, fica o estranhamento provocado pelo branco como sujeito daquela história.
Certos de que na travessia pelo Atlântico a brasilidade também se mistura com traços e valores culturais como a umbanda e o candomblé, espaços hoje abertos ao encontro de sujeitos de toda sorte, ainda assim, a cena representada – mesmo que majestosamente – por um corpo branco abre um campo rico para a reflexão sobre lugares de fala e apropriações. Qual a intimidade e o entendimento que se tem quanto a questões sagradas para outros povos como a fumaça de um cachimbo? Ou mesmo traços identitários tão referentes ao pertencimento como o cabelo?
Posto, novamente, que é preciso ouvir os atravessamentos que permeiam os artistas em questão e evidenciando o meu próprio lugar de enunciação que pouco dialoga com essa cultura, a cena pede para ser ouvida além do que se leva ao palco. Por que imergir nesse lugar? Onde está o corpo negro que tanto já reclamou seu espaço de protagonismo e está ativo para ocupá-lo? Fazendo uso dos privilégios, de que forma refletir e abrir espaço para algo que se simpatiza e se identifica? E, no campo do “e se”, o que seria a cena se realizada por negros? Quais outros sentidos, forças e potencialidades poderiam surgir?
Em seguida veio “Eu”. “Menina, entra aqui na loja para limpar seu vestido. Aquele homem ali passou por você e cuspiu na sua bunda”. Não era cuspe. Foi a lembrança desse episódio que a cena de Andréia Quaresma me trouxe como compartilhamento de situações vividas por ela e por tantas mulheres. Outros tantos casos poderiam ser lembrados, assim como tantas outras formas de violência a que a cena também faz referência. Quando Andreia fala, ela abre uma janela de conversa que diz: “eu sei, irmã, do que você está falando”. O trabalho biográfico é uma denúncia de uma realidade que ganha outras vozes.
Assim, pautado na trajetória da atriz, a cena ganha tanto elementos específicos daquela vida quanto enuncia marcas comuns a outras mulheres. Com o que pode ou não pode se identificar uma menina, de que modos deve se comportar, as barreiras que são construídas e as dificuldades de transpô-las para entender quem se é e não o que esperam que você seja. Embora a descoberta da feminilidade ser representada pelo tubinho preto e salto alto na boate me faça perguntar pelas outras mulheres que se deixam revelar por outras formas, é libertador ver a dança, o desbunde, a cachaçada e o riso alto e entender no trabalho a especificidade da biografia que não intenta abraçar tudo aquilo que não é possível.
Pressões de toda ordem, a cena gera ainda maior impacto ao trazer o sangue feminino e o envelhecimento como outras temáticas a serem discutidas quando o assunto é a mulher, novamente, pensando nas especificidades daquela mulher atriz. Ao tratar do sangue – ou do momento em que o sangrar cessa -, o trabalho traz à tona a necessária desmistificação do que significa a menstruação e a menopausa, momentos fisiológicos que ligam o corpo de algumas mulheres à sua natureza. Joga-se por terra as construções sociais patriarcais arraigadas que fazem ver o natural como algo indesejado.
Já a forma do trabalho abre a reflexão para os modos como a latência de dizer preenche o palco, em uma urgência que carrega tanta potência que, ao mesmo tempo, corre o risco de simplificar suas forças quando transportadas para a cena tão diretamente, colocando, talvez, em outro plano de prioridade a elaboração estética. Ainda no segundo dia de um festival, em uma edição marcada por trabalhos políticos atravessados por vivências, pergunto se há outras formas de se levar para o palco uma informação tão necessária quanto as estatísticas de opressão e violência, em uma tentativa de, em vez de banalizar os números, dar relevo a eles.
Do Rio de Janeiro, “Coreografia de Enchente (Em Processo)”, é o trabalho da noite que desponta dos outros pela temática, não exatamente pautada por micropolíticas, mas que também vai refletir o modo de interação entre os sujeitos, o valor e as formas de se perceber a vida e a morte, e isso também é político. Promete não se apegar?
A cena também reflete as potencialidades dos rituais como fatores de cura, no caso, pela literatura e também pelo teatro. Na expressão, cria-se a possibilidade de uma recriação de uma realidade pela atividade artística, a elaboração de sensações e sentimentos que o ato criativo pode contribuir para despertar. Nesse sentido, o trabalho aposta em um escritor escrevendo sobre outro, que é a própria projeção de um estado a ser superado. Se é pelas narrativas que construímos e que somos perpassados que nos constituímos enquanto sujeitos, é no entrelace entre vida e ficcionalidade que outra camada de real se configura.
Interessante que tais camadas são expressas em cena como diferentes ambientes – a da moça que fala da plateia, do escritor diante de sua criação e do mundo por ele criado, caminho pelo qual é necessário percorrer as vias de comunicação para se tomar conhecimento da relação estabelecida em cada uma dessas dimensões. A cena ainda ganha beleza nas imagens projetadas, na parede e nos corpos dos atores, nas sombras criadas, na dança e em um jogo de elementos que dá àquela criação do escritor algo de onírico ou fantasioso.