– Por Clóvis Domingos –
“Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e, por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me foi negado”.
“Uma Experiência”, Clarice Lispector.
”LIFEGUARD“, espetáculo de abertura do Fórum Internacional de Dança 2016, é uma peça íntima do renomado coreógrafo e bailarino canadense Benoît Lachambre. Trata-se de uma delicada coreografia que se constrói com e a partir da audiência presente. O público participante adentra o espaço em três momentos subsequentes: no início, entram 15 pessoas, 30 minutos depois entram mais 25 e então 15 minutos depois as demais pessoas se juntam aos que estão lá. Algo vai sendo concebido e preparado numa poética participativa que presume que o espaço não existe a priori, mas se faz e refaz o tempo todo.
Bailarino e público dividem o mesmo território e, entre silêncio, movimentos, palavras, músicas, contatos e contemplações, a coreografia vai se fazendo. Somos convidados a essa composição coletiva pelo artista que nos convoca a nos movimentarmos e experimentarmos distâncias, aproximações, pausas e desenhos corporais. No início, o silêncio é quebrado apenas pela voz do intérprete que com um fone de ouvido parece escutar algo e sentir o possível encontro dessa sonoridade (ou estará apenas em silêncio?) com nossa movimentação e assim se afetar com essa coreografia espontânea. O espaço partilhado e riscado com nossas presenças nos coloca num jogo de atenção e percepção aguçadas. Todos parecem entrar numa certa sintonia. O que poderia ser complicado se transforma em “co-implicado”.
Num segundo momento, o bailarino nos pede que individualmente ou em dupla o toquemos em alguma parte de seu corpo. A cada contato seu corpo reage, se mexe e dessa forma podemos perceber minuciosamente seus movimentos num deslocar lento pela sala. Uma dança das sensorialidades acontece. Entra também aqui uma ética dos corpos e a possibilidade de encontros. A dança de Lachambre evolui graças ao “com-tato”, e a ressonância de seus movimentos estabelece outra qualidade de movimento, espacialidade e temporalidade. É possível sentir sua respiração, seu suor, o nascer de um movimento como lugar de dança. Há também a possibilidade de se pensar que uma relação de dependência é acionada. O bailarino expõe sua vulnerabilidade e sua técnica através de um corpo dançante numa coreografia do mínimo.
Mas quem dança então nesse espetáculo-experimentação? Arrisco-me a afirmar que todos os presentes. ”LIFEGUARD” busca uma coabitação sensória que, de forma discreta e estranha, revela camadas complexas de como somos mais interdependentes do que imaginamos. Noções muito confortáveis e estabelecidas sobre dança, movimento, corpo, artista, público e espetáculo tornam-se frágeis e porosas. Fomos assistir a uma dança ou fazer parte dela? Quem pode dançar? Isso é dança? Nas palavras da pesquisadora Thereza Rocha em seu novo livro “O que é dança contemporânea? Uma aprendizagem e um livro de prazeres” (Conexões Criativas, 2016, p.28): “A dança é contemporânea também porque encena todos os problemas que envolvem o contato obra/espectador; porque encena a política intrínseca à espetacularidade. Abre mão da espetacularidade (das facilidades e da crueldade que lhe são intrínsecas) em favor da disponibilização ao espectador dos meios que a produzem; em favor de uma troca em que as partes tenham acesso ao que está pressuposto na relação”.
No caso de ”LIFEGUARD”, essa acessibilidade não só é permitida como necessária e bem-vinda para a concretização da obra. Não se trata de contemplar um espetáculo de dança, mas se corresponsabilizar para que esse aconteça. Dessa forma o coreógrafo coloca a obra em risco caso não sensibilize e ative a participação de algumas pessoas. Na apresentação ocorrida no FID, esse perigo foi menor, uma vez que haviam bailarinos presentes e alguns poucos dispostos a se expor junto ao artista e de fato colaborar com o trabalho. Uma equilibrada alternância entre atuar e assistir.
Num terceiro momento, o bailarino inicia uma conversa com as pessoas. Conta que vai nos deixar escutando uma música (explica a natureza “xamânica” da canção agora reeditada numa batida contemporânea e eletrônica por um DJ) e o vemos trocar de roupa e voltar ao nosso meio com um grande escovão no qual vai deslizando pelo espaço e nos tirando do lugar. O ato de limpar aos poucos torna-se dança e aí o objeto ganha literalmente asas parecendo se tornar um pássaro a cruzar sobre nossas cabeças. O uso poético se soma a uma memória pessoal do bailarino que nos relata rapidamente um fato: a doença de um amigo e a necessidade de cuidar da casa dele. Lachambre mais uma vez busca alguém da plateia que, agarrado à sua cintura, agora pode experimentar esse voo tão simbólico. Uma condução pelo movimento.
A potência desse espetáculo está na construção de pequenos gestos e convocações que vão criando intimidade e empatia. De forma lúdica (parece que estamos imersos numa brincadeira), o bailarino tece um trabalho de extrema profundidade que nos lembra o tempo todo: “eu preciso do outro”. Mesclando depoimento, memória, ações cotidianas, jogos infantis e gestos ínfimos, uma dramaturgia afetiva nos enlaça e uma aparente despretensiosidade caminha para sua forma mais radical: o bailarino nos convida a preencher os espaços vazios de seus movimentos como que imageticamente criando com ele e para ele “os pêlos de um lobo assustado”. Do contato físico proposto no início temos agora um contato energético. A corporalidade animalesca aparece e sugere abrigar tantos outros corpos, lugares, histórias e tempos.
Com uma sunga escrita “lifeguard” (que significa “salva-vidas”), o bailarino entoa um canto ancestral no fim de duas horas nas quais nos encontramos e criamos um “espaço-tempo” comum. Há nesse final uma sensação de que precisamos cuidar da VIDA que nos cerca. Precisamos voltar aos sentidos. As teorias racionalistas não salvaram o mundo! E talvez aqui salvar a vida não seja como grandes e poderosos heróis, mas singelos cuidadores que se movimentam entre os restos da barbárie cotidiana. Essa pode ser uma leitura política dessa obra artística relacional e também singela que prioriza a criação de vínculos. Habitamos o mesmo espaço do bailarino como habitamos o mundo! Compomos e interferimos em sua coreografia, como o tempo todo co-criamos nossos passos e movimentos junto aos outros, sejam conhecidos ou estranhos. São partilhas do “com-viver”.
Como um xamã, o bailarino estático nos hipnotiza e sua melodia agora dança e percorre nossos espaços internos. Entramos num estado meditativo. Saímos transformados após esse espetáculo. O invisível que dança… Vida e arte pedem socorro! Minha impressão como participante dessa experiência foi a de ter vivenciado um ritual humano, demasiadamente humano….