Crítica a partir da micropeça ‘‘Sapato Bicolor’’, de Fabiano Persi
– por Marcos Antônio Alexandre –
Cena ”Sapato Bicolor”, de Fabiano Persi – Fotos de Fabiano Persi e Leila Verçosa
Idealizado pelo ator Guilherme Théo e pela produtora cultural Clarice Castanheira, o La Movida surge como um novo local para que artistas, coletivos e grupos de Belo Horizonte possam divulgar seus trabalhos e, com este propósito, vem se consolidando como um ambiente de experimentação, empreendimento, jogo e risco, como deve ser qualquer espaço de arte. O lugar, de certa forma, tem suprido e – por sua vez também refletido – a necessidade de os artistas locais colocarem seus trabalhos à prova e em constante circulação e reconstrução.
Desde sua inauguração, em janeiro de 2017, dezenas de artistas[1] já passaram pelo espaço apresentando os seus trabalhos para um público reduzido e seleto. Todos eles já apresentam certa trajetória artística na cidade, alguns como integrantes de companhias teatrais e de dança, e a programação oferecida para os frequentadores desvela uma característica interessante, pois a grande maioria dos trabalhos apresentados até o momento já havia sido exibida ao público da cidade, alguns como espetáculos, que foram adaptados para atenderem a proposta do projeto: uma microcena para ser representada em um espaço de 15 metros quadrados, para 15 pessoas, com até três atores e duração máxima de 15 minutos.
A ideia de ressignificar uma proposta cênica “maior” para o formato do La Movida em si já é uma experiência que merece atenção diferenciada, pois vários artistas tiveram que adequar seus trabalhos para atenderem às necessidades práticas do projeto em termos de tempo e de dramaturgia de espaço, à medida que os trabalhos são repensados para atenderem as particularidades de cada uma das três salas oferecidas para a realização do projeto[2]. Para aqueles espectadores que já tiveram a oportunidade de assistir a alguns dos espetáculos apresentados em seu formato “original”[3], vê-los reformatados para o espaço é uma forma de rever as montagens sob outra perspectiva. Por outro lado, ainda que meu discurso possa parecer incongruente, afirmo que rever aqui não é apenas ter a possibilidade de assistir novamente, mas de observar como, o quê e quais momentos da proposta “original” os seus criadores decidiram investir na ressignificação a partir do novo olhar sob seus produtos artísticos, funcionando assim como tradutores de seus próprios textos espetaculares.
Patrice Pavis (2008. p. IX) argumenta que “é indispensável, portanto, especificar sempre em qual contexto e com que objetivo se analisam e se julgam as produções cênicas interculturais.” As palavras desse crítico teatral são indispensáveis para pontuar os novos lugares de fala em que os textos espetaculares são trazidos para o debate e, por sua vez, analisados. O que se faz diferente (ou não) em relação ao momento de impressão textual e corporal do artista na nova cena? Quais instâncias sociopolíticas e ideológicas serão “mais” pontuadas nesta nova leitura/adaptação/tradução? Lembremos que os textos apresentados tratam de questões que são, sim, interculturais, interdisciplinares e polifônicas, questões que percorrem nuances textuais que se relacionam a aspectos históricos, a vivências de gênero e de sexualidade, bem como a micropolíticas sociais que, cada dia mais, clamam por serem expostas e debatidas; cenas que evocam temas latentes que são discutidos sob perspectivas nem sempre homogêneas, mas que se inter-relacionam a partir das subjetividades dos artistas e dos sujeitos que estão envolvidos em cada proposta cênica.
Há que se destacar que outras propostas cênicas apresentadas já surgiram dentro do formato de cenas curtas e, por sua vez, também foram retrabalhadas para atender às especificidades do La Movida. Também não posso deixar de mencionar que alguns trabalhos foram concebidos especificamente para serem apresentados e/ou estreados no projeto como as propostas ‘‘Entre por essa porta agora’’, de Odilon Esteves; ‘‘Homem Bomba’’, de Luiz Athur; e ‘‘Sapato bicolor’’, de Fabiano Persi, trabalho que tive a oportunidade de assistir duas vezes em fevereiro do corrente ano e sobre o qual passo a tecer algumas considerações.
‘‘Sapato bicolor’’, solo de Fabiano Persi, dirigido por Polyana Horta, apresenta texto e dramaturgia do próprio ator em coautoria com Edu Costa e Luciane Couto. A cena se propõe a discorrer, como bem sinaliza a sinopse divulgada pelo projeto em sua página no Facebook, sobre a vivência de:
Um engraxate em meio a reflexões sobre a sua vida, seu passado e sua ligação incondicional com a Soul Music encontra na dança, seu alento e seu norte. Revive e compartilha lembranças de um passado ainda muito presente em sua vida. A dignidade retratada no microuniverso de quem muitas vezes é invisível para uma sociedade excludente, mas que nas pistas de dança encontra seu orgulho e sua vontade de seguir adiante. Os pés ocultos naqueles sapatos carregam o homem pela vida, para o trabalho ordinário e de volta ao baile!
Fabiano Persi apresenta um excelente trabalho na “pele” deste engraxate que guarda consigo a história peculiar de um sujeito cheio de memórias e que se converte em cena na história de muitos. Há que se considerar também a qualidade artística do trabalho como um todo, desde a interpretação de Persi até os detalhes do cenário, figurino, iluminação e música. Cada elemento e adereço trazido para a cena nos remete a um lugar de memória[4] que imprime reminiscências de um passado idílico que se presentifica em nosso contexto e em nossa contemporaneidade no – e a partir do – corpo do ator, que transcende o espaço cênico, por meio de sua performance, e é rememorado também no corpo dos espectadores, daqueles que, como eu, vivenciaram os momentos da soul music em bailes, discotecas e “horas dançantes” ou daqueles que representam, hoje, a geração do novo milênio, nos famosos Bailes Black e/ou da Saudade.
Diana Taylor, em seu livro ‘‘Performance’’ (2012, p. 62), assevera que “geralmente, a arte da performance se centra no corpo do artista” e, em outro momento desta mesma publicação, explicita que “não obstante, qualquer que seja o tipo do evento, a performance sempre está midiatizada: os corpos dos artistas e dos espectadores/participantes reativam um repertório de gestos e de significados.” (p. 74)[5]. Os argumentos de Diana Taylor me interessam pelo fato de centrarem na figura do performer e na ideia de midiatização dos corpos imbricados no ato performativo. Fabiano Persi executa, estética e tecnicamente, a sua performance de forma exemplar, desvelando nuances de uma corporeidade que nos permite observar a busca de uma relação com os imaginários e as identidades de centenas e milhares de sujeitos negros que frequentam, frequentaram e/ou frequentavam os bailes.
Utilizar a figura do engraxate como “personagem” e mote central da cena/performance é sem dúvida um ato artístico meritório, além de ser um forte ato simbólico e ideológico. Qual sujeito – entre esses, muitos em sua grande maioria, moradores de periferia e negros – não desejou um sapato bicolor para compor o look que o faria brilhar nos bailes? Quantos sujeitos – entre esses, muitos em sua grande maioria, moradores de periferia e negros – não engraxaram dezenas de sapatos alheios durante o dia, desejando poder usar um deles para riscar o chão (ou mesmo para adquirir o seu sapato bicolor) com os seus passos marcados nas noites de bailes? As gestualidades alcançadas e propostas por Persi podem ser vistas como um ato perlocutório que conclama toda uma classe social em prol de vivenciar o rito do baile. O figurino à la James Brown, Jacksons Five e Toni Tornado (calças e casaco em tons vivos e camisa de estampas floridas) também remete à cena e à performance do baile, e o público vai se sentindo enredado pelas histórias-entrevistas que vão sendo tecidas pelo homem/engraxate e show man.
Neste contexto de performance/entrevista/testemunho, outros “lugares de memória” vão sendo delineados e ressemantizados na [e para a] cena, vivificando em minhas lembranças, como nas de outros presentes, hits como os de Kool & The Gang e KC & The Sunshine Band, para citar alguns grupos que marcaram momentos inesquecíveis dos anos 70 e 80. Estas reminiscências tornam-se corporeidades por meio do cenário a partir do qual o público pode reconhecer os rostos estampados nas paredes – assim como os pôsteres que eram pregados por muitos sujeitos nos quartos de suas residências e/ou que também podiam ser vistos nos cenários dos bailes – de Tim Maia, Michael Jackson e James Brown; artistas performáticos que fazem parte da história fonográfica da soul music e dos bailes. Não há como não reconhecer esses artistas e não se identificar com a história de vida e de representatividade de cada um deles na vida de milhões de indivíduos não só em todo território brasileiro, mas global.
O cenário que remete a uma ambiência simples é amplificado aos olhos do espectador com a presença de uma vitrola, dos discos de vinil e dos rostos estampados na parede, que são símbolos icônicos de um altar “sagrado”, outro “lugar de memória”, espaço místico e mítico, assim como o sapato bicolor. Tudo ganha proporção maior como a luz que cai e leva todos os presentes a ambiência do baile, quando o performer convida uma mulher da plateia para dançar cheek to cheek com ele, fazendo alusão ao momento de encontros românticos dos bailes, ou quando ele conclui seu ato ritualístico e performático convidando a todos para dançar com ele.
Como artista, Fabiano Persi empresta sua corporeidade negra para o seu engraxate/show man e o corporifica com maestria. Com sua microcena/performance, diverte o público, tira dele o seu riso espontâneo e fácil, faz com que ele se emocione com o seu discurso, gestualidade e sua tessitura textual, mas também deixa aberto espaços para as reflexões pessoais de cada participante. Neste sentido, sem sombras de dúvidas, Persi, enquanto artista e performer, ao trazer o seu engraxate sonhador para cena, dá visibilidade a distintos sujeitos que são invisibilizados em várias instâncias sociais em nossa contemporaneidade. Vale a pena ainda destacar que a dramaturgia do espaço é muito bem utilizada no trabalho e isso é amplificado pela proximidade a qual público e performer são expostos, diminuindo a distância entre ambos, rompendo completamente com os limites da quarta parede e fazendo de cada espectador cúmplice de cada gesto, de cada olhar, de cada sorriso, de cada passo marcado proposto pelo ator/performer.
Nas duas vezes em que tive a oportunidade de assistir a ‘‘Sapato bicolor’’ de Fabiano Persi, saí do La Movida realmente transformado, “movido”, modificado, o rito se fez em mim, assim como acredito que tenha sido com os outros espectadores/participantes com os quais dividi a microcena/performance. Os lugares de memórias evocados ainda têm muitos espaços e instâncias para serem reverberados…
Sapato Bicolor
FICHA TÉCNICA:
Atuação e concepção: Fabiano Persi
Direção: Polyana Horta
Texto e Dramaturgia: Edu Costa, Fabiano Persi e Luciane Couto
Trilha Sonora: Marcus Frederico e Fabiano Persi
Iluminação: Felipe Cosse e Juliano Coelho
Maquiagem: Gabriela Dominguez
Concepção Cenográfica: Fabiano Persi e Antônio Lima
Voz Off: Davi Caetano
Fotos: Reinaldo Rodrigues
Referências:
NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, p. 07-28, dezembro de 1993.
PAVIS. Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.
TAYLOR, Diana. Performance. Buenos Aires: Asunto Impreso Ediciones, 2012.
[1] Entre os artistas que se apresentaram no espaço estão: Anderson Feliciano, André Senna, Andréia Quaresma, Beatriz França, Bremmer Guimarães, Camila Morena, Carloman Bonfim, Carolina Correa, Cida Barcelos e Jefferson Veloso, Cléo Magalhães, Cynthia Paulino, Davi Dolpi e Iara Fernandez, Débora Vieira, Denise Lopes, Edu Costa, Eduardo Felix, Fabiano Persi, Gabriel Castro Cavalcante, Gu Freitas, Henrique Cordoval e Lorena Tófani, Idylla Silmarovi, Janaina Morse, Jéssica Tamietti, Letícia Castillo, Luiz Arthur, Maria de Maria, Mariana Jacques, Marina Tadeu, Marina Viana, Michele Bernardinho, Odilon Esteves, Pauline Braga e Marco Túlio Zerlotini, Raquel Pedras e Cristiano Araújo, Renata Rocha, Sandra Albéfaro.
[2] Sala Cecília Bizotto, Sala Ítalo Mudado e Sala Soraya Borba, três importantes nomes de teatro que marcaram a história do teatro belo-horizontino e que receberam essa linda, singela e mais que merecida homenagem dos coordenadores do La Movida.
[3] A título de exemplo, cito ‘‘Amor (Manifesto antiacademicista pró-bruxaria sem rigor conceitual do meu lado ocidental que Eurípedes desconhece)’’ e ‘‘Festival de Ideias Brutas episódio 01’’, de Marina Viana; ‘‘Coisas boas acontecem de repente’’, de Cynthia Paulino; ‘‘Guerrilha’’, de Idylla Silmarovi; ‘‘Lady Macaxeira’’, de Denise Lopes; ‘‘Simplesmente Marta’’ (O Cabaré da Marta), de Cléo Magalhães.
[4] Aqui entendido a partir das contribuições teóricas de Pierre Nora (1993, p. 21-22): “São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo tempo material de uma unidade temporal e serve, periodicamente, para uma chamada concentrada de lembrança.”
[5] Livro publicado originalmente em espanhol. Tradução minha: “Generalmente, el arte de performance se centra en el cuerpo del artista.” “No obstante, cualquiera sea la escala del evento, el performance siempre está mediatizado: los cuerpos de los artistas y de los espectadores/participantes re-activan un repertorio de gestos y de significados.”