Crítica bruta das Bacurinhas em Ópera. Ato em três partes.
– por Ana Luisa Santos –
PARTE 1
eu começo a escrever com esse gosto de memória. Dessa música[1] que eu ouvi primeiro com você ou melhor, você me apresentou, me aplicou mesmo porque sabia e sentia que eu também compartilhava daquilo. Quem não?
quem nunca quis ser homem nem que fosse um pouquinho, um pinguinho, um xixi em pé, uma sem camisa no calor ou na piscina, quem nunca. Quem nunca quis ficar com mulher, quem nunca gozou dirigindo ou fumando ou bebendo ou realizando, sim realizando um pouco, mesmo que achando grande, quem nunca.
quem nunca se ouviu dizendo uma(o) filha(o) da(a) puta(a) ou caralho com gosto, quem não soltou uma porra, quem nunca ejaculou na cara, às vezes, na própria cara, quem nunca encheu a cara, quem nunca encheu a boa para falar qualquer coisa, qualquer merda, quem nunca torceu ou chamou o garçom com aquele braço, aquele gesto, aquela camaradagem. Quem nunca.
quem nunca pensou em se dar bem, quem nunca gostou de ganhar, quem nunca quis vencer, vencer, olhar lá de cima, de achar que conquistou algo ou alguém, quem nunca.
quem nunca gostou de respostas simples, prontas, fundamentais. Quem nunca acreditou que os conflitos resolvem tudo ou que a força física ou a força bélica ou a força simbólica decidem tudo. Quem nunca achou que tamanho era vantagem, era continente, era extensão, era exército. Quem nunca achou que tinha uma solução.
quem nunca quis alguma garantia.
quem nunca quis ajuda, apoio, comida na mesa, roupa lavada, casa limpa. Quem nunca quis filhas(os) criadas(os), lindas(os) para a foto, penteadas(os), quem nunca quis ser pai, de preferência sem precisar ser mãe.
quem nunca sonhou com um pai todo poderoso, onisciente, eficiente, generoso, rico, compreensivo, misericordioso, que empresta o próprio carro, o próprio filho e o cartão de crédito com senha. Quem nunca.
quem nunca brincou de deus, quem nunca desejou jesus, quem nunca quis não dar satisfação, quem nunca quis ser a louca, quem nunca quis ser forte, ser fatal, ser sucesso.
quem nunca viu ÓPERA BRUTA (Bacurinhas, 2018) pode ter algumas dúvidas sobre quem, sobre nunca e sobre o que quem nunca deixou de saber, ou quis deixar de saber.
porque quem sabe, já sabe, embora conviva, quem sabe já sabe do horror que é parte desse hoje, desse governo federal, desse presidente que quer resolver tudo com arma, medo e pobreza, muita pobreza e mediocridade.
sim, quem sabe já sabe da violência patriarcal, colonizadora, racista, misógina. Quem sabe já sabe, já percebeu a necropolítica da lama, do lema, do genocídio irrestrito de mulheres, indígenas, negros, crianças, jovens, muitos jovens por balas ou bolas, por políticas ou políticas, por fome ou suicídio. Morrem também por colesterol carne vermelha ou crueldade, por lucro, por açúcar, doença, perversidade ou consumo de terra ou de gado.
mas quem nunca viu ÓPERA BRUTA pode até imaginar isso, essa denúncia. Essa denúncia que atravessou a eleição como uma resolução. Porque acabar com isso tudo que está aí, porque acabar com a corrupção, com a convulsão, com a confusão, com a contusão, porque quem nunca quis acabar, quem nunca quis começar não quer conviver, não quer, quer passar a denúncia pra frente, passa ou repassa.
quem nunca pode imaginar o clichê virado do avesso de fazer homem sendo mulher e embaralhando tudo isso. Porque quem nunca riu da piada ou imaginou ser puta(a) ou ter puta(a) ou dar ou comer ou ter pau pode tentar estar do lado e cantar, cantar nesse funeral.
ÓPERA BRUTA é desses funerais.
desses ritos de transmutação capazes de gerar espaços em quem nunca podia imaginar que ainda cabia alguma coisa, ainda dava para caber, a cabecinha pelo menos, mas não.
a possibilidade de redenção que a ÓPERA BRUTA transmite – e é mesmo da ordem da transmissão, do transistor, da composição, da emissão de vozes, versões, varões e falos, muitos fatos, falos, falas e um vazio, que é espaço, é espaço interno.
uma travessia épica e ética, uma ópera de discursos brutos, bruscos, brutalidades, desesperos em que quem nunca se identificou com o herói ficou procurando o inimigo, o alienígena, a força mortal que ameaça o planeta, mas está mais perto, do lado, em Macacos, no copo, na cerveja, no gole seco do sêmen ácido.
quem nunca foi herói não perdeu nada porque ele nunca veio mesmo. Esse vestígio que estrebucha de medo da pica, da perda da pica, ficou na memória. E é ainda às vezes desse lugar que ainda gera ressentimento. Esse delírio de arranha-céu e indústria, essa vertigem da ação da bolsa, da multiplicação infinita de zeros e centímetros. Esse delírio da branquitude. Esse sonho de diâmetro e alqueire, esse crime latifúndio.
quem nunca viu ÓPERA BRUTA pode ter dificuldade de imaginar essa vulnerabilidade de cueca. Quantas versões são necessárias para demonstrar, encenar, performar outras possibilidades de masculinidades. Ou até de feminilidades e feminismos diante do fascismo do macho branco, da fêmea branca.
quem nunca quis fazer uma denúncia, mas também inventar outro mundo. Quem nunca entendeu que não basta a denúncia, não basta a foto da bunda. Quem nunca cansou de tanta merda, merda tão nítida, tão óbvia, tão declarada, assinada. A denúncia não basta, infelizmente, nesse país, nesse mundo impune ou ex-pune. Não saímos impunes, aliás, a ÓPERA BRUTA não sai de nós. Estamos e seguimos entre vozes tentando ressignificar o que ouvimos, o que observamos, o que amamos, o que perdemos.
mas se você nunca viu ÓPERA BRUTA, quem nunca perdeu a peça, a temporada, o teatro. Quem nunca foi ao teatro. Quem nunca ouviu música de textos e corpos misturados, enganchados no mesmo contexto desumano.
quem nunca fez xixi em pé ou sentado, quem nunca engoliu choro ou porra ou sapo, quem nunca se sentiu livre ao deixar o trabalho, quem nunca.
quem nunca fez crítica de teatro não sabe como esse trabalho é difícil. Se você faz crítica, se nunca leu, pode até tentar nomear as árias, lembrar dos atos, das músicas. Mas a cena está misturada ali, aqui, em mim, quem nunca está cheia(o) de hoje e de ontem. E não é fácil.
não é fácil testemunhar o trauma, a chacina. Testemunhar o trauma de maneira coletiva. Testemunhar o trauma geral, o problema cujo nome não é só homem, não é só branco, mas civilização, barbárie, progresso, família, religião, moda, pornografia, tecnologia, mercado, linguagem.
quem nunca se sentiu franco, quem nunca se sentiu forte, quem nunca se sentiu absurda(o). O paradoxo joão de deus: como alguém tão ruim pode ter sido tão bom ou como alguém tão bom pode ter sido tão ruim.
quem nunca perdeu o pai, o padrasto, o mentor, o guru, quem nunca perdeu o líder, o messias, o companheiro, o cúmplice salvador. Quem nunca perdeu essa ideia de ver alguma coisa nova. ÓPERA BRUTA desfila, desalinha, desatina, desativa esses e outros vestígios diante de uma platéia confortável, servida, embriagada, uma platéia que brinda, que sorri. Uma platéia que concorda. E que sai desiludida também.
eu senti uma expansão. Uma expansão de possibilidades de performar as masculinidades. Uma expansão da necessidade de expansão das possibilidades de performar a vida.
o fim da ilusão da autonomia. As ruínas, os escombros do autoritarismo. Os porões da ditadura e seus carrascos. Todos ali, do seu lado, do meu, do nosso, tentando performar o trauma como um gesto de reparação. Anunciar em alto e bom som o fim do mito do um, do uno, do líder, da nação, do país. Desativar o normal.
PARTE 2
“Deus, eu estava enjoada de carregar um corpo de mulher ou tudo o que está ligado ao corpo de mulher. (…) ´É claro’, escreveu ela, ‘que nem toda materialidade é criada igual, e é preciso viver o suficiente a vida não como coisa para saber a diferença’. Entre parênteses, ela acrescentou: ‘Isso pode explicar, em parte, por que a preparação da carne da pornografia masculina gay não produz a mesma espécie de ansiedade da pornografia heterossexual: como os homens – brancos, ou de qualquer categoria – não têm a mesma relação histórica com a objetificação que as mulheres têm, sua preparação da carne não corre imediatamente o risco de parecer uma redundância cruel’.
Às vezes você quer ser carne temperada; quer dizer, render-se ao corpo, à fome dele, à necessidade que ele tem de contato. Mas isso não significa que você necessariamente quer ser servido malpassado ou cozido lentamente. E outras vezes (…) você quer dar uma volta, passar despercebido, escolher as vistas da cidade que quer. Por isso eu estava tão louca por uma máscara no desfile de Halloween: porque eu não queria ser a coisa que era olhada, que podia ser rejeitada ou depreciada.”
Olivia Laing, com citação de Maggie Nelson
isso é interessante para pensar por que observar mulheres, corpos de mulheres performando discursos e gestos machistas permite que se perceba o que vaza, o que gera atrito. Será talvez senão que você perceba o corpo de uma maneira e o que a voz, uma voz desse corpo diz, você perceba de outra, de outra maneira que muitas vezes nega esse corpo, essa mulher.
essa contradição de percepção, essa síncope de sentido, esse boot da cena, essa bomba semiótica da performance, essa sabotagem da linguagem, da narrativa, essa guerrilha em cena, do que é cena, do que é visto em ação, na teatralidade, isso promove um choque, um choque múltiplo.
depois da ÓPERA BRUTA ouvi algumas pessoas, ouvi expressões pesarosas, desanimadas, desoladoras, resignadas. “Os homens ficaram para trás, só as mulheres avançaram”. Ou “não tem jeito, é assim mesmo”. Ou ainda o triste fim da possibilidade de paquera para mulheres héteros.
não sei.
A experiência para mim começou antes, quando fui retirar o ingresso para ver a peça. Depois da fila, no guichê, quando chega a minha vez, sou abordada pela pessoa que está no atendimento, enquanto peço uma cortesia: “Eu vi você”, ela disse. Eu ganhei o ano de trabalho. Alguém me viu.
- Você me viu?
- “Sim, vi, era você.”
- Mas como, onde?
- “No ponto de ônibus.”
- Hoje?
- “Não, no início da semana. Eu estava no ônibus passado e vi você no ponto. Me chamou a atenção a forma carinhosa com que você conversava com uma senhora, parecia sua mãe.”
Muito obrigada feminismo: posso ser lésbica com minha mãe e alguém curte reconhecer isso.
PARTE 3
Eu poderia justificar a cortesia de diversas formas. Mas posso dizer que tentei contribuir com o processo de pesquisa para ÓPERA BRUTA. Em 2018, realizei a performance VIRIL[2] no “Bacurinhas em Debate”. Foi um momento muito interessante, em que compartilhamos algumas dúvidas, denúncias e intuições sobre as masculinidades.
então eu não sei.
eu não entendo muito bem as separações ou as leituras fatalistas. Essas leituras do fim. Essas leituras lineares. Será que a ÓPERA BRUTA acabou? Acho que não. Acho que ela continua, em suas múltiplas síncopes, agora.
porque para além da denúncia, para além do refrão “É isso aí…” (vide versão de seu jorge e ana carolina, “eu não sei parar de te olhar” celular), para além da denúncia, a gente consegue enxergar outra coisa na ÓPERA BRUTA? Que esforço precisamos fazer para ir além da denúncia?
será agora um tempo de denúncia? Será uma leitura de denúncia? Será a crítica uma denúncia de leitura?
o que o trauma e/ou a performance do trauma mobiliza em mim? O que move? Como eu escuto a denúncia? Em que tempo eu a processo? É o caso de processar? É o caso de transmutar? É o caso de pedir reparação? Pra quem? É o caso de pedir? É o caso de pedir para parar?
será que enxergamos as performers em cena? Será que enxergamos as performers em cena ou só os discursos? Será que enxergamos as performers? Será que nos abrimos para as suas presenças, para as suas presenças negras? Como agenciamos o convívio com suas presenças? Será que o discurso é o único meio de contato? O que significa enxergar as performers?
o desafio da presença, o desafio das presenças das performers que perfuram os discursos, as versões, as aversões, os fatos, com sua atenção e atitude. Não estamos em ÓPERA BRUTA diante de um concerto de cinismos. São outros sinos. As performers não lidam cinicamente com os materiais e são muitos materiais. As performers trazem os materiais para a carne, são atravessadas por eles, assim como nós. Fazem da carne parafuso, broca, prego, martelo, furadeira.
ainda assim, o riso é bem vindo em alguns momentos. Se não pode rir não é sério. Mas o constrangimento, que já é próprio do teatro, das artes da presença, o constrangimento diante do outro é potencializado.
para começar com aquela roda, aquele grupo de homens sentado na frente, em cena, tomando cerveja, tomando cerveja em cena. Eu atrás, só ficava observando e pensando: como você consegue engolir? Em que momento você acha mais adequado encher o copo? Por que você está brindando e com quem? Mas o trabalho não acaba aí, estamos só começando, sim.
Por que depois e durante e agora seguimos tentando transmutar, traduzir e trair os discursos em nós. O machismo em nós, a misoginia em nós, o racismo em nós, a violência em nós e nos outros.
soterradas(os), enlameadas(os), envergonhadas(os), performamos o constrangimento do trauma e diante do trauma nessa vida que está muito parecida com uma ÓPERA BRUTA.
eu preciso dizer que não sou pesquisadora dessa linguagem, da ópera. Mas acho muito interessante essa relação musical, essa conexão sonora tão potente, tão forte quanto as imagens brutas, as imagens brutais.
perceber as performers faz a gente pensar na arte da performance, na arte da performance de gênero em suas possibilidades de desvios de narrativas e de desejos. A cópia da cópia. O que vaza nesse transbordamento que vai além da estratégia drag do coturno, do charuto, do tom grave da voz. A gravidade está em todos os lugares, em todos os olhares, por todo o corpo e o espaço.
perceber as performers faz a gente pensar na demanda de energia para performar certos tipos de masculinidades. Faz a gente pensar também na demanda de atenção, nos territórios de visibilidade, nas intenções dos discursos. Não é só sobre ser homem, mas também sobre ser pastor, ser candidato, ser youtuber, ser consultor, ser professor, ser provedor, ser pai, ser assassino, ser bicha, ser preto, ser branco, ser político, ser pobre, ser podre.
perceber as performers faz a gente pensar em como há momentos em que os corpos performam a presença em consonância com o discurso, enfatizando-os. Mas há também momentos em que as presenças performam em dissonância com os textos, os olhares, as narrativas. É mais dissonante mesmo. E isso é mais interessante.
performar o pau sem ter pau para mostrar como é ter pau sem ter pau na verdade.Ter pau no sentido da coragem, no sentido de ética, no sentido de se abrir às diferenças, um pau alteridade, quero ver você ter pau pra isso. Pode dar pau.
essa coragem de abertura, de vulnerabilidade, essa coragem de levante, essa coragem de lidar com o trauma e tentar elaborar, essa invenção de coragem nada bruta que canta, que compõe, que instiga e cria um novo ritmo, um novo tempo, uma nova temporalidade, A ÓPERA BRUTA não acabou. Ela mal começou.
Leia aqui o Posfácio: Pós-fácil.
[1] “Cinema Americano” com Thaís Gulin, caso você queira ouvir enquanto lê ou fazer esse exercício de ler enquanto escuta.
[2] Sobre a performance e dramaturgia completa.
ficha técnica
Direção: Juan Castrel
Atuação: Ana Cecilia, Fernanda Rodrigues, Manu Pessoa, Michelle Sá e Josi Lopes
Dramaturgia: Idylla Silmarovi e João Maria Kaisen de Almeida
Direção Musical: Josi Lopes
Trilha Sonora: Carou Araújo e Manu Ranilla Ranilla
Arranjos: Bruno Souza Banjo
Coreografias: Thales Brener Ventura
Figurino: Thales Brener Ventura
Cenografia, adereços: Jordana Ferreira
Projeção Audiovisual: Paula Kimo
Iluminação: Ricelle Alonso
Sonorização: Debris Oliveira
Arte gráfica: Alexandre Hugo
Assessoria de Imprensa: Fruta Pagã [Luh Pantoja e Camila França]
Realização e Produção: Coletivo Bacurinhas e Fruta Pagã [Luh Pantoja e Camila França]