Crítica a partir do espetáculo Dandara Para Todas As Mulheres apresentado no Verão Arte Contemporânea.
– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
Fotos: Glenio Campregher/Verão Arte Contemporânea
Dandara Para Todas As Mulheres é dirigido por Bia Nogueira, com direção musical de Débora Costa. O espetáculo cênico musical conta com a participação da Banda A Carta e com um coro de mulheres, em sua grande maioria, negras. Essas mulheres participaram de uma oficina com a diretora em que foi experienciada a pesquisa estética do Grupo dos Dez, a ação-musical-dramatúrgica. Estas referências são notórias no texto cênico-musical por meio do qual podemos observar a presença de textualidades dramatúrgicas a partir de histórias de opressão vivenciadas por mulheres. Entre as vozes, presenças e corporeidades de mulheres negras, destacam, como participação especial, as artistas Andréa Rodrigues, Cleópatra, Juliene Lelis e Kátia Aracelle. O espetáculo foi construído tendo como referência a obra de Angela Davis e trata de questões muito pungentes em nossa contemporaneidade em se tratando da discussão sobre a mulher (especialmente a mulher negra) como amor, identidades, lutas, maternidade, resiliência, resistência, trabalho, solidão.
Ainda é grande o número pessoas que não tem ciência de quem foi Dandara: a companheira de Zumbi dos Palmares, aquela que comandou um quilombo na luta contra a escravidão e que, quando a prenderam, cometeu suicídio jogando-se de uma pedreira ao abismo para não voltar à condição de escravizada. Neste sentido, trazer Dandara para a cena, hoje, é fazer com a esta figura mítica seja não só revisitada, mas, principalmente, que ela seja inspiração para as mulheres negras que estão em cena com Bia Nogueira e na plateia. O espetáculo cutuca feridas abertas relativas às distintas situações de intolerância social em que as mulheres se veem submetidas no dia a dia, em seus trabalhos, em seus relacionamentos; ao mesmo tempo são discutidas maneiras com as quais essas mulheres lidam com seus afetos, corpos, desejos.
Angela Davis, em seu livro Mulheres, Raça e Classe, obra que inspirou Bia Nogueira e Marcos Fábio de Faria para construírem sua dramaturgia cênico-musical, esclarece que:
proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscados pelo trabalho compulsório. Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras (Davis, 2016, p. 17).
Atentos a essa mirada crítica, afinal de contas o período de escravidão é “tempo passado”, os dramaturgos trazem o universo feminino e a condição da mulher em várias frentes de ação e de militância. Isso é feito colocando as corporeidades de todas as atrizes que integram o espetáculo – representantes aqui das mulheres em geral – em pautas que precisam ser discutidas reiteradas vezes: o direito ao trabalho, à vida, à defesa de seus corpos (tocando inclusive no tema do direito ao aborto) e corpas e de suas identidades. Para atingir estes lugares de fricção, a própria Bia traz para cena e lê para a plateia um post do facebook que trata especificamente sobre a questão da maternidade e ao direito ao aborto. Outro momento de reflexão que merece ser destacado se dá a partir da presença potente e das palavras-moventes de Andréa Rodrigues:
Espera, não fala assim. Não dá pra falar assim que incomoda, eu prefiro trazer uma poética sabe. Suavizar e olha que ainda assim sou agressiva, imagina sair por aí dizendo de algo tão feio: solidão da mulher negra. Mas deixa, tá tudo bem eu já sei lidar, minhas lembranças me colocam em um estado de total vulnerabilidade, quando me ausento significa que estou imersa em minha solidão, relembrando tudo o que nunca vivi. Então, dessa parte eu entendo. Estabelecer relações afetivas é algo bem complexo. Estabelecê-las sem perspectivas assumindo um local de solidão que parece mais palpável, é algo estarrecedor. O indivíduo parte do suposto de que em algum momento estará sozinho novamente e, sem ter experiência em modos outros de relação, cria uma barreira entre ele e a possibilidade de afeto eminente. Parte como proteção prevendo a ruptura, parte por não saber de fato como se relacionar uma vez que o que se tem de elaboração de relacionamento ainda é um padrão imaturo e falido. Existe uma diferença básica entre ser e estar, o ser é pra sempre você é, imutável, o estar é momentâneo, em se tratando de solidão, pode-se pensar a vida toda que se está sozinho e perceber ao fim das contas que se é sozinho. Ser sozinho quer dizer que mesmo na multidão não se está junto. Na tentativa de evitar essa dor o ser faz-se sozinho, pois assim evita a dor de descobrir-se só em meio a milhões. Acho que penso estar e por medo de descobrir ser faço-me![i]
Cada frase fala por si por meio da voz, da corporeidade e das ações física propostas por Andréa. Os discursos subjacentes à textualidade evocam atos distópicos que colocam as mulheres umas do lado das outras, em sintonia, em sincronia e em estado de atenção. Bia Nogueira, cênico-musicalmente, propõe uma confraria de mulheres. Há um momento, em um dos números musicais, em que as pessoas são chamadas para o palco para tirarem selfies com as atrizes, mas, rapidamente, são (somos) convidados para retornarem (retomarmos) os assentos. Em outro, há um brinde coletivo, entre as mulheres, em que taças de champanha são entregues, a dedo, nas mãos de algumas mulheres negras da plateia.
Há que serem destacadas ainda duas opções estéticas do espetáculo cênico-musical: o figurino afro-futurista concebido por Zaika dos Santos, em especial, os vestidos que Bia Nogueira vai trocando ao longo do espetáculo. Também chama a atenção inserção de elementos audiovisuais. Neste caso, os vídeos que são incorporados em momentos específicos, dialogando com as músicas que vão sendo apresentadas. Infelizmente, pelas condições do espaço em que o trabalho foi apresentado, o Galpão 3 da Funarte, a projeção, em vários momentos, foi prejudicada pois as imagens se sobrepunham aos corpos das atrizes, não garantindo boa visibilidade para o público.
Por fim, levando em consideração que o trabalho se trata de um espetáculo cênico-musical, as músicas são trazidas para o palco de forma muito contundente, gerando dinamicidade para cada ação performativa que vai sendo proposta e corroborando cada “bandeira” política que as atrizes e a diretora-cantora-atriz querem evocar. Nesta linha, é imprescindível que o espectador se concentre nas letras das canções propostas como, a título de exemplo, “Dandara”, música que dá título à montagem, e “Ignomínia feat”[ii]. Antenada com o seu tempo e com a sua condição de mulher negra, em Dandara para Todas as Mulheres, Bia inova esteticamente trazendo para cena a inserção de músicas eletrônicas e acústicas, tudo executado ao vivo. São canções autorais e letras compostas em parcerias com outros artistas e parceiros, entre eles Black Josie, Barulhista, Léo Kildare, Marcos Fábio de Faria e Alysson Salvador.
Na música final, “Mantra Diversas”[iii], toda a intensidade vivenciada no espetáculo é convocada para um momento só delas: DE MULHERES PARA MULHERES: “Mulheres com mulheres, com mulheres, com mulheres, com mulheres…”. Elas, AS MULHERES, estão plenas no palco “para romper amarras”, como anteriormente conclamou a letra da canção “Dandara”. Aos homens presentes (encantados; muitos, emocionados e sem palavras) só lhes resta apenas assistir a esse momento calados, num exercício de escuta (ainda que forçado), tendo a consciência de que são (somos), em muito, responsáveis pelas diversas formas de silenciamentos e opressões físicas e simbólicas que foram discutidas em cena…
***
Retomando as palavras iniciais ( Link da parte I: https://www.horizontedacena.com/escrever-em-tempos-de-isolamento-social-por-que-e-para-que-parte-i/ ), ainda em estado de isolamento social e, agora, mais consciente de que o momento de pandemia perdurará por mais tempo do que imaginava; incrédulo, cada dia mais, com as palavras e discursos desconexos do presidente (que me nego nomear) de nossa nação; rememorar os trabalhos, Arte, Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra! e Dandara Para Todas As Mulheres, cujas impressões e leituras críticas foram aqui dividas, só me faz crer, ainda mais, no poder que a arte tem de levantar reflexões e de promover transformações nos sujeitos, ainda que essas se deem em planos micros… O caráter sociopolítico dos três textos desvela uma característica do teatro contemporâneo de, mais que “contar uma história”, permitir que seus receptores saiam do espaço cênico, pelo menos, com a cabeça cheia de inquietações e em estado de alerta…
***
Dandara para Todas as Mulheres
Direção Artística: Bia Nogueira
Assistente de Direção: Rodrigo Jerônimo
Dramaturgia: Bia Nogueira e Marcos Fábio de Faria
Músicos: Bruno de Oliveira, Débora Costa, Thiago Quintino
Preparação Corporal: Carolina Cordeiro
Gestão de Projetos: Fabrício Belmiro/ Fotografia: Bartira Duarte e Fabrício Belmiro
Produção: Bartira Duarte
Realização: Grupos dos Dez
Referência:
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
[i] Texto cedido pela artista.
[ii] Confira os clipes, respectivamente, em https://www.youtube.com/watch?v=UdXza6OMpH0 e https://www.youtube.com/watch?v=l8p1qN5M3X4.
[iii] Clipe disponível em https://www.youtube.com/watch?v=myMzCtD7bbI.