— por Luciana Romagnolli —
Panorama crítico a partir da mostra Boca de Cena 2015.
Apresento aqui uma série de reflexões e questionamentos sobre o teatro praticado atualmente no Mato Grosso do Sul, a partir da apreciação dos espetáculos participantes da Boca de Cena – Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro, realizada entre os dias 24 e 29 de março de 2015 em Campo Grande, assim como dos debates e seminários promovidos dentro da programação. Desde o início, esclareço ser fundamental que se tome este texto pelo que ele é: um olhar de fora. Uma cena se organiza pelas necessidades e pulsões intrínsecas aos seus componentes; enquanto o olhar de fora está sempre sob o risco de ser colonizador – ao alertá-lo, pretende-se convidar quem lê a se apropriar destas palavras na medida em que fizerem sentido para si, antropofagicamente.
Esclareço ainda que parto de uma expectativa bastante específica: a possibilidade de se intensificar a relação entre a cena sul-mato-grossense e a do restante do país. Uma relação bastante incipiente ainda, haja vista que é parca a circulação de espetáculos oriundos de Campo Grande e do interior do Mato Grosso do Sul pelos demais estados brasileiros. Não são rotineiramente vistos em festivais, não fazem parte de um circuito nacional nem se conhecem os jovens talentos do estado em outras regiões do país. Falta-lhes visibilidade. É somente nesse sentido, isto é, como uma provocação para que a produção local articule-se na discussão mais ampla sobre arte e sobre teatro contemporâneo, que posso aqui indicar algumas ausências notáveis no teatro sul-mato-grossense a partir do escopo delimitado.
Uma primeira constatação parte justamente das discussões presenciadas nos seminários, nas quais foi possível perceber uma preocupação reforçada da classe teatral sul-mato-grossense com as funções política e didática da arte. Isso se explica em parte pelo atual contexto de mobilização política, quando os artistas do estado unem forças no movimento SOS Cultura; e em parte como tentativa de conquistar fomento para a produção teatral e a formação de público pela via da educação. Em ambos os casos, a busca por legitimar a importância do teatro dentro da sociedade dá-se por meio de fatores externos – a política, a educação, a assistência social –, empregados para a demarcação de território em uma sociedade que não valoriza suficientemente a cultura e arte (pensando a primeira como o que nos constitui enquanto senso comum e, a segunda, como o estado de exceção), e, portanto, como forma de angariar recursos financeiros para a arte.
As motivações são justas, é clara a importância de se consolidar essas relações com setores diversos da política pública e da iniciativa privada. Ainda mais quando a própria secretaria estadual de cultura está atrelada a outros campos com os quais não partilha especificidades: turismo, empreendedorismo e inovação. Entretanto também é fundamental para o desenvolvimento artístico da cena teatral sul-mato-grossense o investimento na dimensão estética da arte e o reconhecimento de sua importância na sociedade a partir de suas próprias qualidades e circunstâncias, sem a necessidade de que a legitimação lhe seja externa nem que seja regida por uma lógica de mercado e consumo. Não se quer com isso pregar o distanciamento entre arte e sociedade num sentido despolitizador; ao contrário: ao defender a autonomia da arte, o que se defende (como Herbert Marcuse) é que a arte possa transcender as relações sociais e subverter tanto a experiência ordinária quanto a consciência dominante, constituindo uma realidade distinta, quiçá oposta, da nossa, que amplie nossa percepção e campo de possibilidades.
Além disso, reafirma-se o valor específico da arte na sociedade, isto é, o valor da experiência estética. Como diz o crítico Luiz Camillo Osório no livro “Razões da Crítica”, “uma experiência autônoma significa apenas, e isto já é muito, que nada vai legitimar a arte de fora, mas isto não impede que ela esteja sempre ligada a um fora, apontando para além dela mesma, para um mundo em comum que é o seu território de sentido” (2005: 31). É próprio da arte a elaboração livre e autônoma do mundo. Uma potência de criação simbólica e performática, na qual forma é conteúdo, e pela qual se produzem efeitos de sentido, deslocamentos da percepção, experiências significativas. Entender a arte como um modo próprio de criação e percepção do mundo – um saber – pode restituir-lhe seu valor singular: o valor do sensível.
Quanto à questão estética, chama a atenção na programação do Boca de Cena a baixa emergência de problematizações relativas à crise da representação e à crise do drama, duas questões interligadas que há décadas vêm dominando as discussões sobre arte/ teatro contemporâneo, seja pela ação das vanguardas modernas e de encenadores diversos, seja pela influência da performance, e que deram origem a formulações sobre teatro como campo expandido (Ileana Diéguez), pós-dramático (Hans-Thies Lehmann), performativo (Josette Féral) e/ou crise sem fim do drama (Jean-Pierre Sarrazac), entre outras. Como a cena sul-mato-grossense se insere nesse debate artístico mais amplo? Em que medida ela se articula com o cânone, mesmo que seja para desconstruí-lo ou negá-lo?
O que se questiona, aqui, é como a produção teatral do estado responde, elabora, recria a sociedade contemporânea – seus modos de percepção, organização social e relação específicos –; e se relaciona com o espectador contemporâneo; considerando todas as transformações e reflexões que emergiram desde o projeto moderno e, posteriormente, com o pós-moderno ou hipermoderno e suas experiências diversas de tempo, espaço, sujeito e comunidade – que não são formulações academicistas somente, mas as quais sentimos no nosso cotidiano. As referências supracitadas, fique claro, não são modelos a reproduzir. Ao contrário: responder a elas pode significar justamente contradizê-las.
O que interessa nas tendências contemporâneas do teatro não são as respostas prontas, mas as questões, inquietações e problemas latentes e legítimos de um dado contexto tempo-espacial – o que elas dizem sobre nós hoje. Elas somente se tornam formulaicas se os procedimentos forem repetidos pelos seus efeitos, sem o percurso investigativo que os originou – as inquietações, os processos, a pesquisa, as feridas que os geraram. Cabe a cada artista imerso num tempo-espaço questionar as causas, mirar suas próprias feridas e encontrar respostas particulares, singulares, intransferíveis – nesse sentido, originais. Mas olhando também para fora, em diálogo com o mundo, sem perder-se no labirinto de si mesmo. Pode parecer haver uma contradição nesse gesto de chamar um grupo de artistas à discussão sobre arte contemporânea se tal debate não nasce espontaneamente nas práticas e vivencias do grupo. Mas é uma contradição falaciosa: quando um núcleo se fecha sobre si, e se retroalimenta, é preciso descerrar as portas para o exterior.
No Mato Grosso do Sul, falta uma zona de troca mais ampla e intensa com a arte teatral do país e do mundo. Seria proveitoso se um festival como o Boca de Cena se abrisse a produções de fora, oferecendo novos referenciais artísticos (e, simultaneamente, de modos produtivos) aos olhos dos artistas locais. Talvez uma ação como essa possa sofrer resistência de grupos que, desprovidos de recursos financeiros suficientes para a própria sobrevivência, oponham-se a que a verba pública destine-se a profissionais de outros estados. Ampliar o montante investido seria justa solução para essa questão – e seria um passo para que a intensificação do diálogo com outras cenas culminasse na circulação também de obras sul-mato-grossenses por outros estados.
Complementarmente, fragilidades na atuação, na dramaturgia, na direção, na cenografia, no uso de vídeos etc. deixam visível a falta de espaços de formação sistematizada que deem suporte para o aprimoramento profissional e aprofundamento das investigações de artistas-pesquisadores. Seria favorável para o amadurecimento da cena sul-mato-grossense, em quantidade e qualidade, o investimento em núcleos de formação continuada. (…)
Visões
A partir daqui, abordarei aspectos que se destacaram na programação do Boca de Cena 2015. Um deles é a questão temporal: formas de tratar o passado e o presente. Um número significativo de espetáculos opta por temas, textos e tipos de atuação que retomam períodos anteriores da história do teatro, seja o início ou meados do século XX ou mesmo séculos antes, sem realizar uma operação de apropriação a partir do presente. Quando esse resgate do ontem faz-se com reverência, destituído de comentário, crítica ou posicionamento dos artistas que o realizam a esta altura do século XXI, tende a oferecer uma experiência de repetição – ou museificação, no sentido da preservação de um passado às afetações do tempo, correndo o risco de engessamento e de certa ingenuidade nostálgica ou anacrônica.
Esta é uma problemática a se considerar, observando as especificidades de cada obra, diante de trabalhos como “Rubens Correa – Um Grande Artaud de Aqui” e “Tristão e Isolda”. Frente a “Tristão e Isolda”, da Cia. Última Hora de Teatro (Dourados), além de algumas especificidades técnicas de atuação relativas à baixa audibilidade das falas, há de se prestar atenção a uma questão de base: qual o propósito de se encenar hoje a tragédia de Isolda e Tristão, um dos mitos fundadores do amor romântico idealizado? A pergunta não é retórica; não pressupõe que não haja propósito – pelo contrário: mitos fundadores costumam ser fonte abundante para retornos e revisões –, mas pede que se formule uma resposta não ingênua, isto é, que não desconsidere as transformações sociais (e afetivas e perceptivas etc.) e a ação do tempo. Nesse sentido, pode-se dizer que falta uma apropriação contemporânea dessa história que lhe confira uma perspectiva singular, seja pelo tratamento dramatúrgico, pela linguagem da encenação e da atuação ou, preferível , pela articulação de todas essas instâncias de modo que faça sentido para o grupo.
“Contemporâneo”, aqui, não designa um estilo em si, mas uma abertura dos poros, dos sentidos, para o presente e as suas fissuras, as suas sombras. De preferência com um gesto crítico. Ou, como diria o filósofo italiano Giorgio Agamben, contemporâneo é aquele que consegue neutralizar as luzes de seu tempo e perceber o escuro, “significa ser capaz de não apenas manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós”. Sob tal digressão, paira uma pergunta complementar à anterior: a quem satisfaz uma arte que conforma e não transforma?
Voltando à peça, há de se pensar que para uma plateia carente de teatro, uma montagem-padrão de um texto clássico é um deleite. Mas e quanto a plateias que já se confrontaram com outras Isoldas, Julietas, Rosalindas, Ofélias…? Como furar o tecido da repetição e apresentar-lhes algo que reavive o olhar?
No solo “Rubens Correa – Um Grande Artaud de Aqui” (de Campo Grande), homenagem de Espedito di Montebranco ao ator Rubens Corrêa feita por intermédio de Antonin Artaud, a questão temporal também pode ser considerada em distintas camadas. A começar pela fala do ator. A impostação e o ritmo da fala carregam as marcas predeterminadas da sala de ensaio, onde se fixou a forma de dizer o texto, prejudicando a escuta. O que idealmente se buscaria seria a presentificação das palavras, a sensação de que o que o ator diz é pensado/decidido no agora, está vivo. Há uma sustentação excessiva da cena no discurso, numa palavra que não é corpo, que não se torna experiência. Essa escolha a distancia do ideal artaudiano de recusa do domínio da palavra sobre a cena, sobretudo porque também a gestualidade está desprovida de uma qualidade de presença forte. Presença essencial para a afetação dos espectadores (uma referência nessa discussão atualmente é a pesquisadora alemã Erika Fischer-Lichte).
Outra cisão temporal se dá no contraste da cena reverencial à tradição da história do teatro com a projeção em vídeo de uma entrevista (documental), que se insere como uma quebra de linguagem e de temporalidade, com função estritamente didática, sem proposição estética. É como se a legitimação do espetáculo viesse de fora: da importância de Artaud, da importância de Rubens Corrêa, das explicações fornecidas na entrevista. Não se constrói na cena. Por outro lado, o tratamento reiteradamente reverencial aos dois – Rubens e Artaud – deixa pouca margem ao espectador. Quando o arrebatamento é antecipado pelo ator em cena, tende a obliterar que a plateia o sinta por si, exposta que está já ao efeito, não à causa. Exemplo é o momento em que se anuncia o diagnóstico de Aids com pausa dramática, queda de um pano vermelho e o acender de uma luz também vermelha: a redundância pode ser um modo de subestimar o espectador, prendê-lo a imagens-clichê, fechar – em vez de abrir – sentidos.
Sobre Rubens Corrêa, o crítico de teatro Yan Michalski certa vez escreveu que foi “talvez o último (ator) – e o único da sua geração – remanescente da estirpe dos monstros sagrados, em função da aura de magia e de sagrado que cerca a sua presença cênica e o seu conceito do ofício de ator. Mas um monstro sagrado visceralmente moderno, familiarizado com todos os desdobramentos da arte teatral na atualidade”. Eis o desafio.
Vemo-nos então diante do infantil “Branca de Neve”, espetáculo urdido a partir de procedimentos comuns à pós-modernidade, como o pastiche e a intertextualidade. Claro está que não basta aplicar procedimentos ditos contemporâneos sem um pensamento de base. Mas comecemos pelo mais interessante: a camada narrativa adicionada pela presença dos dois elfos (poderiam ser Sininho e Peter Pan?), que contam e comentam a história, entremeando-se aos personagens da fábula-título. Eles acrescentam pontos de vista – inclusive críticos – ao desenvolvimento da trama mais que conhecida, empregando humor físico, gags e a empatia com o público para fazer a ligação entre o eixo extraficcional e o intraficcional.
As referências arroladas – “a rainha não me representa!”, afazeres domésticos como os de Cinderela, músicas pop etc. – até certo ponto contribuem para essa somatória de camadas, para abrir links, multiplicar leituras, aproximar os adultos também. O acúmulo é tanto, que a certa altura já não produz insights mas a saturação de uma set list acelerada de rádio FM, entupindo a fábula infantil do mesmo tipo de fast food cultural a que já está exposta 24h por dia nos meios de comunicação de massa. Caminho acrítico para o embrutecimento da sensibilidade infantil, mais uma vez a criança exposta a uma concepção comercial de entretenimento, cuja lógica da rapidez na apreensão – contrária à contemplação fruidora – privilegia o superficial, desaloja o enigma.
Na contramão está “Dedo Verde”, espetáculo que carece de precisão na manipulação dos bonecos e na sincronia musical para pontuar os movimentos, entretanto apresenta uma rica combinação de linguagens de formas animadas para contar o público infantil uma história dentro de outra, fornecendo estímulos (visuais, sonoros, textuais etc.) variados para a percepção infantil, de modo lúdico, brincante, e ainda com a adição de uma perspectiva contemporânea trazendo novas camadas de relação social e relação com o público por meio da história do menino que lê o livro cuja fábula é encenada. Em espaço mais íntimo e próximo dos espectadores e com apuro na execução, o trabalho só tem a crescer.
Voltando à “Branca de Neve”, há ainda que se notar o bom-mocismo da lição de moral – frequente em obras que pretendem entregar uma ideia fechada ao espectador, na linhagem didática, da qual não escapa também Dedo Verde – em discrepância com o descuido no tratamento de tópicos como o respeito aos mais velhos, o bullying e o barateamento das intervenções cirúrgicas. De novo, é pertinente indagar: quer-se uma arte que transforme ou conforme? Não cabe somente ao espetáculo respondê-lo, mas também à curadoria.
Quanto a essa questão, a das escolhas curatoriais, voltarei a abordar adiante de um ponto de vista mais amplo. Contudo, é inescapável considerá-la já ao tratar de espetáculos como “Tudo Porã por Aqui” e “O Experimento Tirésias”. Não faria sentido, num contexto como o nosso de borramento das fronteiras entre as artes, recusar a priori a presença de performances mais identificadas à poesia ou à mágica em uma mostra dita de teatro. A reflexão é sobre a implicação desses cruzamentos. Assim, ao situar um trabalho como o do poeta Emmanuel Marinho em “Tudo Porã por Aqui” numa mostra de teatro, o olhar que se lança sobre ele passa a observar as dimensões da teatralidade e da performance que não seriam necessariamente esperadas em um sarau, por exemplo, e as quais não estão desenvolvidas na apresentação, realizada em forma de recital ao ar livre. Por certo o aedo e o rapsodo estão na matriz da arte grega, e por mais que se pense em termos do teatro pobre de Grotowski ou no palco vazio de Peter Brook, há qualidades de presença e ritmo, de manejo do espaço e do tempo, de gestualidade e de vocalização da palavra que são próprias do teatro (como campo expandido) e não se encontram na obra do poeta. Não seria justo analisá-la por critérios teatrais, mas é numa mostra de teatro em que está inserida.
O que nos leva a “O Experimento Tirésias”. Embora Rick Thibau apresente-se como mentalista e se diga diante de um público que não é o dele fazendo algo que não é teatro, a escolha curatorial o coloca sob a perspectiva de olhar do teatro e o que vemos é uma performance extremamente bem-sucedida em termos de presença cênica. Thibau tem habilidade de dominar as atenções como quem domina o tempo e o espaço, ao modo como Fischer-Lichte caracteriza a presença “forte” de um performer. Voz potente, carisma e timing para o humor são qualidades que sustentam o entretenimento da ampla plateia. A ilusão se concretiza como se nem ceticismo nem niilismo nem crise da representação tivessem havido na história do Ocidente. Diante de um espectador infantilizado (o depoimento de ao menos um espectador mencionava o “sentir-se como uma criança”), apartado da racionalidade e entregue à ilusão a ponto de questionar no pós-espetáculo se as leituras de pensamento eram “reais”, não vejo o que questionar na performance em si, visto que cumpre seus próprios propósitos.
Pode-se, isto sim, refletir se a função da curadoria de um evento público tão central para o teatro sul-matogrossense é impulsionar projetos que visem primordialmente ao entretenimento (com perfil de venda para público empresarial, como foi mencionado a respeito de Rick Thibau em um debate), ou, ao contrário, apresentar trabalhos que despertem o senso estético e o senso crítico do espectador por meio de proposições artísticas originais (no sentido da investigação e da experimentação); sem deixar de levar em conta as implicações políticas de cada escolha – seja por adormecer os homens e despertar as crianças, ou o oposto.
No extremo oposto está “Tekohá”, do grupo Imaginário Maracangalha. A espetacularidade recua diante da necessidade de expressão/ação política sobre a realidade imediata, dentro de um regime histórico. O objetivo é claro e límpido, o despertar os homens para injustiças sociais por meio de um teatro político popular relacionado ao agit prop, promovendo uma politização da rua e de seus frequentadores. Daí a força do discurso, que se compõe de fragmentos de textos jornalísticos ou de outras fontes pré-existentes articulados coerentemente. Ao mesmo tempo, contudo, arma-se a teatralidade cuidadosamente, desde o cortejo que angaria espectadores até o jogo de cena feito coletivamente, a partir de poucos elementos e composições simples, cuja forma é/reitera o conteúdo de ação coletiva popular propagandeado.
Nesse teatro de núncia, certo de sua função no mundo, a dinâmica dos corpos intercambiando a sustentação do grupo diz tanto quanto as palavras, certeiras, no chamado à indignação conjunta. A política está além da denúncia, que se nela se bastasse seria puro panfleto; está também nas ações e formas que esse conjunto humano apresenta diante de outros seres como eles.
“Verdades Inversas” é mais um exemplo de teatro de rua politizado, por caminhos estéticos muito distintos. Ao assumir a antiga Estação Rodoviária como cenário, o grupo Flor e Espinho trabalha o site specific: explora as relações do espetáculo com o espaço tanto no sentido arquitetônico e físico, quanto social e comportamental, apropriando-se deles e impregnando a dramaturgia com as características prévias daquele ambiente, de modo que o espectador seja afetado para além do que é encenado, pelo simples estar ali e as implicações do reconhecimento daquele lugar.
Essa é uma experiência potente para a aproximação com a problemática dos homens e mulheres em situação de rua, polo forte de uma dramaturgia que se constrói sobre pares binários: pobreza e riqueza, loucura e hipocrisia, essência e aparência. No outro extremo está a imprensa, ou melhor, a espetacularização da notíciamercadoria. Aos representantes dos primeiros, tratamento onírico, campo livre para o imaginário e a recepção criativa do espectador. Aos representantes da mídia, tratamento paródico numa chave grotesca, que joga uma lente de aumento sobre um problema social para fazer a crítica dele, suprimindo nessa operação as contradições que tornam complexa a situação. A redução opera como uma simplificação com consequências que devem ser consideradas dentro dos propósitos do grupo; assim como a lição de moral direcionada ao adulto deve ser repensada num teatro que não pretenda se colocar acima do espectador a ponto de dizer-lhe o que deve pensar, e sim estimulá-lo a refletir.
A depender das escolhas dramatúrgicas e estéticas, o efeito pode ser o contrário do que se parecia propor. “O Bote da Loba”, do Mercado Cênico, transita nessa zona instável. O drama psicológico montado a partir do texto de Plínio Marcos prega a libertação sexual feminina, mas as ferramentas para isso incluem a violência e o olhar fetichista masculino sobre uma relação sexual entre duas mulheres. Nada menos libertador para o dito “segundo sexo” do que internalizar esse olhar do homem sobre a sexualidade feminina para buscar o próprio prazer.
Então, se há o mérito de abordar de frente, sem pudores, a repressão sexual e a recusa do prazer à mulher, falta uma perspectiva feminista (há de se ter o amadurecimento de encarar o termo sem preconceito) – algo que se percebe especialmente em dois momentos: quando a vidente esbofeteia a cliente, apenas reproduzindo a violência do homem contra a mulher; e na cena do ato sexual, tanto pelo já mencionado olhar fetichista masculino sobre a intimidade de duas mulheres quanto pelo fim antes do orgasmo, novamente sem de fato superar a repressão do gozo da mulher. Num espetáculo todo construído em torno de uma questão tão definida, essas sutilezas pesam enormemente, pois são elas que direcionam os sentidos do discurso. O título acena para uma possível ironia no próprio intuito libertador manifesto nos diálogos, mas essa seria uma perspectiva ainda mais complicada de submissão do feminino.
“Guardiões” trouxe um teatro menos dependente do texto, explorando outras possibilidades do ator em cena. Os corpos respiram, assumem formas, criam imagens, fazem dramaturgia, manejam objetos e transformam o espaço. O drama surge diluído e fragmentado – dentro do regime da crise sem fim do drama, que alargou suas fronteiras e seus possíveis – e um tratamento no texto poderia fortalecer as relações entre os tipos (mais que personagens) e as temporalidades, delineando as diferenças e repetições. Construída justamente pelos corpos dos atores, a animalidade do bicho humano é o sentido mais forte propagado no espetáculo, por meio de uma movimentação mimética viva.
A particularidade da questão ambiental contada do ponto de vista do sertanejo dentro de uma história universal sobre instintos humanos conjuga-se à poeticidade do texto, entre o dramático e o lírico, e da movimentação dos atores. Essa plasticidade gerada pelos corpos, porém, não encontra equivalência na luz e no cenário, cuja crueza e textura artificial colocam o humano animalizado em uma espécie de laboratório asséptico, apartado da natureza com a qual se relaciona no campo simbólico.
Nesse contraste, a projeção de imagens cria ruído na cena, indefinida entre funções ilustrativa, explicativa ou onírica e desarticulada dos corpos, enquanto a janela de projeção oval gera tensão contínua pela dificuldade de se dar sentido àquela forma e pelo desencaixe dela em relação ao fundo quadrado muito mais amplo. Problemas estes em parte relacionados à falta de recursos financeiros para o investimento em tecnologia, uma questão a ser considerada mais amplamente no meio teatral sul-mato-grossense, em vista de o conjunto de espetáculos apresentados na Mostra Boca de Cena não apresentar, em caso algum, experimentos tecnológicos mais elaborados. Longe de ser uma necessidade, parece, nesse contexto, uma impossibilidade. Subtrai-se, assim, da criação teatral do estado todo um campo de experimentações com a virtualidade e a desterritorialização que tem sido muito frutífero nacional e internacionalmente – trabalhos da diretora carioca Christiane Jatahy estão na vanguarda desta investigação.
Uma visão menos textocêntrica do teatro é encontrada também em “Os Olhos que Tivemos”, do Núcleo Teatral Isadora (de Dourados). Não que o texto não ocupe posição central no espetáculo, mas pela íntima articulação com todos os demais elementos cênicos, a seu modo igualmente produtores de efeitos de sentido e de presença. Esse olhar global para a cena, cuidadoso das implicações dramatúrgicas de cada camada composicional – luz, cenário, objetos, corpos, música etc. – cria uma atmosfera densa, em que as partes somam-se, dialogam e afetam-se mutuamente, proporcionando uma experiência sensível mais completa. O texto original tem as qualidades da escrita poética, lacunar na abertura de espaços para o espectador, e da inter-relação entre o individual e o coletivo dentro de um regime histórico que resgata os sentimentos envolvidos na colonização do país por imigrantes europeus. A história social e a história familiar reconectadas numa chave lúdica, em que mesmo a morte é tratada com ternura.
A beleza dócil emerge como valor em um sistema cênico regido pelo afeto, por isso mesmo hábil em estabelecer uma relação de cumplicidade com o espectador, ainda que a contraparte seja a renúncia ao peso, à gravidade, ao sentido trágico. Tal cumplicidade se intensifica pela ênfase no eixo extra-ficcional (o da relação palco-plateia), sobretudo pelos olhares expressivos da atriz Roberta Ninin, condensando emoções direcionadas a contaminar espectador a espectador, tanto quanto a configuração espacial permita a proximidade da relação olho no olho. Nessa dança sublime de corpos, palavras e notas musicais, a suspensão é um signo essencial. Suspensos os barcos de papel que fazem do espaço cênico um espaço simbólico, suspensos (e sobrepostos) os tempos entre os quais fluem os personagens, suspensos os gestos de uma partitura coreográfica que gera efeitos sinestésicos e cinestésicos – afetações de presença, para além da produção de sentido. Corpos poéticos que são corpos-cenários, em meio ao êxtase dos objetos: barcos e violoncelo vibram.
A cena toda decupada em quadros revela um cuidado formal, apolíneo, que responde ao caos social com uma composição controlada e, em certo sentido, idealizada. A arte praticada como elevação dos sentidos e sentimentos. Por trás disso, reside uma ética colaborativa de criação, pela qual é conferida autonomia aos elementos da cena e, consequentemente, espaço criativo para os artistas da luz, do espaço, da música. Um trabalho desdobrado por múltiplos olhares mas unificado pela perspectiva da diretora, modus operandi a ser estimulado na cena teatral sul-mato-grossense justamente pela autonomia criativa que permite a cada uma das artes implicadas no teatro.
“O Baixio dos Doidos” trouxe o universo urbano pop à cena, em um solo que agencia um procedimento forte na cena teatral brasileira hoje, a autoficção ou a elaboração dramatúrgica a partir de depoimentos pessoais dos atores, dentro de uma das principais vertentes do teatro internacional contemporâneo que são as teatralidades do real. Nessa linhagem, não deixa de fora alguns clichês como o café preparado em cena, que age sinestesicamente sobre o espectador despertando o olfato geralmente esquecido no teatro, ou a inserção de uma música poderosa no rádio/vitrola/Ipod do personagem, ou a decoração impecável do apartamento.
A encenação sustenta-se demasiadamente no texto, construindo uma atmosfera empática de intimidade com o personagem e usufruindo das qualidades da escrita de Begèt de Lucena, tanto quanto restrita à sobrevalorização do literário acima do dramático, e pelo desafio próprio à autoficção: como tornar universal e extraordinário o que é ordinário e particular? Extraordinário não é necessariamente algo incomum, grandioso, e sim um modo de olhar que desloque o comum. A narrativa da separação de Begèt está no limiar, um texto inteligente de um artesão das palavras permeado por certa autocomplacência do elogio à fossa; capaz de gerar identificação no limite da trivialidade.
Tratada como questão auxiliar, a memória familiar aprofunda em alguma medida o drama, enquanto a direção mostra potência de ultrapassar o lamento individual quando, por exemplo, refaz uma cena em diferentes modulações, deixando que a dimensão cênica mostre sua força sobre o texto. Cabe ainda comentar duas questões relativas à relação extraficcional: palco – plateia. Por um lado, a construção de uma relação mais próxima com o público pela presença de um pequeno grupo de espectadores no palco, cercando o cenário, esbarra na marcação predominantemente frontal do ator. Por outro, a dramaturgia ganha universalidade justamente no endereçamento para o espectador da possibilidade de transformar qualquer vida em narrativa.
A implicação do espectador no acontecimento teatral reforça-se pela necessidade de mobilidade física no espetáculo “E o Meu Cabelo Arrepiou”, da Cia. Maria Mole, de Corumbá. O grupo ocupou algumas salas da Estação Ferroviária com uma história de terror, gênero pouco explorado na produção teatral brasileira – um dos principais representantes é a Cia. Vigor Mortis, de Curitiba, dirigida por Paulo Biscaia, cuja pesquisa privilegia a linguagem do Grand Guignol. A Maria Mole tem a particularidade de construir a experiência do terror, centrada no prazer do medo, por meio de uma dramaturgia espacial que coloca o espectador na posição vulnerável de deslocar-se geograficamente (se comparada à segurança da cadeira na plateia, de onde a fruição atrofia a musculatura com exceção dos ouvidos e dos olhos) e aproximar-se fisicamente das figuras monstruosas que povoam as narrativas.
Como nas atrações do antigo teatro de feira popular, ou uma versão mais elaborada de um trem-fantasma, o grotesco é o procedimento-chave agenciado para abalar os corações no limite entre a vida e a morte. E o Meu Cabelo Arrepiou sustenta essa experiência em um pout-pourri de microcontos de terror, pílulas-clichê do gênero que geram mais uma sucessão de sustos do que aprofundam uma história. Nesta apresentação de encerramento da Mostra Boca de Cena, escolhas relativas à produção prejudicaram a experiência. O principal problema foi a quantidade de público acima do que o espaço cênico comportava, consequentemente, para parte dos espectadores era impossível enxergar os atores. Outra complicação em decorrência desta – e da opção por deixar o ambiente quente – foi que algumas pessoas (ao menos duas: esta crítica e uma outra espectadora) passaram mal ou saíram antes para evitar mal-estar. São detalhes externos à obra, mas que interferem de forma determinante na sua fruição.
É necessário colocar em questão tanto fragilidades do processo criativo vinculadas à carência de formação e de trocas com a produção nacional e internacional, quanto os caminhos da curadoria. São dois polos independentes, mas que se afetam mutuamente. Por um lado, é importante que seja feito um investimento de recursos materiais e esforços humanos no aprimoramento da criação dramatúrgica, do trabalho do ator – um ator-criador – e na construção colaborativa que valorize os diversos elementos cênicos, para o que é fundamental a promoção de debates sobre perspectivas contemporâneas desses temas e o intercâmbio com artistas experientes de Mato-Grosso do Sul e do restante do país. Só um teatro com condições de trabalho continuado e de investigação de linguagens e meios expressivos pode alcançar formas de excelência e originalidade.
Por outro lado, cabe à curadoria de uma mostra como a Boca de Cena reunir um conjunto de trabalhos que, sem almejar a perfeição, sejam propositivos, arrojados e consistentes em suas elaborações estéticas, e não se submetam à lógica comercial de entretenimento, proporcionando aos artistas e espectadores sul-matogrossenses o contato com a experiência artística e suas particularidades.
É pelo acúmulo de experiências estéticas que se forma um espectador qualificado – e (por que não?) um artista qualificado. Daí a importância da formação estética do cidadão, pressupondo a ampla capacidade de um ser humano se relacionar por si mesmo com a arte, à qual uma mostra como a Boca de Cena pode estimular abrindo sua programação ao contato com produções de outros estados e à dimensão formativa e de reflexão crítica.
*Artigo produzido para a Fundação Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul.