Crítica a partir do espetáculo Manual dx Guerrilheirx Urbanx
– por Luísa Lagoeiro –
Foto de Daniel Protzner
Foto de Igor Cerqueira
Foto de Paulo Lacerda
Lá fora está acontecendo o domingo sangrento, as pessoas estão morrendo de fome nas ruas e você quer fazer uma peça de teatro.
Guillermo Calderón
Uma série de ações performáticas, como um desfile por um tapete vermelho infinito, o canto das três raças e uma mulher que fala do alto de uma marquise em estilo moderno, acontece do lado de fora do teatro Francisco Nunes, no Parque Municipal, em Belo Horizonte. O espetáculo Manual dx Guerrilheirx Urbanx, dirigido por Marina Viana e criado como espetáculo de formatura dos alunos do Cefart (Centro de formação artística e tecnológica) da Fundação Clóvis Salgado, se desenvolve como uma resposta a algumas dessas ações iniciais e a um pequeno trecho retirado do texto Neva, de Guillermo Calderón, “Querem fazer uma peça de teatro”? Sim, eles respondem, mas, assim como para o autor chileno, brevemente citado no prólogo do espetáculo mineiro, para esse grupo de artistas, “Teatro é campo de guerra!”.
A guerra começa e, em meio a gritos e correria dos atores, são atiradas, agora no palco, bombas “Molotovo”, uma referência à bomba incendiária caseira conhecida como Coquetel Molotov. Porém, o que explode das Molotovo é o brilho do glitter, e isso dá o primeiro indício de que o tom do enfrentamento que se apresentará durante o espetáculo transitará da ironia à dureza, do poético ao científico, do literal ao metafórico.
O Manual dx Guerrilheirx Urbanx se desvincula do encadeamento lógico das cenas. É feito de montagens, recortes e plágio-combinações, que atualizam o Manual do Guerrilheiro Urbano, escrito em 1969, por Carlos Marighella. Marighella foi um ativista político brasileiro que defendia a revolução socialista e lutava contra os governos autoritários, tendo sido perseguido e preso diversas vezes desde o Estado Novo até a Ditadura Militar, quando foi morto, a mando do regime. Seu Manual apresenta ações práticas para orientar a luta armada, descrevendo como deve agir e se comportar o guerrilheiro urbano, ou seja, quais as suas atribuições e características.
O espetáculo, “transubstanciando carnavandalizadamente o documento mimeografado de Marighella”, apresenta uma proposta que, para além de todo o conteúdo engajado e da importância das reflexões trazidas, é também capaz de se aproximar do público e entreter. A estética do carnaval, presente em toda a obra, é um importante indicativo de sua relação com as questões sociais: a linguagem popular e informal, o questionamento das autoridades, a paródia, o protagonismo dos corpos, a noção de alteridade e coletividade. Esse “tempo alegre” carnavalesco, como define Bakhtin, capaz de reunir pessoas nas diversas festas populares em que se manifesta, também permite a aproximação entre o espectador e o teatro.
A capacidade de proporcionar momentos de descontração ao público é considerada, por alguns teóricos, como uma característica fundamental do teatro. Mas um aspecto importante dessa característica, principalmente em momentos políticos conturbados como o que vivemos hoje no Brasil, é que ela não se expresse de maneira vazia.
No caso do Manual dx Guerrilheirx Urbanx, é possível se divertir ao mesmo tempo em que se vivencia momentos de desconforto e questionamento. O público, apesar de descontraído, é constantemente chamado a se posicionar, e alguns aspectos cênicos – como as interrupções, o distanciamento bretchiano, o não encadeamento das ações, a fragmentação, os saltos dramatúrgicos, a montagem e o próprio gênero narrativo -, contribuem para que seu relaxamento não seja completo além de impedirem a identificação total com os personagens e situações.
Esses efeitos não permitem que o espectador vivencie uma catarse diante dos fatos narrados e saia aliviado. Pelo contrário, ele é levado a se entender como sujeito político e convidado a continuar lutando por seus direitos do lado de fora do teatro. As quebras de expectativa e interrupções provocam o espectador a analisar mais friamente a situação que se torna simultaneamente reconhecível e estranha.
Uma das primeiras quebras acontece na apresentação dos personagens da obra. Os atores se caracterizam diante do público e se apresentam dizendo, em um microfone, o nome do personagem que irão representar. Nesse momento, fica claro para o espectador que não há a intenção de criar a ilusão de que ali estão presentes, de fato, aquelas pessoas. Na verdade, o público deve enxergar os atores juntamente com a maneira como concebem aquelas figuras.
Cada ator assume um personagem histórico que representa algum tipo de enfrentamento político tratado ao longo da obra. Esse aspecto gera um distanciamento temporal entre o espectador e o personagem apresentado, ao mesmo tempo em que traz à cena personagens que jamais poderiam se cruzar, por não pertencerem a uma mesma época. Figuras como Jesus Cristo, Joana D’Arc, Dandara Zumbi dos Palmares e Frida Kahlo, separados por séculos, mas interagindo numa mesma encenação.
A partir do pano de fundo das ações de guerrilha, propostas por Carlos Marighella, cada um dos personagens traz uma inquietação que se relaciona com o presente, com a vivência dos atores e com momentos históricos ligados à sua atuação ou à do autor do Manual.
Em uma das cenas, por exemplo, é possível observar quatro camadas do passado: Malcon X lê um trecho do Manual do Guerrilheiro Urbano enquanto Jesus Cristo apresenta algumas palavras desse Manual escritas em cartazes; em seguida se ouve a voz de Caetano Veloso em um discurso proferido no Festival da Canção de 1968 e, na sequência, uma das atrizes lê um poema de Bertolt Brecht. Esse conjunto de imagens anacrônicas, utilizando aqui o conceito de Didi-Huberman, distanciam o espectador, por fazerem referência a tempos passados, mas também o aproximam, por permitirem que ele faça uma conexão desses momentos históricos com o presente.
Dentro dessa mesma perspectiva anacrônica, os atores se apresentam, algumas vezes, comentando ações de outros personagens a partir do ponto de vista de sujeito contemporâneo. Em outros momentos, o personagem é trazido para a atualidade e comenta, por exemplo, o uso póstumo de sua imagem pelo capital. Como diria Marx: “O capital não se importa […].”
O distanciamento também acontece algumas vezes por meio da comicidade gerada pelo uso da paródia, em que se percebe um conflito entre forma e conteúdo e, com isso, é provocado o estranhamento. No Manual dx Guerrilheirx Urbanx, uma série de paródias são apresentadas, de orações religiosas subvertidas, passando por cenas históricas reelaboradas, até músicas de outros momentos históricos com letras atualizadas.
O recurso cômico aparece também na construção dos textos, na escolha dos figurinos, em algumas músicas e em diversas ações dos personagens. Em um dos momentos, por exemplo, Frida Kahlo descreve a movimentação dos atores em cena como se narrasse uma partida de futebol. O humor aí acontece tanto pelo uso da paródia desse tipo de narração quanto pelas relações inesperadas entre os personagens de épocas distintas.
Entre eles, está Ernesto Che Guevara, que, assim como é visto nos dias atuais, é apresentado a partir de suas contradições. O distanciamento nesse caso é proposto por meio de acontecimentos-gestos que o envolvem. Che é questionado a respeito de sua homofobia e machismo pela atriz-personagem Sâmylla Aquino-Maria Bonita. Diante da impossibilidade de resposta do personagem, que, por viver em outra época e se enquadrar em uma situação de privilégio em relação a essas questões, provavelmente não se questionou sobre elas, quem responde é Rodrigo Carizu. Distanciando-se por completo de Che Guevara, Carizu se apresenta como “ator trans-viado-sapatão” e, portanto, ciente e não reprodutor desses preconceitos.
Em outro momento, Che Guevara profere o mais conhecido monólogo do personagem Hamlet, de Shakespeare, fazendo referência a essas contradições que se apresentam com o passar do tempo. Dessa forma, o espetáculo parece dizer, que hoje os métodos de ação e o pensamento do revolucionário argentino só fazem sentido se atualizados para o contexto presente. Ademais, assim como o jovem Hamlet apresenta sua dificuldade de ação diante de questões que, para ele, já estavam superadas, nos vemos atualmente diante de discussões impensadas para certos grupos sociais, mas que ainda têm força em outros, como a volta da ditadura, por exemplo.
Para denunciar e combater a intolerância, o racismo, a homofobia, a transfobia, as injustiças sociais e outros problemas que estão presentes em nossa sociedade, o espetáculo se utiliza de textos, canções e, também, de gestos. O gesto é a exteriorização do que representa determinado personagem diante dos demais e daquilo que é apresentado em cena. São os momentos de interrupção que fazem transparecer, ainda mais, o processo gestual, e, no Manual dx Guerrilheirx Urbanx, existem diversos desses momentos, em que os atores se posicionam frente ao público, de maneiras diferentes, como em uma pintura. Esses quadros revelam, mais uma vez, a posição de enfrentamento proposta pela obra.
Diante das circunstâncias atuais, que envolvem o momento político em que o Brasil se encontra e as diversas discussões que levam a episódios de censura no jornalismo, na educação e nas artes, podemos enxergar o espetáculo Manual dx Guerrilheirx Urbanx como um dispositivo para a produção de um levante. Dispositivo que se baseia nos gestos e desejos de um grupo de jovens que, por meio do poder da arte e da alegria do carnaval, é capaz de discutir e problematizar questões profundas e urgentes para o nosso país. Como diria Didi-Huberman: “A alegria, como se sabe, é espaçosa: ela é tão fundamental que o ato do levante amplia, dilata o mundo ao redor e nos coloca em ressonância com ele”.
Em tempos de intolerância, de anti-intlectualismo e de um governo que trabalha para manter os privilégios das classes altas e suspender direitos dos trabalhadores, aposentados e estudantes, não restam dúvidas de que é necessário que os levantes comecem a existir com cada vez mais frequência. E é o poder dessa alegria, presente na arte e na força e disposição dos jovens, que, talvez, seja o único capaz de barrar os retrocessos que ainda estão por vir.
Referências:
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
CALDERÓN, Guilhermo. Neva. In: Dramaturgia Latino-americana. Bahia: Ed. UFBA, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Levantes. São Paulo: Edições Sesc, 2017.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Tradução Vera Casanova, Márcia Arbex. Belo horizonte: Editora UFMG, 2015.
ROHTER, Larry. Para dramaturgo chileno, ‘teatro é campo de guerra’. The New York Times, Nova York, mar. 2013. Diponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/03/para-dramaturgo-chileno-teatro-e-campo-de-guerra-4080411.html> – Acesso em 07/11/2018.
Espetáculo visto na programação do FETO- Festival Estudantil de Teatro em 23 de outubro de 2018.
Ficha técnica:
Direção: Marina Viana
Codireção: Cleo Magalhães e Henrique Limadre
Direção de movimento: Guilherme Morais
Dramaturgia: Marina Viana e os atores.
Trilha: GA Barulhista
Iluminação: Marina Arthuzzi, Jesus Lataliza e Cristiano Diniz.
Figurino: Mariana Blanco
Elenco: Carlos Lauro, Efigênia Marya, Jennifer Candeias, Laura Lopes, Lucas Matias, Paula Libéria, Renato Gualberto, Rodrigo Carizu, Sâmylla Aquino.
Luísa Lagoeiro
É atriz e produtora do grupo de teatro Mulheres Míticas, dirigido pela Professora Dra. Sara Rojo. Com esse grupo, acaba de estrear, em março de 2019, o espetáculo Classe, com texto do chileno Guillermo Calderón e atuou no espetáculo O Deszerto, ganhador do prêmio BH Cool de 2017. É também mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da UFMG e Bacharel em Teatro pela mesma universidade. Integra o Núcleo de Estudos em Letras e Artes Performáticas da Faculdade de Letras da UFMG (NELAP) e foi pesquisadora bolsista no Centro de Formação Artística e Tecnológica (Cefart) da Fundação Clóvis Salgado em 2016. Integrou o Grupo de Estudos Vocais LiberaVox, orientado pelo Professor Dr. Ernani Maletta e o Estúdio Fisções, laboratório de treinamento cênico e centro de pesquisas em ação física e metodologia do alvo, orientado pelo Professor Dr. Luiz Otávio Carvalho.