Algumas reflexões a partir dos espetáculos Arte, Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra!, e Dandara Para Todas As Mulheres (Belo Horizonte).
– por Marcos Antônio Alexandre – Faculdade de Letras-UFMG/CNPq
Espetáculo Arte (Foto: Igor Cerqueira)
Escrever neste momento pra mim mais que nunca se converte em um ato de resistência e de “cura espiritual”. O confinamento social agudiza os sentimentos pessoais em todos os sentidos e a sensação de vulnerabilidade intensifica a impressão de como pode ser custoso este isolamento quando estou (estamos) acostumado(s) a ir e vir para todos os lugares e não me(nos) falta(m) oportunidade(s) de encontros com amigos e familiares. Saber que as possibilidades de entretenimento por meio de qualquer experiência coletiva se convertem em algo “proibido”, por causa de um vírus, diante do qual não temos nenhum tipo de controle, faz com que nos sintamos – e assim me sinto no momento em que escrevo estas linhas – impotentes e incapacitados diante de tantas coisas…
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O teatro é a arte da presença, é a arte do encontro, o espaço em que artistas e público se veem e só colocam em conexão e em situação de convívio e reflexão. É a partir desta premissa que busco minhas memórias empíricas e socioafetivas para reavivar três trabalhos que tive a oportunidade de assistir recentemente na 46ª Campanha de Popularização de Teatro & Dança e na 14ª Edição do Verão Arte Contemporânea, respectivamente, Arte, Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra! e Dandara Para Todas As Mulheres. Três espetáculos bem distintos, mas que me movem e me fazem refletir a partir de lugares de encontro com minhas próprias perspectivas ideológicas.
As sinopses dos trabalhos registram:
A peça gira em torno da amizade entre Sérgio, Marcos e Ivan, que têm a relação abalada quando a compra de um quadro branco por R$100 mil feita por Sérgio desencadeia reações desmensuradas, que ultrapassam a barreira do inaceitável, atingindo a brutalidade em seu estado mais selvagem. Os atores Alexandre Toledo, Gustavo Wernek e Marcus Labatti dão vida aos personagens, que interagem dentro de um único cenário: a sala de um apartamento. (Arte, Caderno de Programação da 46ª Campanha de Popularização Teatro & Dança)
Neste experimento-manifesto, o amor é uma violência tão cruel quanto a guerra. As granadas estão camufladas em cada signo dado, em cada convenção criada, um verdadeiro extermínio. Reunindo teatro, poesia e música, “Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra!” é uma sequência de performances que partem de um olhar crítico sobre a educação e suas múltiplas ressonâncias em nossos corpos e vidas, revelando seus efeitos e contradições. (Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra!, Caderno de Programação da 46ª Campanha de Popularização Teatro & Dança)
“Dandara Para Todas as Mulheres” surge de trazer a reflexão sobre o ser mulher negra. Se em Madame Satã partimos de uma figura lendária do Rio para falar sobre homofobia e racismo, nesse novo espetáculo evocamos a figura quase mítica de Dandara para trazermos a discussão sobre machismo, racismo e a resistência da mulher negra contemporânea. (Dandara Para Todas As Mulheres, https://2020.veraoarte.com.br/evento/dandara-para-todas-as-mulheres-%e2%80%a2-grupo-dos-dez/)
Pelos registros descritos já se pode notar que cada qual trabalho se trata de propostas espetaculares muito diferentes. Numa perspectiva de leitura horizontal, as sinopses revelam nuanças de cada montagem, o teor de cada fábula sugerida pelas produções, mas também dizem um pouco das instâncias enunciativas e micropolíticas de cada montagem e textualidades produzidas.
Espetáculo Arte (Foto: Igor Cerqueira)
Arte, uma produção de Alexandre Toledo, traz, na direção, o olhar cênico apuradíssimo de Sérgio Abritta, que trabalha com um elenco primoroso – Alexandre Toledo, Gustavo Werneck e Marcus Labatti – e que entrega o melhor de si para a construção das personagens que corporificadas e trazidas para o embate com o olhar do espectador. A peça, de autoria de Yasmina Reza, foi publicada em 1994[1]. Reza, além de atriz francesa, é roteirista e escritora de ensaios, peças e romances. Também é reconhecida pela sua famosa peça Deus da Carnificina (2006), que foi lançada, em 2012, após a adaptação do roteiro, como filme sob a direção de Roman Polanski.
A simplicidade do mote da história é a grande chave da dramaturgia: três amigos, um deles compra um quadro branco caríssimo e este ato desencadeia inúmeras discussões entre eles. A partir de uma ação corriqueira – a compra de uma obra de arte de “vanguarda”, os amigos se desentendem, pois um deles não entende o porquê da aquisição e o outro se coloca no meio dos amigos tentando acalmar os ânimos diante dos desencontros que a obra de arte começa a produzir. O texto de Yasmina Reza, 25 anos depois de sua escrita, continua se impondo de uma maneira muito atualizada aos seus novos contextos de produção. O contemporâneo, o clássico e o épico integram a concepção dramatúrgica de Reza e é muito bem recuperado na direção de Sérgio Abritta e de seu elenco. Já na primeira cena, a personagem Marcos, interpretada por Alexandre Toledo, já revela a fábula proposta pela peça e, em outros momentos durante a representação, outras personagens se distanciam e realizam alguns comentários sobre alguma passagem e/ou sobre suas ações para além da discussão que está sendo empreendida em cana, propiciando e convocando disparos para reflexões.
O desenho de luz e a proposta de cenário – ambos criados por Yuri Simon – dão um caráter de dinamicidade para encenação. Na proposta de direção de Abritta, os atores estão o tempo todo em cena. À medida que vão desenrolando as ações dramáticas, eles vão modificando o espaço cênico, alterando os objetos de cena, que dão espaço para os novos ambientes: o apartamento de Sérgio, com seu quadro branco que tem o valor de um automóvel do ano; a casa de Ivan, com seu quadro convencional com uma paisagem da natureza, que fora pintado pelo seu pai, sem nenhum valor comercial em relação ao quadro do amigo Sérgio, mas com um profundo valor sentimental. O quadro e a constante mudança e modificação dos objetos cênicos criam uma dinâmica de cena, que aprofunda e agudiza os conflitos das personagens que vão sendo explorados, colocando o espectador em constante estado de alerta e reflexão.
O texto apresenta uma densidade dramática, mas tudo isso é feito sem deixar de lado o humor que se faz presente nas entrelinhas da dramaturgia de Asmina Reza e que Abritta explora muito bem com seus atores. A cabeça-dura e a sisudez da personagem interpretada por Alexandre Toledo, Marcos; a diplomacia presente em Ivan, personificada por Marcus Labatti; e a arrogância intelectualizada proposta nos discursos de Sérgio, vivido por Gustavo Werneck. Não há como deixar de destacar que os expectadores se divertem (e muito) com os discursos ácidos de Marcos e as falas, em vários momentos, apaziguadoras e, às vezes, ingênuas, de Ivan.
Da “lavagem de roupa suja” em que se metem as personagens, questões paralelas se sobressaem e se colocam em evidência na encenação; entre elas, as questões socioidentitárias das personagens e seus posicionamentos sobre os afetos, que explodem como uma avalanche diante do público. Sérgio um médico, talvez bem sucedido, mas solitário; Marcos é casado, mas parece ter um relacionamento conturbado com a esposa, a quem o amigo Sérgio revela que não suporta; Ivan se mostra inseguro, dependente da mãe, da madrasta e da noiva, responsável pelo mesmo está no momento empregado, mas numa função com a qual não tem nenhuma afinidade e que ainda não tem nada a ver com as suas aspirações. Os afetos comprometidos implodem em suas vidas pessoais e coletivas, gerando reações inesperadas, provocando agressões verbais e psicológicas que vão corroendo a amizade e a irmandade do trio… tolerância, escuta, isolamento social, enfermidades da contemporaneidade em cena…
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Foto: Mayara Laila
Protótipo Para Cavalo: Corra, Aisha, Corra! traz Aisha Brunno “despida” para o mundo. Não fisicamente, mas a atriz-performer vai desnudando-se em suas afetividades e subjetividades diante (e para) o espectador. Sua corporeidade vai ganhando dimensões múltiplas a partir da proposta dramatúrgica e do olhar de direção de cenas de Bremmer Guimarães.
Vocês estão me vendo aqui?
Pergunta, questiona, provoca a atriz inúmeras vezes…
Vocês estão me vendo aqui?
A performatividade e os possíveis sentidos perlocutórios das palavras-atos provocativos requerem do espectador a disponibilidade para, junto com ela, alcançar outros lugares de enunciação, identitários e campos semânticos.
Cavalo, corpo, língua, linguagem…
Palavras que também se repetem. Palavras soltas em busca de sentido e de cumplicidade. Imagens anacrônicas que vão sendo criadas e ressignificadas nos gestos corporais e nas pequenas partituras físicas que vão sendo delineadas no ato performativo que vai sendo recriado e reativado corporalmente todo tempo durante a presentação do trabalho – corpo-presença. Aisha Brunno engendra uma tessitura de ações em que a sua corporeidade se faz presente e latente diante do olhar do espectador. A partir destes lugares propostos, os presentes são conduzidos a refletirem sobre seus posicionamentos diante de seus lugares e ocupações sociais.
Há um momento da apresentação em que Bremmer Guimarães (presente em cena todo tempo, dirigindo, iluminando, cuidando da sonoplastia, fazendo contra-regragem e participando de algumas cenas) é copartícipe do jogo proposto e vai mostrando/entregando para a atriz/persona/personagem (limiar tênue, não existindo pretensão de ser resolvido na proposta) palavras em folhas que vai sendo lançadas pelo espaço cênico enquanto ela ler cada vocábulo e vai recriando-o com intenções vocais e corporais distintas. A dimensão de leitura aqui, por parte da plateia, não dá conta de deglutir as palavras em simultaneidade com a ação performativa proposta. O corpo da atriz, neste momento, recria os textos-palavras que são jogados ao vento. Tudo é muito rápido. Em questão de minutos, o público se depara com o chão de palavras, o espaço cênico é coberto de palavras-textos em busca de sentidos. Decifra-me ou eu te devoro.
Intuo que seja exatamente isso que diretor e atriz esperam de cada espectador. É proposta uma dramaturgia não linear, que, por meio de um jogo performativo, requer predisposição para que o pacto cênico seja aceito. Vocês estão me vendo aqui? A pergunta inicial ganha, em cada novo ato performativo da atriz, novas ações e, por sua vez, outros sentidos e questionamentos… “O que este corpo te faz pensar, ver, sentir?…” “O que esta corpa te faz pensar, ver, sentir?…” Cada nova imagem remete a outros espaços lacunares que precisarão ser preenchidos.
Foto: Mayara Laila
Em busca de outras lacunas para serem completadas, em outro momento, a atriz canta Carcará:
Carcará
Lá no Sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando e cantando
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará
Come inté cobra queimada
Mas quando chega o tempo da invernada
No Sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu Sertão
Os burrego novinho num pode andar
Ele puxa o imbigo inté matar
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carcará
Pega, mata e come…
Mais uma vez, o ato é mais que um canto. A letra de João do Vale também é pano de fundo para que a atriz faça com que o espectador reflita sobre cada gestualidade que ela vai delineando diante de si, como um corpo em grafia e em constante (des)construção. A voz da atriz-performer assume nuanças que imprimem uma força e uma resistência que dizem também de outros enfrentamentos sociais pelos quais suas subjetividades e identidades são confrontadas cotidianamente. Protótipo de cavalo?…
Vocês estão me vendo aqui?
Ressona, profundamente em mim, a letra da música que encerra o ato performativo de Aisha Brunno:
Hope there’s someone
Who’ll take care of me
When I die, will I go
Hope there’s someone
Who’ll set my heart free
Nice to hold when I’m tired
There’s a ghost on the horizon
When I go to bed
How can I fall asleep at night
How will I rest my head
Oh I’m scared of the middle place
Between light and nowhere
I don’t want to be the one
Left in there, left in there
There’s a man on the horizon
Wish that I’d go to bed
If I fall to his feet tonight
Will allow rest my head
So here’s hoping I will not drown
Or paralyze in light
And godsend I don’t want to go
To the seal’s watershed
Hope there’s someone
Who’ll take care of me
When I die, Will I go
Hope there’s someone
Who’ll set my heart free
Nice to hold when I’m tired[2]
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Fichas técnicas
Arte
Autora: Yasmina Reza
Diretor: Sérgio Abritta
Assistência de direção: Fernando Chagas
Elenco: Alexandre Toledo, Gustavo Werneck e Marcus Labatti
Concepção cenográfica: Yuri Simon
Cenotécnica: Cris Mattos
Iluminador: Yuri Simon
Figurino: Pauline Braga
Trilha sonora: Iago Abritta
Fotografia: Igor Cerqueira
Figurinista: Pauline Braga
Tradução: Emílio de Mello
Projeto Gráfico: Alex Zanonn
Quadro (Antrios): Jean Paulo Oliveira Lopes
Assessoria de imprensa: Ana Luiza Gonçalves
Produção: Alexandre Toledo Produções Artísticas
Protótipo para Cavalo: Corra, Aisha, Corra!
Atuação: Aisha Brunno
Direção: Bremmer Guimarães
Dramaturgia: Aisha Brunno e Bremmer Guimarães
Preparação vocal: Sarah Reis
Trilha sonora: Pelas DJ
Fotografia: Marina Colen e Mayara Laila
Realização: Anômala Teatro e Casa Anômala
[1] Arte já foi montada em diversos países, como França, Inglaterra, EUA, Alemanha e Argentina, a peça foi encenada pela primeira vez no Brasil em 1998, com direção de Mauro Rasi e no elenco Paulo Goulart, Paulo Gorgulho e Pedro Paulo Rangel. Posteriormente, foram realizadas mais três montagens – na Bahia, em 2004, com direção de Ewald Hackler; em São Paulo, em 2006, com direção de Alexandre Heinecke; e, em 2012, tendo no elenco Marcelo Flores, Vladimir Brichta e Claudio Gabriel, com direção de Emílio de Mello.