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Crítica a partir do espetáculo Bela Vamp, assistido no dia 20 de abril de 2024 no teatro El Extranjero, em Buenos Aires.
– por Victor Guimarães –
Quase um ano depois, volto ao teatro El Extranjero, no bairro de Almagro, em Buenos Aires, para mais uma incursão na cena independente portenha em passagem pela cidade. Algo me atrai a esse espaço, além das excelentes peças em cartaz. Talvez a duração das temporadas, que se estendem por meses, anos a fio. Talvez a decisão de encenar cada obra apenas uma vez por semana, o que cria uma sensação de rotina, estabilidade e rotação constante. Talvez o clima de cooperativa, que envolve uma colaboração entre os sócios do pequeno teatro, a comunidade de artistas que o ocupa e o público fiel, que costuma esgotar os ingressos com antecedência. Isso resulta numa independência frente ao grande mercado teatral, sim, mas também em relação ao financiamento estatal. Em tempos de crise econômica brutal e instabilidade política extrema, ou mesmo de ataque declarado à produção artística, praxe no governo de Javier Milei, a fila para o teatro numa noite chuvosa de domingo é de dobrar o quarteirão. Salta aos olhos a impressão de um teatro de bairro, pequenino, vivo, sempre movimentado, não tão diferente assim do campinho de futebol em frente.
A peça do domingo é o monólogo Bela Vamp, escrito e dirigido por Alfredo Arias, um veterano das artes da cena argentinas, com amplo reconhecimento internacional, passagens pela Comédie Française e pelo Scala de Milão e dois prêmios Molière na bagagem. O ator é o experiente Marcos Montes, de trajetória farta, com mais de quarenta peças, vários prêmios nacionais e carreira numerosa no cinema, em filmes de Ana Katz, Daniel Burman ou Roland Joffé. Esse encontro de titãs do teatro argentino, no entanto, se dá sem nenhuma pompa e circunstância: teatro de bairro, uma hora de duração, palco reduzido, encenação minimalista, economia total de meios visuais e sonoros. Nenhuma pirotecnia, nenhum floreio: corpo, voz, espaço, teatro.
O universo dramático é conhecido: o monólogo será uma reimaginação portenha da figura lendária de Béla Lugosi, o ator húngaro radicado nos Estados Unidos que se tornou mundialmente famoso como o vampiro-mor no Drácula (1931) de Tod Browning, e durante toda a carreira teve sua imagem irremediavelmente associada aos papéis em filmes de monstro, o que acabou por frustrá-lo como artista. A peça inicia com uma caminhada silenciosa de Montes-Béla-Drácula pelos quatro cantos do palco negro e esvaziado. Sua figura esguia, enorme, seu fraque escuro contrastando com a maquiagem alvíssima, seus movimentos lentos e precisos apelam imediatamente para a memória visual do espectador e instauram um clima de atenção extrema ao menor gesto. A depuração dos elementos – quase não há objetos de cena, nem cores, nem música – faz com que o peso da atuação se agigante, e sejamos tragados pelo carisma imediato de Marcos Montes.
O hieratismo de sua figura, suas mãos fartas e seus olhos enormes – como os de um ator de cinema silencioso – convidam a um tête-à-tête direto entre plateia e ator. Num primeiro momento, Béla nos conta, em tom autobiográfico, de suas peripécias nos filmes B da Poverty Row. Seu trabalho com diretores como Edgar G. Ulmer e Ed Wood, sua angústia por não poder representar o papel de um homem de família comum (sempre relegado a ser um estrangeiro ou um monstro). Montes e Arias encontram uma melodia vocal instigante e engraçadíssima para Béla, numa transposição genial do inglês pejado de sotaque húngaro de Lugosi para o espanhol. A cada substituição fonética inesperada do “u” pelo “v” numa palavra, na dicção perfeita acompanhada pelos olhares e gestos expansivos de Montes, a gargalhada é certa.
O conflito central é o encontro de Béla, já no fim da vida, com a psicanalista tresloucada Dorothy Coach, metida a roteirista e sedenta de sucesso no cinema, mas famosa em Hollywood por outro motivo: quase todos os seus pacientes terminaram suicidando-se com um tiro na cabeça em seu consultório. Sem mudar de roupa, Montes agora se desdobra em narrador, Béla e Dorothy. A psicanalista tem uma voz diametralmente oposta: aguda, afetada, recheada de expressões em inglês, num tom fronteiriço e igualmente hilariante que traça a imagem de uma mulher obcecada com a fama a qualquer custo. Se Béla é um astro decadente, Dorothy é um projeto inacabado de diva hollywoodiana. Os diálogos cada vez mais insinuantes entre os personagens – ela quer seduzi-lo, como fez com seus outros pacientes – se dão durante a escrita de um roteiro, que lembra as produções baratas da Poverty Row (injustamente consideradas de segunda categoria e já devidamente redimidas pela história do cinema, vide Detour de Edgar G. Ulmer). Marcos Montes se multiplicará ainda em outro personagem, um produtor de Hollywood a quem tentam vender o futuro filme, e que adiciona mais uma camada de versatilidade ao monólogo.
Há um momento em que o universo dramático se desmonta, e Montes, agora com sua voz de ator, lê um documento histórico sobre Béla Lugosi. O efeito da ruptura é interessante e inesperado, mas a quebra se prolonga demais e a desdramatização passa a contaminar os diálogos entre os personagens, agora já despidos de suas vozes e trejeitos característicos. A construção atoral meticulosa de Dorothy e Béla tarda muito a voltar, e quando volta nos damos conta de que o charme inteiro da peça residia nessa simplicidade povoada, nesse minimalismo que não recusa a edificação da crença em um drama com D maiúsculo. A intrusão de técnicas de desconstrução do drama rebate mal, e a encenação é sempre mais forte quando combina a depuração contemporânea com a antiga crença dramática baseada na imaginação da plateia e no carisma do ator.
Bela Vamp traga mitos da cultura popular internacional do século XX e os regurgita num presente paródico, mas sumamente elegante. Há algo do gesto de PanAmérica (1967), o romance tropicalista de José Agrippino de Paula, nessa retomada cômica das mitologias pop para fazê-las habitar outro espaço-tempo (um vampiro húngaro e uma psicanalista assassina ianque se encontram em Almagro), mas o que é agressividade, excesso e psicodelia sessentista em Agrippino, aqui é parcimônia minimal. A encenação tem como mote a polivalência dos elementos: do figurino às luzes, dos parcos objetos de cena à atuação solo que se desdobra em múltiplos personagens. A capa do vampiro-ator, vermelha por dentro, funciona quase como uma escultura em movimento, e é uma explosão súbita de cor quando tudo tende para o negro. No centro do palco, há uma mesa de madeira sem forro, que é ao mesmo tempo cenário da disputa entre Dorothy e Béla e apoio para um conjunto de luzes, instaladas provocativamente em cima do tampo, sem adornos. A escrita da luz é o trunfo visual mais instigante: num jogo com os chiaroscuros dos filmes de monstro em preto e branco e com as texturas visuais do cinema silencioso, luzes em diagonal duplicam o corpo do ator em sombras na parede e deformam sua figura.
Esse duplo deformado é o segredo de Bela Vamp: retomar a grandiloquência do cinema clássico, sim, mas fazê-lo rebater na parede nua de um teatro de bairro. Reivindicar uma depuração típica do teatro contemporâneo, sim, mas fazê-lo com o corpo de um ator carismático e maleável, capaz de encarnar vários personagens e instalá-los todos com um único olhar ou um só gesto carregado de sentido. A elegância decadente de Béla Lugosi espelha esse encontro entre veteranos que, de tanto experimentar os grandes teatros do mundo, são capazes de reinventar virtudes antigas num palco modesto, mas sem nenhum cheiro de mofo. Ao final, luzes e música se intensificam, a atuação se incendeia, e o tributo paródico de Arias e Montes nos prova uma vez mais: a melhor homenagem é sempre aquela que destrói o original para fazê-lo renascer, sem nostalgia, à altura do que já foi, mas nos termos do que virá.
FICHA TÉCNICA
Texto: Alfredo Arias
Direção: Alfredo Arias
Elenco: Marcos Montes
Figurino: Julio Suárez
Desenho de luz: Matías Sendón
Maquiagem: Matías Nazareno
Fotografia: Leandro Allochis
Assistência de direção: Emanuel Fernández
Produção executiva: Luciana Milione