Carta escrita para o diretor japonês Tadashi Suzuki da SCOT Company, criador do método Suzuki de treinamento para ator.
– por Luciana Brandão –
No ano de 1999, os encenadores Antunes Filho e Tadashi Suzuki trabalharam juntos na produção “Fragmentos Troianos”, espetáculo encenado no Brasil e na Turquia. A convite de Suzuki, Antunes era membro da comissão organizadora das Olimpíadas de Teatro e foi o único diretor brasileiro a trabalhar diretamente com Suzuki.
03 de maio de 2019, Belo Horizonte.
Caro sr. Suzuki,
Espero que essa carta o encontre bem e com saúde.
É de fato muito curioso como o fluxo da vida acontece. Em novembro do ano passado estive em Buenos Aires realizando uma oficina do método Suzuki com Kameron Steele. Na ocasião, Steele me disse que o sr. não tinha notícias há muitos anos sobre o seu amigo e diretor Antunes Filho e por isso considerei que seria uma missão diplomática teatral muito honrosa reaproximar dois grandes mestres do Teatro mundial, que para mim constituem em exemplos de enorme força e entrega de toda uma existência ao oficio artístico. Mesmo passado um mês aproximadamente do meu encontro com Antunes, não achava que era hora de escrever ao senhor, pois ainda processava o nosso encontro. Ainda estou. Ainda procuro visitar nos meus sentidos as palavras que ele me disse, apenas para mim, sem que nenhum aparelho tecnológico registrasse sua voz, senão apenas na minha memória. Acontece que em um primeiro momento ele não permitiu que eu gravasse sua fala, pois não gostaria de ter de se “comprometer” em excesso pelas suas respostas.
Uma escolha tão justa para um artista como ele, que tive certo constrangimento em ter pedido inicialmente. Porém, o desejo de garantir que teria aquelas palavras ao meu acesso sempre que possível, tornava irresistível o pedido pela gravação. Certamente não considerei que Antunes descrevesse e resgatasse a experiência que os senhores tiveram juntos na década de 90, mas caminhamos para assuntos que aproximavam Tadashi Suzuki e Antunes Filho da forma genuína: a arte de Ator como um encontro do ser humano com a sua espiritualidade. Acho que ele gostou da prosa e então teve a gentileza de me permitir gravar. A bateria do gravador acabou, o sr. acredita? Mesmo sabendo que tinha outro tipo de gravador comigo, havia um comprometimento muito grande de doar a minha atenção ao que ele dizia, e por isso, sequer me movi da cadeira ou o interrompi ou pedi que repetisse o que dizia. Não sou jornalista. Sou atriz. Uma atriz de 28 anos conversando com o diretor de Macunaíma aos 89 anos. Se meu corpo não voltasse totalmente à atenção para aquele momento, não estaria fazendo jus à profissão da arte do encontro.
Assim que nos despedimos, tomei notas, organizei pensamentos, tentei registrar as imagens. Sua fala não era para mim, uma atriz em pleno princípio de vida e carreira, senão para ele mesmo enquanto um exercício reflexivo sobre o que é ser diretor por mais de cinquenta anos. Por isso, peço desculpas por não poder reproduzir exatamente as palavras dele, mas, como disse, tomei para mim a missão de trazer notícias para o senhor do seu amigo e gostaria de compartilhar as minhas memórias sobre o que conversamos:
“A Arte de Ator é munida de técnica, artesania, todo dia. Mas também a Arte de Ator perpassa pelo mundo dos segredos, do espiritual, da observação e do silêncio.
Hoje tive o privilégio de ouvir Antunes Filho falar sobre as instâncias místicas do Teatro. Ouvi com os poros, ouvi como quem testemunha um artista colocar um espelho a frente de si, detentor de uma experiência única e por isso, em constante revisão e reflexão. Na arte, e no teatro essencialmente, a espiritualidade se mistura à responsabilidade de manter-se sensível. Ouvir com todas as possibilidades existentes e não limitar o ator na sua pulsão criativa, conduzindo-o de tal forma a estimular que a incorporação de cenário, figurino, iluminação, ou outros atores a contracenar, são como novos parceiros de cena. Elementos para se tatear pelas beiradas e no escuro (pausa, respiro). Ser diretor é ter o devido cuidado em como trazer esses novos elementos ao processo de criação para agregar nas camadas de construção da obra. A sugestão de um refletor com determinada gelatina e posição não deve ser outra coisa que não um presente para o ator lidar. O que muitas vezes não acontece graças a ansiedade do(s) ator(es) e/ou do(a) diretor(a) criando certo medo frente ao risco de acrescentar mais uma nova bola no jogo de malabares.
Como manter o processo criativo vivo, através da capacidade de edição que deve ter um diretor com a obra teatral? Ser diretor é uma mediação cruel, penso eu. Pois ali está também um artista em constante estímulo e desejos criativos, mas que deve ter em mente a organização do processo para quem realmente interessa: o público.
Como brasileira e pesquisadora do método Suzuki, sempre questionei sobre como é culturalmente distinta a forma de se entender o trabalho de ator entre o Brasil e o Japão. Por isso, questionei Antunes e ele me disse que na realidade, quem mais tem a aprender na difusão do método Suzuki pelo mundo, é o próprio diretor Tadashi Suzuki, criador do método. Pois, no caso o diretor japonês, teria a oportunidade de incorporar para si, por exemplo, o “açúcar” do ator brasileiro, seu calor e malemolência. Verificaria em outro contexto a sua palavra de mestre, tida como verdade, mas dentro de uma situação de embate entre duas culturas tão distintas. “De forma analógica” ele me disse, sempre realizar o exercício da troca de forma analógica.
Há poucos mestres no mundo que podem dizer que há cinquenta anos possuem um método de treinamento que atinge tantas nacionalidades, corpos, subjetividades e culturas, como o sr. Suzuki. “Já que o mestre é tido como detentor de uma verdade passada adiante, há que se ter em mente que o ator e o teatro sempre ensinarão mais ao diretor e não necessariamente o contrário”, me disse Antunes. Ainda reverbera em mim a importância de se manter uma relação de “forma analógica” em 2019. Pois o que importa é que atores e diretores compreendam a importância do processo de treinamento de ator como fonte criativa para o criador e a criação. Há que se escutar na função de diretor. Tudo. Como “mestre”, entra-se no primeiro dia de aula e os sinos tocam. A ansiedade dos alunos em absorver verdades é palpável no ar. “Há que se ter MUITO cuidado com isso”, me alertou. É dever deste sujeito ordenar o processo criativo, mas nunca se esquecer que o processo é constante e infinito. Transpõe ao ato de elaboração de um espetáculo e ganha novas camadas de criatividade. Transcende à ordem estabelecida dos ensaios entre as falas, ações, objetos, figurino etc., mas do encontro diário do ator com o ofício.
Há em mim uma grossa camada de experiência que Antunes derramou com longas pausas, reflexões precisas e extremamente profundas que não será hoje que irão emergir dos meus poros criativos sub-extra-cutâneos. Mas o mais inquietante foi ver este diretor refletindo o seu próprio ofício e legado com os olhos voltados para dentro de si. Falando do outro, no caso o parceiro Tadashi Suzuki, mas não deixava de ser um alerta para si mesmo e para mim: “é preciso estar atento e forte”, pensei. Atento em não suprimir a potencia do ator, oferecer presentes e não armadilhas à criação e a mediar as responsabilidades do diretor com o processo criativo em constante movimento.”
Não esperava que nessa ocasião em que escrevo ao senhor noticias sobre o seu amigo Antunes Filho, eu tivesse também de informar com todo o pesar, que na noite de hoje, 3 de maio, às 9:30pm, este que foi um dos maiores diretores do Brasil, faleceu. Partiu um artista consciente de seu legado, cuja criatividade e inquietação infinita havia acabado de estrear um espetáculo e já estava em um novo processo de criação aos 89 anos, como o senhor. Apesar da triste notícia, é uma honra e um privilégio ter podido compartilhar com ele esse encontro.
Assim me despeço, e com alegria agradeço pela carta de aceite para o seu próximo programa de treinamento em Toga-mura, em julho.
Nos vemos em breve,
Luciana Brandão
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Luciana Brandão é artista cênica e mestra em Artes da Cena pela Universidade Federal de Minas Gerais. Sua pesquisa relaciona os métodos Viewpoints e Suzuki em interface à Composição Visual.