por Luciana Romagnolli ::
Ao fim de 20 dias, a pergunta que não quer calar é qual a função de um festival de teatro para a cidade, a cena teatral e o público? Responder essa questão à luz da programação deste ano é urgente para que o Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de Belo Horizonte não perca a relevância conquistada em 20 anos de história. Problemas financeiros e de gestão são constantes nos últimos anos – e a dívida não paga de 2012 não pode ser esquecida. Mas há mais em jogo: a relevância artística, a capacidade fomentadora e provocadora, o impacto sobre a cidade.
A crítica não é a uma “boutique de espetáculos”, como recentemente declarou em entrevista ao jornal Hoje em Dia o ator Chico Pelúcio em relação à programação. Embora faltem ações formativas, as últimas edições já tinham – como quase todos os festivais brasileiros têm – foco na apresentação, no resultado – o que se apelida de “vitrine”. Essa é questão para outro momento e contexto; os problemas vistos na edição 2014 são mais específicos.
A relação entre infância e idade adulta e a crítica ao consumismo ecoaram entre os temas mais presentes. A programação começou diluída; “Jamais 203” mobilizou mais de 3 mil pessoas mas deixou a impressão de que falta política e atualidade ao grupo Générik Vauper; e o espanhol “Matéria Prima” dividiu opiniões entre quem o leu como autoajuda ou errância existencial.
Foi só na segunda metade dos 20 dias que o público encontrou propostas mais desafiadoras, trazidas por companhias alemãs, por meio de uma parceira com o consulado daquele país possibilitada pelas celebrações do ano da Alemanha no Brasil. Caso do “Hamlet” do Berliner Ensemble, em uma roupagem de loucura e violência exacerbada e tons de deboche, que imprimiu uma perspectiva original à encenação, ainda que possa ter esvaziado o potencial político; e de “The So-Called Outside Means Nothing to Me”, do Maxim Gorki Theatre Berlin, instigante tanto pela contundência política do texto, que capta o espírito de uma juventude miscigenada e niilista, contrária à sociedade capitalista e heteronormativa, quanto pela linguagem cênica que faz de quatros atrizes um corpo musical único.
A programação nacional foi marcada pelas faltas. À exceção de “Cine Monstro”, texto desafiador de Daniel MacIvor sobre a crueldade humana, vertido por Enrique Diaz em uma encenação que conquista e provoca o espectador, os principais grupos e criadores dedicados ao trabalho de pesquisa e desenvolvimento da linguagem teatral no país ficaram de fora da curadoria. E apesar do trabalho corporal e vocal elaborado, “Café?” desapareceu entre estações de ônibus, sem público (ao menos na primeira apresentação, vista pelo Horizonte da Cena).
O amplo panorama local coloca outra questão delicada. É possível entendê-lo como valorização da produção local, um impulso aos grupos, e qualquer crítica a isso poderia soar antipática. Mas é preciso olhar além. Dos 24 espetáculos de Belo Horizonte, 15 já estiveram em cartaz na Campanha de Popularização do Teatro e da Dança ou no Verão Arte Contemporânea (VAC) desde 2012, e outras estrearam há até cinco anos. Isso não é empecilho, mas faz o FIT repetir mostras que já cumprem funções específicas na cidade, transformando o festival em uma espécie de campanha de popularização privilegiada (porque tem curadoria).
O problema se agrava se a concentração em peças locais implica a diminuição das nacionais e a redução de investimento. A cidade deixa de receber a cena mais ampla das artes no país, para a qual festivais são um espaço fundamental de circulação. Um festival é relevante se faz público e artistas repensarem suas práticas e inserção na sociedade, no confronto com criações alheias. É um lugar de referências, de expansão do olhar e das possibilidades para além do cotidiano.
Um acontecimento marcante no calendário teatral do país neste ano foi a primeira edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, em março, com intensa produção de pensamento e programação concentrada em 11 espetáculos dos quais ao menos uma dezena era perturbadora dos modos de pensar a arte e o mundo. Para que serviria um festival que não produz pensamento nem desloca perspectivas?
O desejo de ser o maior nos faz lembrar de que a qualidade estética não pode ser menos importante do que o volume numérico, que tão bem serve às ações de marketing.
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Veja espetáculos que já estiveram na programação de outras mostras e festivais em BH:
Campanha de Popularização do Teatro e da Dança
2014
“Os Gigantes da Montanha”
“As Rosas do Jardim de Zula”
“Get Out”
“Memórias em Tempos Líquidos”
2013
“E peça que nos perdoe…”
“De banda para a lua”
“Oratório”
2012
“Acontecimento em Vila Feliz”
“Por Pouco”
Verão Arte Contemporânea (VAC)
2014
“O Líquido Tátil”
“Aldebaran”
“Klássico (com K)”
2013
“A Noite Devora seus Filhos”
“Órbita”
“De Nós Dois, Só”
“As Rosas do Jardim de Zula”