— por Daniel Toledo —
Crítica a partir da programação do 25º Festival de Teatro de Curitiba, realizado entre 22 de março e 3 de abril de 2016, considerando os espetáculos brasileiros “Vaga Carne” (Grace Passô/MG), “Eles não usam tênis naique” (Cia. Marginal/RJ), “Caranguejo Overdrive” (Aquela Cia./RJ), “Confete da Índia” (André Masseno/RJ), “Quem tem medo de travesti?” (As Travestidas/CE) e “Os Pálidos” (Cia. Senhas/PR).
Racismo, machismo, repressão cultural e comportamental, colonização do imaginário e extermínio dos povos nativos foram, segundo consta, algumas das principais estratégias utilizadas pelos europeus ao longo do que se chama de conquista e, posteriormente, colonização do continente americano. A partir dessas estratégias, estabeleceu-se, àquela altura e dali em diante, uma estrutura colonial de poder que persiste pouco alterada até os dias atuais, tendo como esteio uma série de discriminações sociais, raciais e de gênero que, com o tempo, foram codificadas e naturalizadas pela sociedade brasileira.
Em suma: se o colonialismo, como estrutura institucional, deixou de existir há algumas décadas, a colonialidade, como sistema de pensamento e comportamento, segue, ao que parece, vigorando em nossos dias. Entre os efeitos da colonialidade que evidentemente se manifestam em nosso cotidiano, parece figurar, por exemplo, certa dificuldade de reconhecer e valorizar o conhecimento gerado por tais “raças”, “etnias” e “nações”, assim como por seus herdeiros e herdeiras, ainda hoje, muitas vezes, tratados como objetos – em vez de sujeitos – da história.
Caracterizado por dramaturgias contemporâneas e originais, o recorte de espetáculos que conduz esta reflexão sobre a 25ª edição do Festival de Teatro de Curitiba nos permite propor uma espécie de historiografia instantânea de importantes fenômenos atualmente experimentados pelo país. A esse repeito, trata-se de uma seleção de trabalhos que lança luz sobre um potente grupo de perspectivas e visões de mundo, por muito tempo invisibilizadas dentro e fora dos teatros brasileiros.
Ouvimos e assistimos, em cena, às vozes da mulher negra, do trabalhador do mangue, da prostituta paraguaia, do jovem de periferia, da travesti da esquina e da travesti que ocupa o palco do teatro – e, felizmente, já não somente o da boate. E quando aparecem em cena as personagens de antigos – e bastante atuais – costumes burgueses, é justamente para questionar-lhes o sentido, tirar de seus pés o edifício quatrocentão que, também dentro e fora dos palcos, começa a apresentar evidentes fissuras.
“Vaga Carne”, de Grace Passô (MG), apresenta-nos uma dessas fissuras, ao constituir-se como voz que atravessa o espaço e ocupa o corpo de uma mulher. Ocupa corpo de uma mulher negra, e redescobre, em nossa companhia, alguns traços dessa experiência. Guiados por essa voz, habitamos esse corpo com ela, vemos o mundo com seus olhos, e também com que olhos o mundo a vê. Ouvimos sobre a luta diária e histórica contra um silenciamento ancestral que começa, enfim, a ser rompido e escorrer sociedade afora.
Estabelece-se, então uma situação de desencaixe entre o que se ouve e o que vemos em cena, pois o que se vive, ali em “Vaga Carne”, talvez se pareça mais com uma experiência interna. O que se vive é a experiência de ouvir vozes internas, historicamente silenciadas, que muitas vezes tardam ou falham em alcançar a escuta do outro. Como vozes e olhos externos, os integrantes do público também são convocados a se pronunciar, em um experimento que chama atenção à força da palavra e do olhar do outro sobre aquilo que constituímos, cada um, internamente, logo ao nascermos e ao longo de toda a existência, como parte de nossa identidade pessoal e social.
“Eles não usam tênis naique”, da Cia. Marginal (RJ), igualmente nos propõe um passeio entre vozes, experiências e enfrentamentos ainda pouco vistos no palcos do teatro brasileiro. Com propriedade e certo traço documental, a montagem nos leva à realidade social do Complexo da Maré, que decerto se assemelha a inúmeras regiões de periferia do país. Ao longo da peça, convivemos com o horizonte do tráfico de drogas e suas reverberações sobre a juventude, as amizades, as aspirações profissionais e as relações familiares, deixando claro ao público que ali – e também no asfalto, quem sabe? – fazemos todos parte de uma mesma guerra.
Concebido e apresentado por artistas jovens do Complexo da Maré, o espetáculo traz corpos, vozes e discursos que em nada se referem à tradição burguesa do teatro. Tendo como eixo narrativo a ascensão de uma jovem negra, moradora do morro, dentro do sistema do tráfico, a montagem deixa ver, por outro lado, a contradição de uma sociedade subalterna e, em certo sentido, paralela, que reproduz, em si, algumas das mesmas ferramentas de opressão usadas por seus dominadores, tal qual o machismo e o patriarcado. Alinhada, em muitos sentidos, às sucessivas revoluções internas e externas mobilizadas pela juventude negra do país, “Eles não usam tênis naique” traz em si algumas pistas de uma iminente transformação que vez ou outra se anuncia.
“Caranguejo Overdrive”, da Aquela Cia. (RJ), por sua vez, nos propõe uma revolução dentro da própria historiografia brasileira. A partir da perspectiva de um trabalhador do mangue do Rio de Janeiro de fins do século XIX, a montagem reescreve e justapõe, ante ao público, dois importantes acontecimentos da história carioca e brasileira. Em primeiro lugar, a criação do Aterro do Flamengo, com a eliminação do mangue como ecossistema e meio de vida; em segundo, a mal contada Guerra do Paraguai, país ao qual nosso narrador e personagem central, agora ex-catador de caranguejos, é enviado como suposto – e supostamente nobre – voluntário da pátria.
Inspirada na obra “Homens e caranguejos”, do escritor Josué de Castro, e na obra da banda Chico Science & Nação Zumbi, importante referência do movimento manguebeat, a montagem combina recursos dramáticos, narrativos e performáticos para compartilhar conosco certa incerteza em relação às ideias de expansão, progresso e desenvolvimento como possíveis antídotos para o cenário de exploração, desigualdade e injustiça que desde sempre marcaram a sociedade brasileira. A partir de pontos de vista bastante singulares e claramente subalternos, vindos, por exemplo, do próprio catador de caranguejos e de uma prostituta paraguaia que encontramos pelo caminho, revisitamos e reconstruímos, de modo bastante contundente, algo de nossa perspectiva em relação à história e à realidade do país.
“Confete da Índia”, de André Masseno (RJ), também nos conduz a uma espécie de ronda noturna pelas margens da história e da identidade brasileira. Remontando à marcante estética do desbunde e dos anos 1970, o artista propõe diálogos com obras de Arthur Omar e Gal Costa, trazendo ao centro da cena um corpo claramente trans. Embalados por uma trilha oscilante e repleta de contratempos, dentro da qual o disco “Índia”, da cantora baiana, ganha destaque, acompanhamos algo como um ciclo de vida deste corpo, para o qual, vale dizer, parece não haver descanso ou conforto.
Testemunhamos, então, sua dança exaustiva, a precariedade de suas condições de vida, sua atitude de desbunde e também o risco, sempre presente. De modo bastante fluido e fluente, transitamos entre estados corporais relacionados ao show e ao trottoir da calçada, e outros, geralmente invisibilizados e relegados aos bastidores de uma existência nem sempre gloriosa. Enquanto o discurso oficial defende a persistência da ordem e do progresso, “Confete da Índia” nos conduz ao caos, à solidão e à falta de perspectiva daqueles e daquelas que, subalternizados pela moral cristã e a ordem patriarcal que ainda rege nosso Estado laico, encontram somente na esquina e na noite alguma possibilidade de sobrevivência.
“Quem tem medo de travesti”, do coletivo As Travestidas (CE), por outro lado, convida o público a perspectivas bastante contemporâneas em relação ao mesmo universo trans. Novamente transitamos entre palco e bastidores, entre o visível e o invisível de existências marcadas desde muito cedo pelo preconceito e a exclusão. Família, escola e Igreja são algumas das instituições visitadas ao longo da trajetória das seis personagens que acompanhamos em cena, as quais transitam entre registros performáticos, narrativos e dramáticos para organizar, diante de nós, aspectos marcantes de suas trajetórias de vida, oscilando sempre entre o específico e o universal, claramente passíveis, portanto, de identificação por parte do público.
Conduzido por corpos em visível trânsito e por uma visualidade que remete tanto à cirurgia plástica quanto a um estado corporal de permanente montação, o espetáculo é composto por cenas inicialmente autônomas e independentes, mas que, juntas, constituem um quadro complexo, ao mesmo tempo denso e poético, sobre as experiências de vida de pessoas trans no país. Geralmente objetificadas pelo teatro e a sociedade, as travestis se tornam, neste e nos demais trabalhos realizados pelo coletivo, em legítimos sujeitos da história, compartilhando com o público, a cada apresentação, visões de mundo complexas e contundentes, ao mesmo tempo em que generosas e essencialmente humanas.
“Quem tem medo de travesti?” (As Travestidas). Fotos: Kelly Knevels
“Os Pálidos”, da Cia. Senhas (PR) deixa, por fim, a humanidade de lado e apresenta ao público algo que se assemelha outra face do jogo. Estamos, agora, em meio aos poderosos, imersos em seus jogos de cobiça, cálculo e sedução. Discretamente charmosos, trajados como reza a cartilha da alta burguesia, os personagens circulam em meio ao público, propondo – e, por vezes, alcançando – cumplicidades e intimidades. Embalados por certo clima de embriaguez, tais figuras transitam entre rasgadas verdades e arrojadas dissimulações, convencendo a todos e a ninguém.
Auto-centrados, rodeados de objetos e caprichos, confinados dentro de seus próprios assuntos e universos, incapazes de enxergar o outro para além da subalternidade e da opressão. Assim, ao que parece, são “Os Pálidos”, interessados em ilusões de si mesmos, em fantasias sobre o que acontece fora de seus muros e em relações que, não raro, objetificam o outro, reduzindo-o aos moldes de seus próprios desejos, objetivos e, por que não dizer, projetos de sociedade. É como se, ali, o outro não existisse, a não ser em sua órbita, em sua função.
É disso que parece se tratar, afinal, o pensamento colonizador. Parece se tratar da radical inexistência do outro, da afirmação do próprio universo como único universo possível, negando a ideia de uma totalidade social mais do que diversa, talvez pluriversal. E descolonizar-se talvez seja afirmar que as diferenças não necessariamente pressupõem desigualdades, hierarquias, inferiorização ou exploração. Seja, talvez, afirmar que outras racionalidades são possíveis, e outras narrativas, necessárias.
Ainda que a colonialidade por vezes nos leve a pensar o contrário, a racionalidade moderna e suas instituições, muitas das quais produzidas e reproduzidas como formas de garantir e legitimar a continuidade do processo colonial, parecem não constituir o único cérebro da humanidade, ou ainda o único horizonte a ser contemplado. Talvez constituam, pelo contrário, um grupo de edifícios prestes a ser desconstruído e reinventado, e não mais o espelho único de um futuro supostamente ideal a ser perseguido por toda a humanidade.